terça-feira, novembro 18, 2014

Um adorável marxista: Leandro Konder (1935-2014) - por José Paulo Neto

Li o texto abaixo hoje à noite e senti uma vontade enorme de compartilhá-lo. Foi escrito por José Paulo Neto, um dos mais profundos estudiosos de Marx em nosso país. José Paulo Neto presta uma singela homenagem a Leandro Konder, morto a semana passada. Konder é um escritor que aprendi a admirar. Devo ter quase dez ou mais livros dele em minha biblioteca. Sua epistemologia está fincada no materialismo histórico dialético, apesar disso não é um ortodoxo duro. Consegue dialogar com a ciência histórica marxista, mas consegue imergir em temas da literatura e da estética, por exemplo. Recordo-me que tenho aqui em casa livros sobre Benjamin, sobre Kafka e sobre Brecht escritos por ele. Apenas para exemplificar, um dos livros expressivos que li este ano foi dele: "Os sofrimentos do homem burguês", que, no título, já faz uma referência explícita aos Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Além disso, há um outro livro dele que julgo essencial: "O marxismo na batalha das ideias". 

Abaixo, o texto de José Paulo Neto, extraído do site da Boitempo.

As lutas de classes, especialmente nas conjunturas sociais tensas e mais crispadas, afetam diretamente os comportamentos das mulheres e dos homens que estão na linha de frente dos confrontos políticos. Quem deles participa sabe como é difícil manter a firmeza de princípios e de posições ao mesmo tempo em que se conservam a serenidade pessoal e o trato urbano – seja com inimigos, adversários e mesmo companheiros. Sem paixão não há combate revolucionário pelo socialismo, mas a paixão, tomada em si mesma, não é qualidade revolucionária: só o é quando dirigida por uma racionalidade (envolvente de meios e fins) que implica, necessariamente, a mediação da cortesia e – tomemos a palavra tão desusada hoje – gentileza.
Pois bem: o falecimento de Leandro Konder, cerca de um mês e meio antes de completar 79 anos, vitimado há mais de uma década por uma enfermidade cruel (a qual resistiu com inenarrável estoicismo, graças também à dedicação de Cristina, sua extraordinária companheira), empobrece substantivamente o marxismo e a esquerda brasileiros: com ele se foi um homem que soube, como muito poucos, combinar a firmeza de princípios e de posições com a gentileza, a polidez e a generosidade em todos os níveis das relações humanas. Morreu um adorável marxista.

Não me cabe, nesta hora triste, deter-me na sua obra – tema de outras intervenções minhas em oportunidades anteriores[*]. O decurso do tempo permitirá, estou certo, avaliar a relevância efetiva de suas várias dezenas de livros e ensaios (e centenas de artigos, numa carreira de escritor iniciada precocemente no final dos anos 1950) com rigor e justiça. Mas há três planos da sua atuação sobre os quais o juízo dos contemporâneos parece-me conclusivamente estabelecido.

O primeiro diz respeito ao seu papel agregador na frente cultural democrática que se articulou na imediata sequência ao golpe de 1º de abril de 1964: militante do PCB (ao qual esteve ligado até os inícios da década de 1980) desde adolescente, Leandro foi protagonista daquela paradoxal hegemonia (estudada por R. Schwarz em texto antológico de 1969) de que a esquerda brasileira desfrutou na cultura brasileira entre 1964 e 1968.
O segundo é relativo ao seu desempenho no magistério universitário, no qual ingressou em 1982; por mais de vinte anos, foi professor literalmente adorado por estudantes, querido pelos pares e respeitado pelos adversários.

E o terceiro está vinculado à sua atividade de publicista: foi notável o seu trabalho como competente tradutor de expressivos autores marxistas (especialmente de G. Lukács, de cujo pensamento foi um dos introdutores no Brasil, além de ter vertido ao português textos de Marx e Engels  e ainda, entre muitos, de E. Fischer, R. Garaudy), como informado divulgador de temas palpitantes da tradição marxista clássica (alienação, estética) e como didático analista de autores/obras de grande complexidade (Marx, Hegel, F. Kafka, W. Benjamin, B. Brecht).   

Penso mesmo que é precisamente na sua publicística que Leandro, em uma atividade cuja característica central foi a de um verdadeiro pedagogo, ocupa um espaço absolutamente indisputado. Como publicista, no trato dos marxistas, exercitou a divulgação com um espírito aberto, avesso a qualquer tom dogmático; com os não-marxistas, estabeleceu uma interlocução compreensiva, despida de preconceitos, não doutrinária. E sempre se expressando numa escrita cristalina, fresca, bem-humorada, acessível ao comum dos leitores – uma linguagem para transcender os círculos dos “iniciados”. Neste campo, Leandro rompeu com um viés de polêmica que falsamente identificava firmeza teórica com argumentação grosseira e agressiva. Aqui, antes que uma lição, Leandro lega aos  pósteros um exemplo.

Redijo esta brevíssima nota em meio ao desconsolo e à tristeza. Aqueles que, como eu, ainda na adolescência quando eclodiu o golpe de 1964 e então se voltaram para atividades de natureza político-cultural, todos tivemos – sem prejuízo de outros intelectuais e pensadores brasileiros de peso – em Leandro, e em figuras como Carlos Nelson Coutinho (nome tão ligado ao dele!), Fernando Peixoto e Aloísio Teixeira homens que nos influenciaram decisivamente. Perdemos os quatro em dois anos.

No meu caso particular, vínculos para além dos políticos e intelectuais acabaram por me vincular a estes quatro extraordinários brasileiros. O desconsolo deve-se a que são insubstituíveis num panorama cultural que reclama imperiosamente protagonistas do seu quilate. E a tristeza porque, com  eles, se foi parte significativa da minha vida – a juventude – , aquela em que eles me ajudaram, e muito, a construir o meu (pobre) jeito de estar no mundo.



sábado, novembro 15, 2014

Relatos Selvagens - a superioridade do cinema argentino e a natureza humana



[...] cada homem é um ser social, dotado de um papel e de um estatuto particular; mas cada homem é também “algo além” [...] Georg Simmel, pensador alemão.

Ontem à noite, saí do Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília, com uma certeza: o cinema argentino está a algumas galáxias à nossa frente. Ainda ficamos engatinhando em pastelões com roteiros ruins, do tipo besteirol; ou na estética da violência que vem da favela. É só analisar, por exemplo, a lista de filmes que encabeçou as grandes bilheterias aqui no país nos últimos dez anos. Nesta semana, eu tive a oportunidade de assistir a três longas argentinos: Elefante Blanco (2012), Kamchatka (2002) e o visceral Relatos Selvagens (2014), a qual pretendo fazer algumas considerações. Mas, o que dizer ainda de Tese sobre um homicídio (2013) ou O segredo dos seus olhos (2009)?

Com direção de Damían Szifrón e produção do espanhol Pedro Almódovar, Relatos Selvagens é construído por seis histórias curtas e independentes, reveladoras de absurdos ou situações extremas com as quais as personagens devem conviver - ou pelo menos arranjar uma solução. Curiosamente, as soluções revelam o lado primitivo e animalesco do mundo humano. A tese que fica é a de que os homens não se diferenciam dos outros bichos quando são colocados em situações que exigem uma iniciativa rápida. Pois há vingança, humor invertido, fúria, corrupção extrema e uma sensação profunda de que existimos entre o senso de civilização e barbárie, fazendo ecoar aquela sentença de Nietzsche de que o homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo.

As seis histórias são surreais. A primeira (bastante curta) demonstra uma situação em um avião. O comissário de voo queria se vingar daqueles que zombaram dele. Por isso, consegue armar uma situação para tirar a limpo toda a humilhação sofrida no passado. Ou a história macabra de um restaurante de beira de estrada, em que a garçonete atende o sujeito mafioso que arruinara a sua família. E sente um desejo de vingança. A cozinheira gorda e ex-detenta rapidamente toma a iniciativa de arquitetar como seria morte do sujeito. As cenas que se seguem são de tirar o fôlego.

Ou ainda a história de um ricaço que segue em seu Audi em uma autoestrada e pede passagem para um sujeito que segue em um carro em péssimo estado. A despreocupação do ricaço e a lentidão do outro gera uma situação em que os piores sentimentos do ser humano acabam vindo à tona, como acontece tantas vezes nas grandes cidades. O motorista do Audi dá luz alta várias vezes. Irritado, o condutor do carro que estava à frente, sente-se molestado. O ricaço consegue a ultrapassagem, mas insulta o pobre. Mais à frente, o pneu do carro do Audi fura e a partir desse fato a barbárie se instala de forma completa. O desfecho é dos piores possíveis.

A história protagonizada pelo sempre presente nas produções argentinas - o excelente Ricardo Darín - é revestida de humor invertido e moral kafkafiana. Um engenheiro bem sucedido que trabalha com implosões se ver metido numa trama invísivel, com os requintes mais bizarros da impessoalidade da burocracia. Seu carro é guinchado, mesmo ele tendo estacionado em local apropriado. A partir daí começa a sua luta pessoal contra as garras morosas e asfixiantes do Estado, representado pelas figuras pachorrentas e arrogantes dos seus agentes. A quem se deve pedir satisfação, quando na sua individualidade, você tem os seus direitos atingidos? A quem reclamar? Ao presidente da República? À vaguidão da lei? O Estado com a sua máquina é o Leviatã hobbesiano, monstro que não se preocupa com os estertores do cidadão oprimido. Faz lembrar K., personagem de Kafka em O processo. Em meio à ciranda caótica e estressante das grandes cidades, sendo vitimado pela inércia, pela corrupção de uma sistema intangível, o cidadão se sente asfixiado e arruma saídas estapafúrdias, como fica demonstrado no desenlace da pequena história. Lembrei-me de Os contos da era de ouro.

Ou a história de uma família rica de Buenos Aires: o filho atropela uma mulher grávida após ter bebido e o pai tenta construir uma espiral corruptora com a ajuda do advogado da família. A situação é pagar 500 mil dólares ao caseiro da família para assumir o crime no lugar do filho. Mas o plano é descoberto pelo investigador (figura do estado), que aos poucos é cooptado pelo jogo sujo da advogado, que faz o papel de hiena - a se aproveitar do cadáver da situação. O desenlace também é de impressionar. 

A última história é aquela em que os aspectos mais profundos da psicologia humana são trabalhados. Retrata um casamento e o desfecho da cerimônia, que vai do tragicômico à reação intempestiva, quando o  inesperado se faz presente. Nesse espaço, convivem o cômico, o trágico, o forte tom farsesco e o demônios dostoievskianos.

Relatos Selvagens é construído de modo que os espectadores não tomem fôlego. Uma história é colada à outra de forma rápida, sem que haja tempo para respiração. A finalidade é fazer com que quem está do lado de cá experimente a diluição dos aspectos humanos das personagens, que se mostram como sujeitos normais, dentro de aconetcimentos normais, com as quais todos nós (que estamos do lado cá) experimentamos na cotidianidade individualizada da modernidade, mas que acabam se desdobrando em situações que fogem aos ditames da razão. Nesse sentido, o senso de massificação, exatidão, dinheiro, racionalização e anonimato, que são construtores da alma e do caráter do homem moderno, são desconstruídos pelo aspecto primitivo de nossa natureza. Curiosa é a cena que se segue logo após à primeira história do filme. À proporção que os créditos com o nome dos atores são anunciados, alguns animais são anunciados numa clara explicitação metalinguística - hienas, crocodilos, ursos, leopardos, águia etc - como se dentro nós morasse a personalidade de cada um deles. Vivendo em sociedade, o homem passa a ser fera. ("O Homem, que, nesta terra miserável,/ Mora, entre feras, sente inevitável/ Necessidade de também ser fera". - Augusto dos Anjos). 

Ainda estou pensando sobre o o filme. Excelente! 

domingo, novembro 09, 2014

Algumas fotos emblemáticas do século XX

Ao presenciar as imagens abaixo, fiquei impressionado com a evocação que cada uma delas nos transmite. Retirei-as de um site de história, que traz 42 fotos marcantes do século XX, um século marcado pelo conflito, pelo genocídio, pela face extrema da barbárie, pela opulência/miséria e pela consolidação do capitalismo como sistema capaz de engendrar dramas; capaz criar um estilo de vida completamente desumanizador.

Campo de Concentração de Buchenwald, Alemanha, 1945.

Garoto inglês abandonado sobre os escombros da Segunda Guerra, 1945.

Adolf Hitler, 1939.

Alemanha Nazista, 1939.

Florence Owens Thompson, 1936, Oklahoma, EUA. Segundo informações, ela tinha pouco mais de 30 anos. Mas o sofrimento e a pobreza imprimiram rugas profundos em seu rosto.

Claude Monet, 1923.

Nova York, primeira década do século XX.

Albert Einstein, o cientista pop, exibindo suas belas canelas em Long Island, EUA, 1939

Big Jay McNelly, no Olympic Auditorium, Los Angeles, EUA, numa apresentação de Jazz, 1953. Curiosa são as feições dos apreciadores da música diante do esforço performático extremo do artista. 

Nova York, 1910

Stalin, Truman e Churchill, na Conferência de Postdam, 1945, que definiria os rumos da Segunda Guerra Mundial

Jovens americanas treinam boxe, 1930. A década de 20 trouxe mudanças profundas no comportamento feminino.

Martin Luther King, Marcha sobre Washington, 1953. 
Crianças novaiorquinas brincando perto de um cavalo morto, primeira década de 1900.

Menina descalça trabalha em uma fábrica têxtil da Nova Inglaterra, 1910


sábado, novembro 08, 2014

Uma afirmação de Eric Hobsbawm

Ando lendo o livro Tempos Interessantes, de Eric Hobsbawm, uma mente com uma história pessoal bastante privilegiada. Neste livro é possível perceber a honestidade e a integridade desse sujeito que soube analisar, medir e pensar as marcas contraditórias do seu tempo, que segundo ele foram "extremos", mas também foram "interessantes". Assim que concluir a leitura pretendo fazer algumas considerações esparsas sobre essa fascinante obra. Lendo o capítulo 17, capítulo este em que o famoso historiador radicado na Inglaterra fala sobre a atividade dos historiadores no século XX, encontrei as belas palavras que se seguem abaixo. É possível perceber a impressão de forte emoção e sinceridade.

[...]"Os negócios da humanidade são hoje conduzidos especialmente por tecnocratas, revolvedores de problemas, e para os quais a história é quase irrelevante; por isso, ela passou a ser mais importante para o nosso entendimento do mundo do que anteriormente. Silenciosamente, em meio à discussão sobre a existência objetiva do passado, a mutação histórica se tornou componente principal das ciências naturais, evoluindo da cosmogonia para um darwinismo ressuscitado.Com efeito, por meio da biologia molecular e evolutiva, da palentologia e da arqueologia, a própria história humana está sendo transformada, está sendo reinserida no arcabouço da evolução global, e mesmo cósmica. O DNA a revolucionou, Assim, sabemos agora como é extraordinariamente  jovem o Homo sapiens como espécie. Saímos da África há 100 mil anos. Tudo o que se descreve geralmente como 'história' a partir da invenção da agricultura e das cidades não chega a pouco mais de quatrocentas gerações humanas, ou 10 mil anos, uma piscadela para o tempo geológico. Dada a dramática aceleração do ritmo do controle da humanidade sobre a natureza nesse breve período, especialmente nas últimas dez ou vinte gerações, o conjunto da história até agora pode ser visto como uma explosão de nossa espécie, um tipo de supernova bissocial que se expande para um futuro desconhecido. Esperemos que não seja catastrófico. Enquanto isso, e pela primeira vez, dispomos de uma estrutura adequada para uma história genuinamente global, restaurada a seu devido lugar central, nem englobada nas humanidades ou nas ciências naturais e matemáticas, nem tampouco separada delas, porém essencial a ambas. Gostaria de sr jovem o bastante para poder escrevê-la.

Mesmo assim, foi bom ser historiador, mesmo em minha geração. Acima de tudo, foi agradável. Numa conversa sobre seu desenvolvimento intelectual, meu amigo Pierre Bourdieu, certa vez disse:

Vejo a vida intelectual como algo mais próximo da vida do artista do que da rotina da academia [...] De todas as formas de trabalho intelectual, o ofício de sociólogo é sem dúvida aquela cuja prática me trouxe felecidade, em todos os sentidos da palavra

Substituindo o sociólogo por 'historiador', eu digo amém".