sábado, agosto 28, 2010

A grandiosidade da "Romântica" de Bruckner

Ouvi pouca música esta semana. Os fatos engoliram minha percepção e tudo passou rapidamente. A música é, para mim, um dos deleites mais agradáveis da vida. Beethoven disse certa vez que "a música é a linguagem de Deus". E, de fato, uma boa música proporciona uma verdadeira alegria espiritual. E do pouco de música que ouvi, acredito que mais de 80% foi dedicado à Sinfonia No. 4 de Anton Bruckner, também conhecida como "Sinfonia Romântica". A gravação com Claudio Abbado gravada em 2004 no Festival de Lucerne embalou minhas conviccções, proporcionou momentos de grandeza, de absoluta exaltação da existência. Em cada audição que efetuei, saí com um sorriso largo no semblante da alma. A "Romântica" de Bruckner foi gravada em 1874 e passou por inúmeras revisões até o ano de 1888. Revisionismo era uma palavra que seguiu a carreira do compositor Bruckner. Muitas das suas sinfonias passaram por imensas revisões. Talvez isso fosse uma traço da insegurança de Bruckner. Embora a Sinfonia No. 4 tenha o nome de "Romântica", ela não segue o ideário do "amor romântico" do século XVIII. Bruckner segue um programa medieval, inspirado nas óperas Lohengrin e Siegfried de Richard Wagner. Esqueçamos Wagner e nos fixemos em Bruckner, num dos trabalhos mais belos e populares do seu repertório.

Abaixo uma première com Günther Wand, o velhinho que entendia tudo de Bruckner. Sua integral das 9 sinfonias de Bruckner é uma das mais respeitadas de todo o mundo erudito. Observe os gestos sóbrios, elegantes, de quem domina o ofício como ninguém do velhinho Wand. O cenário é arrebatador, num ambiente que inspira o sagrado. Ou seja, que esboça uma maior ênfase, dá realces mais acentuados à música poderosa e Bruckner.



Observe a beleza, a leveza, toda a espiritualidade que emana da música







sábado, agosto 21, 2010

Mercado Eleitoral

O jogo é um vício nefasto. Ao contrário da bebida e da droga, a pulsão pela aposta não altera o estado de consciência e arrisca os recursos financeiros do jogador. Dostoiévski que o diga.

A fantasia de ganho fácil faz naufragar a razão na emoção. O jogador dobra apostas, blefa, convicto de que a sorte, mulher apaixonada, jamais o abandona.

O processo eleitoral, tal como ocorre hoje, não seria um jogo? A maioria dos candidatos é motivada pelo ideal de servir ao bem comum ou pela ambição de ocupar uma função de poder e, assim, assegurar melhor futuro para si e os seus?

Já no século IV a.C., Aristóteles, que defendia a rotatividade no poder como predicado da democracia, observava na Política (livro III) que as coisas mudavam porque, "devido às vantagens materiais que se tira dos bens do Estado ou que se alcança pelo exercício do poder, os homens desejam permanecer continuamente em funções. É como se o poder conservasse em permanente boa saúde os que o detêm...".

Hoje, isso se acentua. Os candidatos, salvo exceções, não têm programas (exceto no papel), mas performance; nem objetivos, mas compromissos com aliados; nem princípios ideológicos, mas o pragmatismo que ignora a ética mais elementar. A política se tornou a arte de simular e dissimular.

Os marqueteiros têm mais poder sobre os candidatos que o partido. Não se trata mais de divulgar um projeto político, e sim um produto capaz de seduzir o mercado eleitoral. O perigo, adverte Umberto Eco, é o político se tornar um produto semiótico, teatralizado.

Muitos políticos rezam pelo Breviário do cardeal Mazarin, escrito no século XVII, onde se multiplicam conselhos deste quilate: "Arranja-te para que teu rosto jamais exprima nenhum sentimento particular, mas apenas uma espécie de perpétua amenidade". Ou: "O importante é aprender a manejar a ambiguidade, a pronunciar discursos que possam ser interpretados tanto num sentido como no outro, a fim de que ninguém possa decidir".

Os marqueteiros são, hoje, os verdadeiros artífices das candidaturas. Os eleitores, o alvo mercadológico. A diferença com os produtos do supermercado é que estes são adquiridos para uso do consumidor. No caso da política, o eleitor é "consumido" para uso do candidato. Meses depois, o eleitor nem se recorda dos nomes a quem deu seu voto, embora se queixe dos políticos e da política.

A roleta eleitoral ainda não conseguiu eliminar do processo um fator incômodo: a entrevista. A mídia exerce poderosa mediação entre o candidato e o eleitor, daí as concessões feitas pelos partidos para ampliar suas alianças e garantir maior tempo de exposição midiática de seus candidatos.

A entrevista incomoda porque impede o candidato de manter-se nos estreitos limites da retórica recomendada pelos marqueteiros. Surgem perguntas indesejadas, questionamentos éticos, e as contradições que o candidato tanto gostaria de ocultar.

Sem entrevista, programa político e amor ao bem comum a democracia é mera farsa.

Por Frei Betto

Extraído DAQUI

terça-feira, agosto 17, 2010

"Pesos e Medidas" ou o Império Ataca

Resolvi postar um texto do editor Mino Carta da revista Carta Capital. Abaixo segue um "pedaço" da reflexão com uma excelente análise empreendida acerca das entrevistas realizadas pela Rede Globo com os candidatos à Presidência da República. O casal mais ridente do jornalismo brasileiro estava lá ostentando a natural faceirice de superioridade. Ou seja, de quem é detentor da verdade. Modelo de relação. Espelho para as famílias brasileiras. Com relação à entrevista, nada de cordialidades para com Dilma e Marina Silva, que foram "encurraladas". No tocante ao canditato das aristocracias (José Serra), verbalização, mesuras, risos de complacência, nada de interrupções, cortes abruptos. Nada de apertos. Apenas duas perguntas supostamente embaraçosas ao candidato tucano. Já era de se esperar por isso. É de ver o debate que os globais irão promover?!!! Ontem, em pesquisa encomendada pela Rede Globo e pela Folha de São Paulo, Dilma aparece com mais de 10 pontos percentuais de vantagem em relação a Serra. Existe até mesmo a possibilidade da candidata petista vencer no primeiro turno, o que seria realmente extraordinário. O que eles estão pensando em fazer para tirar esta diferença?

Uma outra pergunta: por que não levaram Plínio de Arruda Sampaio ao Jornal Nacional? Medo do discurso com propostas de ruptura do canditato do PSOL? A Globo, sempre a Globo! Quem quiser ler o texto de Mino na íntegra, AQUI.

Em itálico, texto do editor Mino Carta:

[...] Para revidar às perguntas que não são do seu gosto, o candidato José Serra adota uma linha de refinado senso de humor. Anota a repórter Juliana Cipriani, de O Estado de Minas, que Serra “parece ter dificuldade em entender o que dizem os brasileiros ou inventou uma nova estratégia para evitar responder às perguntas que não o agradam”. Em meados de julho passado, em Pernambuco, o repórter de um jornal local dirigiu-lhe uma pergunta sobre o trem-bala destinado a ligar São Paulo ao Rio: obra feita ou tiro de festim? A pergunta deveria ser do seu gosto, pois o candidato é contrário ao projeto. Surpresa. “Não entendi, foi muito sotaque”, decretou Serra. Em Minas, quando um jornalista o questionou sobre recente entrevista de Lula em que o presidente lamenta-lhe a falta de sorte ao enfrentá-lo em 2002 e agora diante de Dilma Rousseff, Serra escandiu: “Esta fala mineira de vocês eu não entendo”. O candidato tucano consegue, porém, ser mais cordato, a depender das situações. Lá pelas tantas desta tertúlia eleitoral, o repórter Fábio Turci dirige a Serra uma pergunta sobre juros. O perguntado não esconde sua irritação, e indaga com a devida veemência: “De onde você é?” Turci esclarece ser da Globo. E Serra, de pronto: “Ah, então desculpe”. Tucano não voa, mas sabe onde pisa. Na noite de 11 de agosto coube a ele ser sabatinado por 12 minutos pelo casal JN, William Bonner e Fátima Bernardes, os sorrisos mais radiosos do Brasil. Antes, a oportunidade foi bondosamente oferecida às candidatas Dilma Rousseff, segunda 9, e Marina Silva, terça 10. Para ambas, um sufoco. As perguntas do locutor que considera Homer Simpson como telespectador ideal foram muito mais esticadas que as respostas, quando estas não foram furibundamente atropeladas. No caso de Dilma, o propósito foi mostrar (ingenuamente?) que ela é ao mesmo tempo uma marionete na mão de Lula e personagem dura, prepotente, mandona. De sorte a suscitar a observação da entrevistada, mais ou menos do seguinte teor: então, como vocês me querem, como títere do titereiro ou como a ministra inflexível que chama às falas os colegas de gabinete? Na vez de Marina, o intuito foi outro: provar que ela saiu do governo por discordâncias sobre a política ambiental enquanto, tempos antes, não se incomodou com o mensalão, o escândalo pretendido e até hoje não provado. A certa altura, a ex-ministra teve de reagir com alguma, insólita veemência, para pedir que a deixassem concluir o raciocínio. Com Serra, na quarta 11, tudo mudou. O casal JN deixou o candidato falar à vontade. E quando a entrevista pretendeu chegar ao ponto de fervura, a pergunta foi: o senhor não se sente constrangido de ter o apoio do PTB, partido metido no escândalo do mensalão petista? Nada do mensalão mineiro nem do escândalo do DEM em Brasília. Maluf e Quércia? Esquecidos. E os votos comprados para a reeleição de FHC? Segundo momento de aperto. Pergunta a evocar os usuários que reclamam dos preços altos do pedágio em São Paulo. Serra ganha a oportunidade de falar mal das estradas federais. Aí Bonner acrescenta: não existe um meio-termo, só dá para ter estradas boas e caras ou ruins e baratas? Serra emenda, feliz, que na última concessão que fez, os preços do pedágio caíram pela metade. Omitiu que os postos de cobrança foram dobrados e ao cabo cita sua origem humilde, estudante de escola pública etc. etc. Só falta chorar. A rapaziada não se dá ao respeito. Quem sabe haja quem se incomoda ao perceber que nos enxergam como malta de idiotas. Esta visão da plateia é própria, aliás, dos jornalistas nativos e seus patrões. Será que não usam na medição o metro recomendável para medir a si mesmos?

Abaixo os vídeos com as extrevistas dos três candidatos conforme a ordem "erigida" pelo Jornal Nacional da Rede Globo. As entrevistas foram realizadas do dia 09 a0 dia 11 de agosto de 2010:

Segunda-feira, dia 9 de agosto de 2010 - Dilma Rousseff (PT):



Terça-feira, dia 10 de agosto de 2010 - Marina Silva (PV):



Quarta-feira, dia 11 de agosto de 2010 - José Serra (PSDB), candidato global. Quem teve paciência de ver aos dois vídeos acima, observe como a tônica da entrevista com o candidato tucano é diferente:



segunda-feira, agosto 09, 2010

Reflexões natalícias

Escrito há dois anos numa ocasião como esta.

Penso que a vida seja um dos elementos mais difíceis de serem cultivados. Ideais sem fim surgem como cenas fixas em oásis imaginários. Fazemos desses espectros, materializações a que denominamos de metas alcançadas. Somos convencidos de quanto mais as alcançamos, mais realizados somos. Tenho entendido que isso é uma grande mentira. Assustado e, ao mesmo tempo resignado por esses malabarismos da existência, assenta-me a convicção de que viver seja um imenso, um enorme desafio.
À medida que os anos chegam vão se definindo algumas tendências a que denominamos apenas de intuição. Mas no fundo não se trata apenas de intuição. É como se de uma hora para outra olhássemos efetivamente para a realidade e enxergássemos manchas derramadas no ar. Como se de repente víssemos mundos escondidos por trás de uma cortina-obstáculo. A intuição que era impulsividade, torna-se num olhar sábio. A serenidade nos torna mais cautelosos. Se não nos tornamos pensadores, pelo menos somos revestidos interiormente com a calma de monges veneráveis.
Pensar é uma capacidade que diferencia o ser humano dos demais seres. Mas mesmo entre os que potencialmente são capazes de pensar há aqueles que não o fazem. Resta-lhes a inércia, a inação. Aquilo que Nietzsche chamava de “mergulho na massa”. Ou seja, caminhar no fluxo inconsciente da moral dos escravos. Em outras palavras: viver como todo mundo vive; fazer o que todo mundo faz. Mesmo pensando, discernindo, o homem não possui privilégios em relação aos demais seres. O muito pensar conduz ao enfado. Gera o fardo do cair em si. Refletir como homem é ver-se dentro do turbilhão trágico do acaso.
Vivemos para frente, mas somente compreendemos a vida quando olhamos para trás. A resposta para as perguntas que são feitas no presente se encontram no passado. Vivo para frente, todavia compreendo-me quando olho para o ontem. Esses lampejos de consciência são necessários. Os anos passam e marcam o meu rosto com o cinzel implacável do tempo. Já não sou mais a mesma criança de ontem. Vejo os fatos acontecendo como se eu estivesse num trem. As paisagens ficam pelo caminho. À minha frente o desconhecido, apenas. Em meu interior, algumas expectativas, esperanças, planos, nacos de um otimismo cultural.
Abjuro algumas convicções e me agarro a outras. Homem supersticioso sou eu. Elevo-me em nuvens ilusórias de pensamentos. Pareço divisar coisas por demais sensíveis. Espanto-me com isso. O simples gesto de caminhar é por demasia pesado para mim. É um portal que me conduz a outros mundos. Estou crivado incontinentemente ao pensamento. As flechas da reflexão me alcançaram. Atravessaram-me com seus poderes miraculosos. Mudaram-me o semblante. Minha mãe disse-me hoje que eu caminhava como um velho – “Caminha como um velho! Penso para um lado”. Não me impressiono com isso. Kierkegaard dizia que há homens que já nascem velhos. É um paradoxo com toda certeza – “nascer velho”. Somos concebidos novos, por isso à fase de menor idade chamamos de infância. Acredito que o filósofo dinamarquês se referisse a contingências existenciais. A idade é um aspecto mesclado de relatividade. Há indivíduos que nascem velhos e há aqueles que, sendo velhos, possuem uma interioridade jovem. Somente aos homens é reservada a captação desses fenômenos estranhos.
Fazer 29 anos é acontecimento extraordinário. Vêem-me a idéia de que a vida é maior do que a minha sensibilidade seja capaz de abarcá-la. Capto sinais invisíveis. Vislumbres de que por mais que tivesse condições de viver mil vidas, não seria capaz de saber nada. Estranho. Aprendo enquanto vivo; vivo para aprender, mas por mais que aprenda, sou sabedor de que não saberei nada efetivamente como se deve saber. Viver é ser limitado. Limitado por circunstâncias físicas, espirituais, tangenciais, contingenciais, sigo a cada dia com a prudência e com a frugalidade dos monges. Vamos aprendendo a rir dos próprios desatinos e ponderar a condição dos fatos. Atitude ignara. Própria dos seres que pensam. Própria dos monges veneráveis.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: terça-feira, 12 de agosto de 2008, 20:15:03.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Eu, Nietzsche e o Concerto de Aranjuez

Imerso numa nuvem fina, delicada de contentamento, escuto o Concerto de Aranjuez de Joaquim Rodrigo. Como faz bem essa música suavemente trágica. Nietzsche, No Caso de Wagner, faz algumas considerações interessantes sobre a música enquanto arte - eu não poderia deixar de ser alusivo a essa bela e oportuna reflexão. O filósofo alemão, na explicação sobre a sua “libertação” da música wagneriana, diz que tinha encontrado em Bizet o suporte da “melodia infinita”.

Nietzsche afirma em certa ocasião que já ouvira a peça mais de 20 vezes e aquilo não o irritava. Conseguira se resignar como um monge asiático. Era impressionante, segundo ele, como a música tinha/tem o poder de “nos tornar mais perfeitos”, “melhores homens”, “melhores filósofos”. Bizet era francês e não espanhol como Rodrigo. Nietzsche fazia menção à ópera Carmem, que possui o cerne (tema) espanhol. Era à espanholidade da música que ele fazia referência. A música de Bizet não era egocêntrica, não tinha por objetivo exibir o compositor, mas a arte, a beleza. Não promovia o autor (Nietzsche se referia a Wagner). A música composta pelo francês Bizet não falava de um homem, mas de uma raça. Era completamente banhada pelo sol – uma música ensolarada. Ao mesmo tempo juntava “o destino, a fatalidade, o cínico, o inocente e o cruel”.

Toda gama grave eu constato na beleza da música de Rodrigo. Qualquer palavra que eu teça a respeito desse concerto será pouco, não necessário. A sua formosura nos impulsiona ao silêncio, à reflexão, à alegria, à tristeza, à sensação imaculada do divino. “É bom aquilo que é leve, tudo o que é divino se move com pés delicados” – como afirma Nietzsche. Esse era o primeiro princípio de sua estética. O que ele diria se ouvisse algo dessa natureza, se ele ouvisse Rodrigo?

O violão com acordes suaves revela com espanto todo o lirismo, dor e agonia da vida. É uma música habitada por uma alegria fugaz, fugidia. Mas como a perseguimos em sua fuga volátil?! Ouvimo-la para persegui-la. Para deixar que ela nos habite e infunda em nós uma sensibilidade reflexiva. É uma música cheia de pulos, de saltos melancólicos. A alma artística de Rodrigo era cheia de luzes, de galáxias, de raios e trovões. Esta arte reverbera por toda a vida. Ela mesma existe para embelezar a existência. Como esse Concerto de Aranjuez me torna melhor nessa noite fria de segunda-feira!

Abaixo segue o segundo movimento (Adagio) com o Paco de Lucia, um dos grandes intérpretes de Rodrigo na atualidade.




*Primeira imagem à direita: Nietzsche; segunda imagem à esquerda: Joaquin Rodrigo.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 21 de julho de 2008, segunda-feira.