quarta-feira, dezembro 07, 2016

"O último tango em Paris" - uma pequena reflexão

Muitas pessoas mais gabaritadas do que eu já emitiram suas opiniões sobre este fato. Não será este espaço minúsculo e anônimo que ampliará qualquer entendimento acerca da polêmica. Mas vamos lá! Os amantes do cinema, sempre debateram sobre o aspecto "selvagem" da nudez explicitada no filme O último tango em Paris, de 1972. Para a época em que foi produzido, cenas de nudez, felação, masturbação, sexo anal, palavrões, e a atmosfera niilista vivida pelo personagem de Marlon Brando, talvez criasse caos e um consequente celeuma por onde quer que tenha sido visto. De fato, o filme foi censurado em diversos países - inclusive no Brasil. Esse fato só serviu para alimentar uma "mística" em torno da produção franco-italiana. É um filme erótico? A resposta: Não. 

Na segunda-feira (após duas outras tentativas baldadas), eu vi o filme. Nas vezes em que tentei e não consegui, acabei sendo vencido pelo encadeamento das cenas. Dormi. A sucessão da história é lenta. Aspectos meio que improvisados são desfechados. As falas de Brando, principalmente, quando ele fala da mãe, demonstram um nível profundo de uma simplicidade angustiante. Palavras como "fezes", a "a mãe nua e bêbada", "porco" (e outras coisas que não lembro) estão ali. Vemos quão grande era o ator.  Brando está medonho no filme. "Asqueroso". "Repulsivo". Um anti-homem. Um tipo indomável. Como na cena em que ele pede para que a personagem de Maria Schneider coloque o dedo em seu ânus (do personagem de Brando).

Pois esta semana, uma polêmica veio à tona: a confissão do consagrado diretor italiano Bernardo Bertolucci de que a famosa cena em que Maria Schneider contracena com Marlon Brando ("a famosa cena da manteiga") não tenha sido combinada com a atriz. Bertolucci, que hoje tem 75 anos de idade, confessou em 2013 que o acontecimento foi resultado de um estratagema entre ele e Brando, sem que Schneider soubesse. Palavras do diretor: "Não contei (a Schneider) o que ia acontecer porque queria que a sua reação fosse a de uma garota, não a de uma atriz". À época, Schneider era uma jovem com 19 anos de idade. Alguém que ainda não se firmara no mundo do cinema. Contracenar com Brando (que no mesmo ano faria o primeiro filme de O Poderoso Chefão, sob a direção de Francis Ford Copolla; e que já havia trabalhado em filmes clássicos como Sindicato de Ladrões e Uma Rua chamada pecado, ambos de Elia Kazan) certamente daria a ela uma espécie de senha para que se tornasse conhecida. 

A grande pergunta é: se fosse outra atriz, com um nome mais poderoso do que Schneider como Catherine Deneuve (Repulsa ao Sexo e A bela da tarde) ou  Brigitte Bardot (O desprezo e Masculino-Feminino), a dupla Bertolucci/Brando teria a mesma ousadia que teve com a jovem neófita? Mas isso não explica ou atenua a situação.
A cena funesta 

Analisando a cena, não se tem uma ideia muito precisa para definir se houve ou não penetração. O problema está no cálculo, na gestação da ideia de se passar manteiga no ânus da atriz sem que existisse consentimento. Além da funda problemática de cunho ético, fica subentendido a coisificação do outro. A vulgarização, a falta de respeito para com a jovem atriz. E, por fim, a ideia de "estupro". Aliás, atitudes aparentemente sádicas são comuns a muitos diretores como, por exemplo,  Stanley Kubrick ou Lars von Trier.

A famigerada cena durante muito tempo alimentou o imaginário masculino, pois ali há um acontecimento de clara dominação masculina. O sujeito que se posiciona à força, que subjuga, que não abre espaço para o debate, para a contradição. A cena do coito anal choca pela repulsa que gera - e não se trata de um moralismo barato. Bertolucci quis fazer um filme que chocasse. Queria deixar uma mensagem implícita para os telespectadores - que não havia limites para a arte. Faz lembrar O Anticristo (e a cena da mutilação genital), de Lars von Trier, que causa um impacto pelo aspecto negativo; ou a crítica destrutiva de Saló: ou 120 dias de Sodoma, de Pasolini. 

No livro Feminismo e Política, de Flávia Birolli e Luis Felipe Miguel, encontramos a seguinte a afirmação que serve para fortalecer o que tento afirmar:

Representações das relações de gênero nas quais a mulher é humilhada e objetificada, isto é, tratada como menos que humana porque é definida como instrumento para a satisfação dos desejos de outros, podem contribuir, ainda que de maneira difusa, para a violência contra as mulheres e para a aceitação dessa violência. 

Acredito que à época do filme, não havia esse debate consolidado de maneira tão substantiva como temos hoje. Entretanto, acredito que Bertolucci e Brando foram misóginos em suas intenções. Submeteram a jovem Schneider a uma situação constrangedora, subserviente, pelo fato dela ser ainda desconhecida. Sentiram-se verdadeiros garanhões próximos a uma vítima indefesa. Ajudaram a alimentar a sanha de muitos sujeitos que veem as mulheres como criaturas unicamente "para o coito" - e quanto mais expropriador da dignidade, melhor. 

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Ferreira Gullar (1930-2016)

Buenos Aires, 1975 (no exílio)
(...) Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
de como há dias
no dia
(especialmente nos bairros
onde a luz é pouca)
porque de noite
todos os fatos são pardos (...)
(Trecho de Poema Sujo)

Ontem, morreu José Ribamar Ferreira ou, simplesmente, Ferreira Gullar, um dos grandes mestres da moderna poesia brasileira. Ao lado de Carlos Drummond, Manuel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles e Manoel Bandeira, Gullar constitui, ao meu modo de ver, aquilo que de melhor produzimos em matéria de poesia. Sua carreira foi atravessada por muitos eventos importantes. 

Nascido em São Luis do Maranhão, Gullar foi um intelectual que assumiu posições polêmicas, principalmente a partir dos anos 80. Lendo uma entrevista que ele deu ao jornal espanhol El País, há dois anos atrás, nota-se o nível de "entorpecimento político" do grande poeta. É importante salientar que como cidadão, Gullar poderia emitir as opiniões que bem entendesse. Todavia, o grande problema é defender um político como Aécio Neves e chamá-lo de "bom gestor"; de que ele "atendia às expectativas políticas do momento" por ter feito um bom governo em Minas Gerais, algo bastante dubitável do ponto de vista objetivo. Para alguém como ele que escreveu algo tão denso como o Poema Sujo, um texto que destroça por dentro todo aquele que o ler, tal postura é negar a dialeticidade da própria obra. 

Outra questão é o fato de ter aceitado a nomeação para a Academia Brasileira de Letras, algo que ele sempre negou que faria.  Mas é importante salientar, que os intelectuais são criaturas humanas, por isso, passíveis ao erro. São como as divindades gregas, que possuíam apenas a imortalidade como realidade que as distanciavam dos humanos mortais. Por outro lado, eram acometidas por todo tipo de paixões e intrigas levianas.

Deixando de lado essa "licença poética" dos fatos da vida, Gullar foi um intelectual bastante atraente. É bom escutá-lo. Beber suas palavras, como no vídeo abaixo. É uma entrevista em que ele conta um pouco de sua vida em São Luis; a incursão no Partido Comunista Brasileiro (PCB); o exílio (Argentina, Chile e União Soviética) e as lutas diárias em país que vivenciava uma Ditadura.  Desde ontem que estou lendo o Poema Sujo. Peguei ainda Todo Poesia, lançado pela Civilização Brasileira, e que traz tudo aquilo que ele havia escrito até 1980 - inclusive o Poema Sujo. Abaixo, segue um dos poemas de que mais gosto do poeta: O açúcar. É uma verdadeira do ponto de vista do movimento dialético e da relação do trabalho que não se enxerga, mas que está latente na substância "branca", "pura", "afável ao paladar", "como beijo de moça".

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.  


Um trecho do Poema Sujo pelo próprio Gullar.

domingo, dezembro 04, 2016

8 1/2 de Fellini, algumas palavras

"Você tem razão. O papel não existe. Nem o filme existe".
Guido Anselmi, personagem alter-ego de Fellini em 8 e Meio

 8 e Meio é daqueles filmes marcantes, que se inscrevem definitivamente na memória e no coração de todo admirador do bom cinema. O filme de 1963, prova o gênio de um dos maiores diretores da história, Federico Fellini, autor de uma dezena de obras imortais.  8 e Meio assume uma característica essencialmente metalinguística por falar da dificuldade criativa do próprio Fellini. Aponta para o bloqueio de ideias que artistas e intelectuais, como mortais que são, enfrentam. Imagine você ser contratado para escrever uma peça ou um livro e visualizar tudo sendo preparado, mas sua mente está completamente nua? Não há ideias. As pessoas questionam quais papéis assumirão. Quais falas verbalizarão. Todavia, não há papéis, nem ideias, nem fluxo criativo. Tudo se mostra intransigentemente nulo.

Além do aspecto apontado acima, o filme é divertidíssimo, sabendo dosar muito bem o drama com o humor. Um exemplo é a cena em que Anselmi (Marcello Mastroianni), na parte final do filme, tenta se esconder embaixo da mesa, para fugir do questionamento dos jornalistas e assessores sobre a existência do trabalho. O filme mescla a realidade com os devaneios oníricos de Anselmi. Mas, no fundo, é Fellini que está ali, trazendo à tona toda uma memorialística - os fantasmas da infância, as várias mulheres que teve, a religião, os dilemas angustiantes de uma existência. E, quando ele faz isso, parece falar também com o espectador.

A cena que encerra o filme é de pura genialidade. Sob uma marchinha circense de Nino Rota, Anselmi conduz a gravação do seu (finalmente) filme. E tudo parece terminar numa grande ciranda. Ou seja, as pontas do inconciliável se encontram. As intrigas são desfeitas. E todos dançam e celebram. Até mesmo Anselmi entra na roda celebrante. Uma criança toca um instrumento de sopro (uma referência à infância do diretor?) e é seguida por outros músicos. Todos os outros músicos se retiram. Fica somente a criança, sendo iluminada por um facho de luz. Tal cena talvez aponte para a necessidade de simplicidade, algo tão distantes dos intelectuais. Na vida, é a pureza e a inocência que prevalecem.

8 e Meio é obra imorredoura. Precisa ser vista mais de uma vez. Possui detalhes sutis que devem ser absorvidos com uma paciência ruminante. Gênios como Fellini sabiam transformar até a dificuldade para fecundar a arte, em obra de arte. 


sábado, novembro 19, 2016

A violência, a sociedade brasileira e o Estado brasileiro

Comentário a uma reportagem:

A análise é precisa. Vivemos tempos difíceis, daqueles de fascismo escancarado. A Constituição de 88 ao declarar que somos um Estado Democrático de Direito, deu uma "dignidade" e ao mesmo tempo uma "tarefa" ao Estado e à sociedade brasileira para a qual ainda não estávamos preparados. Passamos da Ditadura à Democracia sem entendermos de fato o que isso significava. De repente, saímos de uma Ditadura e mergulhamos em um "espaço" que eleva o debate, que consagra os Direitos Humanos como garantias fundamentais. Todavia, passou a existir um espaço absurdo entre o proclamado pela Constituição e o vivido pela sociedade brasileira. 

O Brasil é um país violento e que possui no seu imaginário uma acepção pouco afável para com aqueles que, também, formam o corpo social. O "homem cordial", sempre pronto a acolher, a recepcionar, de Sérgio Buarque de Holanda é um mito. É só observar como o Estado brasileiro tratou as manifestações, as insurreições populares em sua história. Cito apenas três: o Quilombo dos Palmares, Canudos e os cangaceiros de Lampião. Nos três exemplos, a violência foi praticada de forma radical. Palmares foi aniquilado e seus líderes destroçados. Zumbi teve a sua cabeça cortada e exposta em Recife. Canudos foi uma das maiores genocídios praticados pelo Estado Brasileiro em sua história. Mais de 30 mil brasileiro foram mortos. No caso de Lampião, como se não bastasse o barbarismo da morte, ainda houve uma exposição pública das cabeças dos miseráveis mortos, como que para dizer: "É assim que tratamos o diferente em nosso país". Outros casos poderiam ser citados como, por exemplo, O contestado ou a Inconfidência Mineira, os mais de trezentos anos de escravidão. Ou seja, a sociedade brasileira é violenta. Ela carrega em seu interior uma noção beligerante para com o diferente. Confunde-se "justiça" com "justiçamento". Atualmente, esse "juízo do carrasco", que estava adormecido, acordou bruscamente como um vulcão com grande força eruptiva. 

Vendo a reportagem pela televisão, senti-me mal. Sabia que havia algo de estranho no modo como estava sendo veiculada. O texto apenas confirmou minha desconfiança. Os fogos de artifício representam "o retumbar da ignorância", a exatificação do quanto somos violentos. Uma comemoração basbaque e, ao mesmo tempo, sanguinária, de que a justiça está sendo feita. Aconteceu isso com o golpe parlamentar contra a Dilma, sem perceberem que era o Direito que estava sendo violado. É importante lembrar que Sergio Cabral e Garotinho são dois políticos que possuem um histórico obscuro. Mas, o que está em jogo não é somente a trajetória política dos dois. O debate está em torno de como a mídia trata/tratou a prisão preventiva de cada um deles. No Brasil, temos o seguinte rito: (1) o Ministério Público investiga, recolhe supostas e eventuais provas; pede ao Judiciário o indiciamento do investigado. O Judiciário decreta a prisão cautelar; (2) a mídia faz um trabalho sujo de difamação do sujeito, ou seja, o sujeito é "malhado" como o Judas em sábado de aleluia, numa clara violação do Estado Democrático de Direito. Isso cria um juízo moral em torno do caso. (3) quando o juiz vai julgar o caso, ele é coagido pela opinião pública, mesmo que não haja provas robustas ou indício de materialidade, a condenar o sujeito. Se o Estado não condenar, desacredita-se da justiça e do Estado. Em um Estado Democrático de Direito, as garantias fundamentais são respeitas: direito ao contraditório, ampla defesa, presunção de inocência. Ou seja, até que o julgamento aconteça, o sujeito está sendo acusado, mas tem o direito de construir a sua defesa, por isso, não pode ser culpabilizado antes do tempo. 

Direito é um tema sensível. Geralmente, entende-se que Direito é apenas aquilo que concerne ao Judiciário, aos advogados, às leis. Não. A sociedade também faz o Direito. E o que temos visto no Brasil é uma acintosa reversão, uma involução dos direitos fundamentais, que são aqueles, mínimos que sejam, capazes de ofertarem a qualquer sujeito, independentemente de sua cor, religião, origem social, opção sexual, discernimento ideológico, a capacidade de serem considerados humanos. Assustamo-nos com a ação dos agentes puxando o Garotinho pela perna (novamente, é preciso diferenciar o homem político e o paciente que estava em uma maca, precisando de cuidados), mas esse é o tratamento que muitos brasileiros e brasileiras, que vivem nas periferias têm todos os dias, sem que a mídia esteja lá para mostrar. São criaturas anônimas que sofrem com a violação de garantias mínimas que as tornem humanas. E, num processo dialético consequente, essa mesma violência é passada para a sociedade, alimentada pela mídia, represada nas entranhas e avolumada em grande poupança pelo senso comum. Resultado: temos um quadro social dramático de insegurança e sensação de insegurança.

quarta-feira, novembro 09, 2016

O fenômeno Trump e a anti-política

Hoje cedo, ao acordar por volta de 5:30 hs da manhã, escutei meio descrente determinada jornalista anunciar que Donald Trump havia sido eleito presidente dos Estados Unidos da América. Passada a primeira impressão, voltei à normalidade. Sabia que essa era uma possibilidade, um acontecimento potencializável na atual conjuntura. A vitória de Trump, contrariando as previsões da pesquisas,  representa um claro aviso de incêndio. É a demonstração mais exata de uma onda que rola pesadamente, causando impactos antes impensados por onde quer que passe. Há alguns meses atrás, os ingleses, para incredulidade geral, optaram por sair da União Europeia. O mundo ficou perguntando: "O que aconteceu?" Talvez esta não seja a pergunta mais precisa. É preciso mudá-la, redimensioná-la para: "Por que isso acontece?" Uma vez respondida esta pergunta, talvez cheguemos a uma iluminação sobre a vitória do fanfarrão apocalíptico Donald Trump.

Desde o final dos anos oitenta, com o fortalecimento das políticas neoliberais, o mundo entrou em um novo ciclo. O avanço da ofensiva neoliberal permitiu que mudanças contundentes transformassem completamente o tabuleiro geopolítico do planeta. O capitalismo nessa fase, tornou-se ainda mais concentrado, mais especulativo, enriquecendo os grandes oligopólios e massificando a pobreza. Tornando-a cada vez mais presente em vários países. Os países que implantaram o "estado de bem estar social" após a Segunda Guerra Mundial, tiveram que se desmobilizar socialmente. Esse movimento veio como um rolo compressor, gerando crises regionais e redundando no colapso vivenciado nos países centrais em 2008. 

Além desse fato, é importante entender que o neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, restrito às questões de mercado. O neoliberalismo é uma força  ideológica que criou um abismo entre o espaço público e o privado, fazendo diminuir a importância daquele e recrudescendo a importância deste. O público e o privado passaram a ser realidades que não se encontram, posto que valores como a meritocracia, o individualismo, a falta de solidariedade amplificaram-se e o esvaziamento das autoridades, da ideia de uma verdade objetiva, passaram a ser realidades plenas. O sujeito passou a experimentar a potência incontrolável do consumo e do lazer-coleção a qualquer custo. As questões mais gerais, que apontam para a vida coletiva, deixaram de ter a sua importância. 

Esse fenômeno também passou pela  ideia de "política". Preso ao mundo das aparências, o sujeito que vive na sociedade neoliberal não debate, não conversa sobre determinados temas. Ele não enxerga mais sentido nisso. Um niilismo globalizante passou a fazer parte do sistema que estrutura o seu mundo. Preso à força das imagens e da massificação das informações, o sujeito médio acha-se bem informado, sem saber que vive preso a uma ditadura uniformizante, que acaba por erigir uma sensação de que está consciente sobre si e sobre o mundo, não necessitando lutar por algo que envolva a coletividade.

Ora, é preciso entender como esse movimento se articula em um país como os Estados Unidos, que ainda não superaram determinados temas. Ainda há bastante paranoia na sociedade estadunidense - medo do resto mundo, como se todos estivessem contra eles; o racismo, a xenofobia etc. Só que agora, a globalização neoliberal trouxe problemas que outrora eram inexistentes. O sujeito médio daquela sociedade percebeu que algumas mudanças se efetivaram. Apesar da administração Obama ter reduzido o número de desempregados, houve um empobrecimento do país. Os Estados Unidos apesar de serem uma potência, já não estão sozinhos. Há outros países importantes no xadrez político. A China é um gigante econômico. A Rússia é uma potência bélica, herdeira do arsenal militar e atômico da União Soviética. Os governos democratas de Obama e Clinton não agradaram a esse sujeito que, geralmente, é religioso, conservador, averso a movimentos de esquerda; à imigração, ao modo de fazer política dos democratas. O lema de Trump ("Fazer a América grande novamente"), não foi escolhido de forma gratuita. Ele apontava justamente para essa fatia insatisfeita da população do país. Trump sabia o que dizia - e como dizia.

O português Boaventura de Sousa Santos afirma algo necessário sobre esse fato:

Na lógica da ideologia neoliberal dominante, a política, enquanto escolha entre opções ideológicas diferentes, tende a desaparecer. Como não há alternativa, os governantes não necessitam do consenso dos cidadãos, basta-lhes a resignação. A democracia de baixíssima intensidade consiste na conversão de diferenças ideológicas em diferenças de qualquer outro tipo que garantam o espetáculo da alternância. Surgem assim novas polarizações que se afirmam como as duas faces do sistema neoliberal: a face do sistema e a face do anti-sistema.

Trump é a materialização do anti-sistema, da desagregação, da implosão do establishment político. Ele encarnou durante a campanha o jocoso, o ridículo, o farsesco, o esdrúxulo e contra a isso não há defesas. Suas afirmações misóginas, xenófobas, racistas, preconceituosas, repletas de falta de bom senso não foram verbalizadas gratuitamente. Para que o neoliberalismo se robusteça ainda mais, como diz Boaventura, é necessário que a ideia anti-sistêmica, anti-política, também cresça como uma contraparte necessária do sistema. O radicalismo é uma arma poderosa e eficaz.

Este é um fenômeno muito comum em tempos de crise. Por isso, a ideia "de aviso de incêndio". A história já mostrou esse fato com ascensão de Hitler. Em momentos de crise, o discurso que eleva o radical, o inusitado, a palavra que aponta para a curva do anti-sistema ganha forte ressonância. O capitalismo global busca se organizar, vive a sua crise, sua agonia. Seu modelo excludente precisa de radicalismos para resolver as crises cíclicas. Seja nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina com suas democracias frágeis ou outro lugar do planeta, nota-se este fenômeno.

Nas eleições municipais ocorridas no mês passado aqui no Brasil, houve também um fortalecimento de candidatos muito parecidos com Trump. É o caso de João Doria, um milionário sem experiência política, em São Paulo. Um político jovem, experiente, com bons antecedentes, com uma inteligência viva como o Hadadd não conseguiu segurar a força do discurso anti-política de Doria. A esquerda tomou uma lavada dos candidatos conservadores com discursos anti-política, mas que representam "a velha política". 

Penso que caso a eleição presidenciável fosse hoje no Brasil, uma surpresa também poderia brotar em nosso meio. É necessário observar figuras "perigosas" e esdrúxulas como Bolsonaro. O feitiço que esse tipo de candidato gera deve ser entendido e não desprezado. Afinal, a história já mostrou  - e 2016 tem sido uma prova - que quanto mais se encarna um discurso empedernido, anti-minorias, mas mirando determinados temas - elevando alguns e criminalizando outros - maiores são as chances de vitória. Trump soube usar muito bem isso ao seu favor. E aí está posto o resultado para um mundo incrédulo e cínico.

quinta-feira, novembro 03, 2016

"Os Bruzundangas", de Lima Barreto

"A minha estadia na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria" p. 50

"Ninguém pode contrariar as cinco famílias que governam a província..." p. 119

Como explicitei há algumas semanas atrás, Lima Barreto é um escritor marginal. Existem inúmeros aspectos que podem ser constatados em sua prosa. Entre eles, pode ser observado a capacidade de reflexão política e social. Seus textos tomam como referência seu panorama histórico e social. Ele é um modernista antes do Modernismo. Aquela convenção dos estudiosos em situá-lo em uma escola literária anterior àquilo que se deu a partir de 1922, penso eu, não é das mais precisas. 

Em meu parco e singelo entendimento - e pelas leituras que fiz - entendo que Lima Barreto seja o grande fundador do Modernismo Brasileiro. A fortuna crítica de Lima é algo que merece toda a atenção. O autor nos faz pensar sobre o verdadeiro papel da literatura, que é de transfigurar o mundo; permitir reflexões a partir das grandes narrativas. É assim que o autor de O triste fim de Policarpo Quaresma nos revela a cidade, o cenário político, a vida intelectual, artística; as intrigas e vaidades dos sujeitos da elite; a nobreza doutoral do seu tempo. A vida dos subúrbios de um país que vivenciava uma experiência política nova com a Proclamação da República e com a Abolição da Escravatura, mas, antes de tudo, um país atrasado economicamente e sob vários outros aspectos ("É que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, vivendo o país de expedientes" p.50). 

É justamente nessa contingência que surge Os Bruzundangas, um texto satírico, que apresentava um país imaginário chamado Bruzundanga. Tal como em As Viagens de Gulliver, de Swift ou em A Utopia, de Thomas More, o narrador supostamente estivera nesse país e fizera observações agudas sobre a vida social, política, econômica; a ignorância dos ricos; a irrelevância da classe artística; o amadorismo extremado de determinados sujeitos metidos a sofisticados; a douta ignorância dos literatos, que produziam uma literatura com "sonetos rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos"(p.65). No fundo, percebia-se que Lima apontava a sua pena para o momento histórico em que vivia. Ou seja, tratava-se da conjuntura estrutural do que se vivia na República Velha. Nota-se nesse sentido, uma literatura com forte teor alegórico.

Curioso é perceber como Lima se refere aos políticos: "O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há". Esta reflexão permite uma relação com aquilo que se dá nos dias de hoje. Nos últimos acontecimentos políticos vividos no país e, que culminou com destituição da presidenta Dilma e o linchamento público do Partido dos Trabalhadores e de seu principal líder - Lula -, surgiu uma frase que revela o nível de ignorância ou a má fé de quem a criou: "O PT inventou a corrupção no Brasil". A corrupção no Brasil é uma pandemia histórica. A classe política é um agente parasita do erário. Ao se apropriarem indevidamente do fundo público, assalta-se o cidadão. É este o principal agente contribuinte para a manutenção do Estado. A riqueza de um país é produzida por meio do trabalho. Mas ao se assaltar o Estados, assalta-se o trabalho e o trabalhador.

Outra brasa soprada por Lima é o critério de escolha do presidente da República. Segundo ele, as figuras mais "medíocres", "provincianas", que tinham ojeriza ao povo e de inteligência "dubitável" eram as eleitas:

"Como dizia, porém, na Bruzundanga, em geral, o Mandachuva [Presidente da República] é escolhido entre os advogados, mas não julguem que ele venha dos mais notáveis, dos mais ilustrados, não: ele surge e é indicado dentre os mais néscios e medíocres. Quase sempre, é um leguleio da roça que, logo após a formatura, isto é,  desde os primeiros anos de sua mocidade até os quarenta, quando o fizeram o fizeram deputado provincial, não teve outro ambiente que a sua cidadezinha de cinco a dez mil habitantes, mais outra leitura que a dos jornais e livros comuns da profissão - indicadores, manuais, etc -; e outra convivência que não a do boticário, do médico local, do professor público e de algum fazendeiro menos dorminhoco, com os quais jogava solo, ou mesmo truque nos fundos da botica. [...] é este homem que empregou vinte anos, ou pouco menos, a conversar com o boticário sobre as intrigas políticas de seu lugarejo; é este homem cuja cultura artística se cifrou em dar corda no gramofone familiar; é este homem cuja única habilidade se resume em contar anedotas; é um homem destes, meus senhores, que depois de ser deputado provincial, geral, senador, presidente de província, vai ser Mandachuva na Bruzundanga"

Outro ponto a ser observado é a crítica à Constituição da República. Segundo Lima, a Constituição que vigorava era ultrapassada no entendimento da classe política e dos especuladores da Bruzundanga. Era uma constituinte imperial. Necessitava afinar-se com as coisas republicanas. Convoca-se para isso uma constituinte. Vêm os apaniguados concorrer dos vários recantos provincianos da Bruzundanga. Ao chegarem à Capital do país, há uma crise político-criativa. O que colocar na nova constituição? Quais debates, valores, deveriam se desencadear? Diante disso, surge uma pergunta honesta: "A quem devemos imitar?" Alguém sugere o país dos gigantes, uma referência aos Estados Unidos da América. Lima extrai a sentença "país dos gigantes" do livro "As viagens de Gulliver". E, assim, transplanta-se uma constituição liberal, para um país oligarca e aristocrático, que não havia passado por mudanças sociais significativas. O país passa a ser chamar República dos Estados Unidos da Bruzundanga. É lapidar a afirmação que se segue:

"A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa  passagem, e de um modo religioso. No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações.."

Os Bruzundangas foi lançado em 1922, postumamente. O ano de sua escrita é 1917. Vale lembrar que o significado de bruzundanga ou burundanga é: "Palavreado confuso; mistura de coisas imprestáveis; confusão, mixórdia, trapalhada; coisa de pouco valor; amontoado de coisas inúteis".

quarta-feira, novembro 02, 2016

Classe média: o fetiche do igual

Identifiquei-me com esta reflexão. É algo em que tenho pensado bastante ultimamente. Os últimos episódios da política  - e  que trará repercussões drásticas para o conjunto social da vida do brasileiro -, necessariamente tem a ver com identificação da classe média com a agenda das elites mandonistas do Brasil. Vale a pena ler o texto!

Há uns anos ouvi um podcast de rádio americana, não me lembro mais qual, em que o entrevistado daquele dia dizia que o fator determinante da pobreza – econômica, não de espírito – é a possibilidade de escolha. O pobre, dizia o entrevistado que também o era, muito mais do que carecer de coisas, pertences, bens, é privado de escolhas, de alternativas. E, salvo as exceções que sempre existem, a vida lhe impõe um caminho, muitas vezes sem bifurcações no percurso. O que o dinheiro compra, portanto, segundo o tal entrevistado, são escolhas. Fiquei pensando sobre isso muito tempo. Claro que se trata de uma dentre tantas formas possíveis de interpretação e que, de certo, é limitada. Mas vamos seguir nessa via, limitada que seja. Porque acho que ela traz insights.

De acordo com esse raciocínio de pobreza, por menor que possa ser minha identificação com essa classe amorfa chamada de média, de fato, é dela que eu vim. Eu cresci num lar de classe média. Tive oportunidades de escolhas. Muitas. Como a de ter uma infância e crescer na hora em que estava pronta pra crescer; a de estudar, o que e onde fazê-lo; as de viajar, trabalhar, aprender línguas, música, esportes, conhecer culturas diferentes, ser exposta à leitura, às artes; a de votar; a de não virar, cedo demais, nem esposa nem mãe; a de me relacionar com quem meu coração eleger; a de mudar de ideia, voltar atrás, andar pra frente, jogar tudo pro alto e começar de novo; a de viver da forma que é verdadeira pra mim. E isso é ouro. Alguns diriam que não tem preço, mas se isso fosse verdade, todos teriam um pouquinho pra si. O que sabemos não ser o caso.

As escolhas às quais tive acesso não estão disponíveis a todos e me foram concedidas, em grandíssima medida, devido à classe social à qual pertenço. Eu as tive porque outra pessoa não as teve. É uma lei básica e pervesa do capitalismo. Ao mesmo tempo, a classe média não é só uma fatia social; é uma cultura também. E uma das características constitutivas dessa classe cultural é o medo. A classe média é apavorada. Tem medo de perder suas regalias disfarçadas de segurança e estabilidade. Ela paralisa sua vida em função desse medo. Segrega. Empurra o diferente pra longe. Vota mal. Não quer pretos nas escolas dos filhos brancos. Nem a boca no fim da rua. Tem medo do flanelinha que cuida dos carros. Da puta. De sair do carro, de andar na rua. Acha que a riqueza máxima será, um dia, se separar do convívio com os pobres.


É uma cultura pobre de espírito. Chata. A ela pertencem a moral e os bons costumes. Vive de aparências e acha isso chique. E se tudo isso te parece apenas medíocre e inofensivo, não se engane: há garras e dentes. Pois é nela, na classe média, que é feita a engorda do ódio. É ela que legitima atrocidades. Movida pelo pavor, a classe média é capaz de qualquer coisa pra manter erguidas as barras que a aprisionam dentro do apartamento, enjaulada; dentro do carro, atrás de vidros blindados; dentro do bairro, onde todos são iguais. A personagem infantil de Pessoas Sublimes, peça que vi há umas semanas n’Os Satyros, em São Paulo, não sai de casa porque lá fora é muito perigoso. E já viu o que faz um bicho em perigo, acuado? Ele morde. Ele ataca.

Essa noção da classe média apavorada não é minha; tomei-a emprestada do documentário A Opinião Pública, do Arnaldo Jabor, lançado em 1967. Vale a pena assistir. Prometo que não tem nada a ver com o Jabor da Globo. É um registro das mudanças sociais pelas quais o Brasil passava na década de 1960. Uma época semelhante à de agora, quando um momento de abertura foi nocauteado por uma tenebrosa onda conservadora. Esse “medo” do qual fala Jabor nasce do que Marcia Tiburi chama de fetiche do igual, outra expressão que tomo emprestada – dessa vez do último romance dela, Uma fuga perfeita é sem volta, que estou acabando de ler. Os adeptos desse fetiche “amam o igual porque, na vida, só o que querem ver é espelho. O espelho que certifica que existem. Onde não há espelho, as pessoas põem ódio”.

O ódio. A força de uma classe média apavorada movida por ele, quando nas mãos da pessoa errada, pode ser monumental. A massa de manobra em que se transforma pode varrer uma sociedade, pode matar. E uma classe média assustada é tudo o que a direita mais aprecia e melhor sabe usar. Ela vai instigar ainda mais esse ódio que vem do medo, que por sua vez vem da não compreensão do diferente. Se a classe média brasileira não for sacudida de seu torpor, temos exemplos históricos palpáveis que mostram para onde esse discurso pode descambar. E a memória precisa ser exercitada, sempre, pra que a história não se repita.

Evitar repetições é o que um paciente encontra na análise. É o que se alcança com uma epifania. Com um momento de iluminação. Perceber essas repetições e fazer o furo, não reproduzi-las mecanicamente, liberta. Porque aí, sim, há escolha. E em tempos de uma classe média que tantas panelas bateu nas janelas – a imagem própria do desespero –, não parece haver escolha, mas mera reprodução. Por isso, em meio a essa embriaguez burguesa (classista, racista, machista, fascista), será preciso muita riqueza de espírito interior pra despertar do transe e exercitar a capacidade de discernimento. Pra perceber as bifurcações no caminho, as opções de desvio que existem, sempre.

Suspeito eu que a maneira de vê-las é olhar pro outro, pro diferente e, ao mesmo tempo, pra dentro – sem medo. Porque, no fundo, é a mesma coisa. Reconhecer o diferente é um ato íntimo. E só daí sairá algo novo.

sábado, outubro 15, 2016

"O mágico de Oz" (1939), de Victor Fleming

Fiquei durante muito tempo com intenções de assistir ao filme O mágico de Oz. Fi-lo ontem à noite. Desde então, não consigo parar de pensar sobre o filme. A princípio, a produção não parece ter nada de especial por dois motivos: (1) por ser um filme aparentemente datado com recursos técnicos que chamaram bastante atenção à época do lançamento; (2) é uma obra baseado em uma história infantil. Claro, neste segundo ponto a tese não se sustenta em sua fragilidade, pois há obras com feições infantis que acabam por se transformar em material para adultos também. É o caso de O pequeno príncipe, As crônicas de Nárnia ou Alice no país das maravilhas

O mágico de Oz é um filme que serve como alegoria para bastantes interpretações: religiosa, política, moral, filosófica etc. A história tem como personagem principal a menina Dorothy, uma órfã que mora com a tia em uma fazenda. Ela enfrenta os questionamentos e contradições próprios às crianças de sua idade. Em dado momento, os moradores da fazenda são surpreendidos por uma tempestade. Todos conseguem se abrigar, menos Dorothy e seu cãozinho (Totó). Procurando uma lugar para se proteger da tempestade, a jovem é atingida por uma janela que se desprende com a força do vento. Desmaia. Aos poucos, numa espécie de sonho, Dorothy é levada para o mundo mágico de Oz.

Lá se dão fatos extraordinários. A primeira diferença que se nota é o mundo colorido. Enquanto estava na fazenda, a cor predominante é o ocre, uma variação do marrom. No mundo de Oz as cores são vivas, como se esse mundo de lá fosse mais expressivo e realista que o mundo em que Dorothy vivia. A casa trazida pela tempestade cai em cima da bruxa do leste e liberta os pequenos munchkins dos feitiços maléficos da antagonista. A personagem é ameaçada pela irmã da bruxa do leste, ou seja, a bruxa do oeste. Observa-se com isso uma relação horizontal, representando os poderes terrenos. Por sua vez, a bruxa do norte, representa o bem e o caminho da bondade, da espiritualidade, da pureza. A jornada de Dorothy começa em uma espiral por caminhos de tijolos cor de ouro. Por sua vez, a espiral representa o furacão que a trouxera. A bruxa boa (do Norte) dá a missão para que a menina procure o mágico que vive em um castelo feito de esmeralda. Isso permitiria Dorothy voltar para casa.

Em sua viagem, a personagem encontra três importantes figuras: o Espantalho, que deseja um cérebro; o Homem de Lata, que deseja um coração; e um Leão covarde, que deseja coragem. Os três são convencidos por Dorothy a irem ao castelo do mágico. Lá eles poderão receber o que lhes falta.

Não pretendo continuar os detalhes, mas o que fica é uma obra polifônica, capaz de enfeitiçar pela qualidade. O filme representa um verdadeiro salto qualitativo na indústria cinematográfica de Hollywood. Firmou um tipo de qualidade plástica que ficou como modelo para muitos cineastas.

sexta-feira, outubro 14, 2016

"Recordações do Escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto e o Brasil

"Na redação era assim: escrevia-se, mediante ordem do diretor, hoje contra e amanhã a favor", p. 103

Lima Barreto é um dos mais importantes escritores brasileiros. Conhecer a sua obra e a sua vida gera uma admiração e, ao mesmo tempo, um senso de solidariedade com essa incrível personagem que descreveu com imensa sensatez as contradições de um país desigual e preconceituoso como é o Brasil. Lima é um brasileiro. Era gente do povo. Identificava-se com ele. Tinha a sua cor e sofreu como este mesmo povo. Sua inteligência e argúcia foram armas que permitiram que tivéssemos uma fotografia mais viva e realista da sociedade brasileira do início do século XX, na chamada República Velha. 

A literatura de Lima Barreto não está circunscrita ao seu tempo. É uma reflexão atemporal. Nela enxergamos as mesmas vicissitudes sociais que até hoje atrasam o Brasil. Curioso é perceber que após cem anos da sua vida e da escrita dos seus textos, Lima parece ainda está entre nós. É como se tivéssemos um retratista, um cronista a falar da política, da economia, do jogo ardiloso dos jornais, sempre a construir narrativas que ludibriam o povo e favorecem os ricos. 

Pois é seguindo esse impulso que o seu primeiro livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha é escrito. Nesta obra, Lima procura "cutucar" a vaidade daqueles que mandam no país, criticando o jogo de aparências que lhes é próprio. O autor narra a história de Isaías Caminha, um jovem sonhador que sai do Espírito Santo com destino ao Rio de Janeiro para tentar a vida. Isaías ambiciona tornar-se "doutor". (Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos..." Ou: "Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada"). Observe a crítica afiada do autor - e ainda bastante atual.

Vem sozinho. Não conhece ninguém na nova cidade. Deslumbra-se com as maravilhas da Capital Federal. Mas, aos poucos descortina-se sobre ele a realidade. O dinheiro acaba. Começa a passar fome. Perambula pela cidade. É confundido com um ladrão. Procura emprego. Não logra êxito. Quando a chance parece acenar-lhe, o dono do estabelecimento - um padeiro - não o aceita por causa da cor. Isaías experimenta a criminosa indiferença e o preconceito de uma sociedade que não acertou contas com a escravidão e que enxerga nos negros e seus descendentes uma condição inferiorizante. 

Apesar dos muitos reveses, Isaías acaba como "foca" de jornal, uma profissão subalterna. Mas é ali que ele observa os tipos mais finórios de uma sociedade atrasada e subserviente às elites europeias. O Jornal é O Globo, uma criação fictícia. Lima dirigia as suas críticas ao poderoso Correio da Manhã, o jornal mais influente da época. A narrativa, a partir desse ponto, torna-se um estudo do comportamento humano e social. Enxergamos a crítica feroz de Lima na pessoa de Isaías. São invectivas ácidas, acerbas; flechas saídas de um braço retesado e com a capacidade certeira. 

O autor toca em um dos pontos mais sensíveis da história republicana - o poder que a mídia exerce. A crítica suscitada é atual em sua problemática, pois a mídia continua a exercer um poder ainda bastante representativo no Brasil. Ela alimenta-se do sensacionalismo e sua atuação está assentada na violação à ética. O compromisso dos donos de mídia, ainda continua sendo em causa própria sob a conivência do poder público. É só observar como os acontecimentos políticos são tratados no nosso país. Emissoras são capazes de colocar e retirar presidentes. Robustecer a imagem de determinadas figuras e linchá-las diuturnamente a fim de que caiam em desgraça perante a opinião pública. Dois casos bastante emblemáticos podem ser citados. As duas deposições de presidentes da República que tivemos, a primeira em 1992 (Fernando Collor) e, a segunda, em 2016 (Dilma Rousseff), tiveram necessariamente a interferência da mídia na compreensão da sociedade; no modo como as opiniões são construídas.

Ou seja, nota-se que a crítica de Lima ainda continua bastante atual nesse sentido. O jogo hegemônico da mídia é uma arma dos poderosos para se perpetuarem no controle da sociedade. Caso curioso acontece nas Recordações. Diz Lima pro meio da observação de Isaías, que houve uma manifestação incitada pelo poderoso veículo de comunicação. O povo foi insuflado à indignação. Tratava-se de uma ação cega, "improvisada", "sem fisionomia", nas palavras do próprio escritor.

No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos de vitórias da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar a população. Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro, recusou-se a atirar sobre o povo. Eu não fui para casa, dormi pelos cantos da redação e assisti à tiragem do jornal: tinha aumentado cinco mil exemplares. (p.144)

O "povo", essa designação abstrata e imponderável, havia sido envenenado, manipulado, pelas intenções secundárias do operadores da redação. A crítica mordaz de Lima contra o poderoso jornal e a pessoa do seu proprietário, Edmundo Bittencourt, rendeu a execração do autor. O poderoso "barão" da mídia proibiu que o nome de Lima fosse citado sobre qualquer pretexto naquele veículo comunicativo. Essa injunção acabou sendo acatada pelos demais jornais cariocas. Isso acabou por impedir a descoberta do talento do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma. Um dos sujeitos mais conscientes da realidade brasileira do início do século experimentou aquilo que criticou. Os jornais possuem um poder terrível.

As dificuldades impostas, fizeram com Lima publicasse primeiramente as Recordações em Portugal. As portas haviam sido fechadas do lado de cá. No decorrer dos anos, o autor experimentou uma grande dificuldade para inserir os textos no cenário literário. Abandonava-se o autor pela crítica certeira, pela origem, pela cor e por uma suposta inabilidade para com a escrita. Sabe-se que isso é uma grande inverdade. Lima soube dar expressão a uma literatura modernista em sentido pleno. O autor já problematizava o país antes mesmo que o regionalistas de trinta o fizessem. É nesse sentido que o carioca mantém a sua atualidade e o seu poder penetrante na análise.

Assim, ler o Lima é descobrir o Brasil. É identificar-se com o drama brasileiro. Perceber o quanto somos tacanhos. O nosso atraso crônico. A arrogância, o preconceito e o autoritarismo de nossas elites.

Por esses dias, estou lendo Os bruzundangas, outra obra que revela o Brasil.

domingo, setembro 18, 2016

Sobre "A civilização do açúcar", algumas palavras

"Todos os momentos do cotidiano do açúcar marcavam-se pela presença do escravismo".

Antes que iniciasse o processo de industrialização com o desenvolvimentismo de Vargas, na década de 30 do século XX, a história econômica do Brasil sempre foi marcada pela monocultura agrária. Essa monocultura revelava a ausência de projetos da Metrópole para a Colônia e, mais tarde, da burguesia nacional dependente para com o país. 

Até 1930, o café era o principal produto exportado. Com a quebra da Bolsa de 1929, veio também o naufrágio de um  arranjo político, ou seja, o próprio naufrágio da República Velha (1889-1930). Antes disso, por quase duzentos anos, o açúcar foi o produto que envidou os maiores esforços da Coroa Portuguesa em relação a uma otimização que forçasse uma superprodução da Colônia. 

O açúcar construiu uma dinâmica social na Colônia. Foi o produto que se alastrou por vastas regiões do Nordeste brasileiro. A produção demandava uma mão-de-obra considerável. E é justamente daí que notamos sair, do açúcar, um modelo social que até hoje possui os efeitos na sociedade brasileira. 

Ao chegar ao Brasil, em 1500, Portugal não se direcionou prontamente à exploração das novas terras americanas. Foi somente após trinta anos, que houve um encaminhamento administrativo a fim de tornar a Colônia em algo rentável. O Brasil não foi visto como um país em que se podia começar um projeto de construção social equilibrado. A vasta região com florestas densas, rios enormes, um litoral belíssimo, com paisagens exuberantes, com uma pluralidade climática, passou a ser visto como uma "mina" capaz de enriquecer a mambembe nobreza portuguesa. A espoliação foi a estratégia; o saque, o modo de condução. O pacto colonial sujeitou o Brasil a uma relação servil com a Metrópole. A relação estabelecida impedia que houvesse qualquer possibilidade de organização social e administrativa da Colônia. Sua função era enriquecer a todo custo Portugal. Era como uma galinha dos ovos de ouro, que tinha que produzir cada vez mais, alimentada com palha. Oswald de Andrade percebeu isso muito bem em seu genial, picaresco poema:

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

As terras nacionais foram fatiadas e entregues aos donatários no sistema chamado de capitanias hereditárias. A capitania era uma mera otimização geográfico-administrativa cuja finalidade era tornar a "empresa colonial" mais rentável. 

Assim, o primeiro produto que surgiu foi o açúcar. Junto com essa mercadoria, surgiu uma estrutura social em torno desse produto. O engenho, lugar de produção do açúcar, consolidou, organizou a sociedade entre aqueles que se beneficiavam do cultivo e produção da cana-de-açúcar e aqueles que viviam à margem, sendo explorados nessa produção. Desde o princípio, ficou bem claro que os sujeitos vindos de Portugal não estavam dispostos a realizaram qualquer trabalho braçal. A contratação de trabalhadores também não gerou interesses. 

Dessa forma, Portugal buscou arranjar de outras formas "os braços" que moveriam as engrenagens econômicas da Colônia. O escravo passou a ser essa força, transformada em animal que só produzia. Era arrancado de sua cultura de forma violenta e desafricanizado. O transporte nos navios negreiros era realizado de forma desumana. Uma vez na Colônia, chegava a trabalhar doze horas ininterruptas. Dormia em condições adversas. Comia mal. Não era respeitado como um ser humano. Era comparado aos animais. Era uma propriedade do seu senhor, assim como os bois e os cavalos que pastavam nos campos. A vida útil de um escravo era de, no máximo, dez anos de trabalhos intensos. O número de escravos definia o status de um branco, assim, como hoje, o carro que temos revela um dado padrão social. Do comer ao vestir; do amamentar ao deslocar-se em uma liteira, era o escravo a figura que movia a sociedade. O trabalho manual, transigente e braçal jamais era realizado por um sujeito branco, tido como livre. Buscava-se qualquer ocupação, menos aquela que fizesse confundir o sujeito branco e livre com o escravo. Talvez, venha desse fato a gradação em torno da ideia de trabalho no Brasil. Geralmente, o trabalho intelectual é visto como mais digno do que o trabalho manual. O arquiteto é melhor avaliado que a faxineira na escala social. Em determinadas profissões (direito, medicina, psicologia), o sujeito que as exerce recebe o título de "doutor". Alguns setores da sociedade, principalmente as elites e a classe média, sedimentam muito bem essa relação.

Criou-se, assim, aquela denominação que Gilberto Freire intitula em seu livro mais famoso - a casa-grande e a senzala. A casa-grande era o lugar aristocrático por excelência. Era um espaço amplo, com um alpendre largo; colocada em lugar alto e ventilado; aglutinadora da família do senhor de engenho, que possuía as suas regras e erigia a imagem do chefe da casa como um senhor feudal. Os engenhos eram mini-feudos.  Um espaço de suseranagem e vassalagem.

Ora, uma ordem social perversa como esta, não resultará em um país organizado e solidário para com os seus cidadãos. O intelectual Jessé Souza, autor de A ralé brasileira e A tolice da inteligência brasileira, afirma que reside na ordem social brasileira uma concepção fecundada em Santo Agostinho de forte influência platônica. Possuímos o mundo do espírito, das coisas sublimes e o mundo feio da matéria, cuja constituição se efetiva com as "coisas" de menor valor e virtude. De um lado temos as elites, que preconizam a virtude, o ideal de beleza, de virtude, de ética; nesse mundo habitado pelos ricos e senhores, tudo parece resplandecer em beleza, em uma forte afirmação daquilo que é bom e legitima o bem. Por outro lado, o mundo material é o mundo da carne, do sexo, dos escravos, do trabalho, da dureza cotidiana; o mundo habitado pela mulheres, pelos homossexuais, pelas periferias. É o mundo feio, pecaminoso, que provoca azo para repulsa. 

A sociedade brasileira é violenta e perversa nesse sentido. A desigualdade possui um fundamento econômico, mas possui um forte fundamento teológico. Ao escrever A civilização do açúcar, Vera Lúcia Amaral Ferlini queria revelar onde está a gênese de nosso modo de ser. É olhando o passado que encontramos os indícios daquilo que somos no presente. 

quinta-feira, setembro 08, 2016

"Como conversar com um fascista" (de Márcia Tiburi), algumas consideraçãos

Há alguns dias atrás, ao chegar ao trabalho, um colega me interpelou quando enxergou o título e a capa do livro que eu portava: "Você está lendo isso?" Num gesto de incredulidade, tentei explicar - ou propagandear - os méritos do livro. Depois fiquei refletindo sobre aquela pergunta ousada. Tratava-se de "Como conversar com um fascista - reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro", de Márcia Tiburi. 

Não é saudável etiquetar as pessoas, reduzindo-as a meros cognomes empobrecidos que encerram grandes preconceitos. Mas, na indagação do meu colega não estava aquilo que o título do livro pretende tratar, lançar luz, abrindo possibilidades para reflexões? O gesto do meu colega não havia sido "fascista" ou "autoritário"? Certamente.

O livro de Tiburi, professora de filosofia e grande notória palestrante, conhecida pela agilidade mental e pela inteligência refinada, é um importante trabalho para entendermos esse momento nebuloso por que passa o Brasil. O Brasil não é um país fascista. Fascistas são ações de determinados setores da sociedade, que se deixaram levar por uma narrativa absurdamente perigosa como resultado da luta de classes existente no seio de nossa sociedade e que ganhou paroxismos dramáticos desde a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014. 

Fascismo, aliás, é uma palavra com muitas nuances e que gera excessivas controvérsias. Conforme explica Rubens Casara na apresentação do livro, a palavra fascismo vem de fascio (do latim fascis), "símbolo da autoridade dos antigos magistrados romanos, que utilizavam feixes de varas com o objetivo de abrir espaços para que passassem (exercício de poder sobre o corpo do indivíduo que atrapalha o caminho). Em sua origem, portanto os feixes eram instrumentos a serviço da autoridade e, por essa razão, passaram a ser utilizados como símbolos do poder do Estado". 

Com o tempo, essa força anti-oposição, ou seja, que busca tirar da frente tudo aquilo que se mostre como obstáculo ou resistência, tornou-se em ideologia, em força que se alastra no tecido social. Assim, o fascismo é uma ideologia "da negação", pois condena e suplanta toda forma de resistência criativa e multicolorida. O fascismo é enviesado, cinzento, possui um esquema que busca a construção de uma ideologia total, que não respeita as diferenças. Por sua vez, a democracia é capacidade de reconhecimento do plural, do colorido, do movimento; a democracia é a celebração das liberdades e das garantias fundamentais. Enquanto o fascismo tende pelo imobilismo, pela afasia social, a democracia prima pela dança que celebra o direito que pertence a mim e que pertence ao outro. Assim, eu e outro, sujeitos de direitos, buscamos conviver e construir um pacto que eleva a nossa capacidade de sermos humanos. Ou seja, a democracia é a possibilidade mais elevada que já surgiu, capaz de dignificar o eu diverso que existe em mim e que existe no outro. 

É a partir dessa compreensão que o livro de Tiburi busca lançar suas reflexões. A democracia é o mapa que estrutura suas reflexões. A partir dessa referência, temas caros à vida democrática passam a ser pensados de forma instigante. O papel da mídia, o aborto, o direito das mulheres, o estupro como prática social - e "as mulheres como seres estupráveis") etc. 

Penso que a reflexão mais cara, mais densa e instigante - entre as muitas que o livro constrói - gira em torno da compreensão de quem é o outro e sobre o poder revolucionário da linguagem. O outro numa perspectiva fascista é um obstáculo relativo. Quando afirmo isso, quero dizer que existem dois caminhos para outro o numa perspectiva fascista: ou se é por nós, assumindo nossa agenda estreita e uniforme, ou se é destruído, disciplinado pela violência, seja ela física ou simbólica. Acredito que o que se tem visto no Brasil ultimamente passe por isso. A linguagem no mundo fascista é algo necessariamente importante. É justamente ela que cria dogmas, efeitos, impele às crenças, edifica heróis e constrói diabos. Ou seja, a linguagem é importante para erguer propagandas e criar consensos. Ela é é capaz de cimentar o prédio do edifício social e abalar ou fortalecer estruturas.
E nesse sentido é importante que se entenda que a compreensão de quem é o outro é imensamente importante, pois o outro é sempre o mistério, o incontido, o não revelado. Ou seja, aquilo que eu não sou, aquilo que é parte em que não habito. Habito em mim. Tenho a tendência de colocar as minhas feições naquilo o qual já estou acostumado. Tendemos a nos acostumar com os eventos. Isso gera conforto. Ao falarmos de determinado acontecimento, determinado lugar, determinada pessoa, buscamos sempre emitir uma opinião que mostra mais a mim do que aquilo de que busco falar. É velha máxima que "aquilo que Pedro fala de Paulo, diz mais sobre Pedro do que de Paulo". Mas o outro é sempre o outro. O outro é possibilidade.

Somos treinados a entendermos que o outro é o "errado", que outro é "o inferno". O outro é "o louco", o "suicida". O "burro", o que "nada sabe", "o imoral". E nós, os detentores da virtude. O outro é sempre território a ser colonizado pela minha ingerência, pela força de minha fala, de minha impulsividade. Assim, qualquer debate, possibilidade de diálogo torna-se algo impensado. Se o diálogo é um exercício praticado por sujeitos maduros e que praticam o respeito mútuo, o diálogo com o fascismo é algo impraticável. Pois a diversidade, o plural, as várias faces de uma ideia, de um assunto não cabem na agenda do fascista.

Dificuldade instala-se pelo fato, como afirma o livro, de que "a política é uma experiência da linguagem". Ela é gestada no encontro. Na sobriedade dialética de sujeitos que entrelaçam a possibilidade de compreensão em um mundo em que sujeitos celebram o entendimento. O diálogo é a celebração da capacidade de respeitar o outro. Quando não há diálogo, o potencial febricitante do conflito pode se tornar em violência, sendo que esta pode se ramificar de diferentes formas.

O livro de Márcia Tiburi é para ser pensado, debatido; para se tornar fonte para leituras constantes. à medida que ia lendo, marquei os capítulos que mais me chamaram a atenção. Pretendo voltar a visitá-los de forma avulsa em momentos não programados. A reflexão da Márcia é provocativa e necessária.

quarta-feira, agosto 31, 2016

Um golpe nos sempre golpeados...

O Brasil se tornou uma país menor no dia de hoje. 31 de agosto será um dia para ser lembrado pelos próximos anos. Não serão lembranças boas, positivas. Quando olharmos para trás, sentiremos um profundo asco do quanto somos tolos e mentecaptos. Talvez daqui a cem anos os estudiosos, escrevam nos livros: "E, assim, aconteceu, mais uma vez, um golpe das aristocracias caducas no povo brasileiro".

O Brasil é um país de rupturas institucionais. Mas é importante entender que essas rupturas não são construídas em benefício do povo. As rupturas se constituem em um modo de operação de nossas elites, que desde que este país existe, estão entranhadas no Estado em um parasitismo impiedoso. A coisa pública nunca foi pública neste país. As aristocracias sempre usurparam o fundo público, resultado do trabalho dos brasileiros, não prestando contas a esses mesmos trabalhadores. É importante salientar que a República foi fundada com um golpe. As aristocracias não se sentindo mais satisfeitas com o Imperador Pedro II, entenderam que era necessário iniciar um outro processo sem que houvesse qualquer participação popular. O povo sempre foi alijado dos processos. Nunca teve oportunidade de ser chamado para participar das grandes decisões capazes de modificar a vida social. Até mesmo as passeatas que acontecem são resultado da manipulação midiática a favor das elites. Mas, quando o povo se insurge contra as injustiças é duramente reprimido.

A não participação popular nos momentos políticos críticos é um termômetro da alienação do povo a respeito de temas políticos. Escuto professores afirmando que "político é tudo igual, político não presta", uma das argumentações mais pobres e infantis que se possam construir e que está na boca de milhões de brasileiros.  Já escutei muitos colegas de profissão afirmando essa frase perigosa e que levita no lugar comum. Uma profunda, imensa piedade a esses sujeitos que não entendem o que uma ruptura democrática representa para um país, sobretudo um país como o nosso. 

Fico pensando nas crianças, nos jovens, nas mulheres, nos negros, nos velhos, índios, gays, quilombolas que são as principais vítimas imediatas das políticas criminosas que virão pela frente. Compadeço-me daquelas pessoas que ainda não entenderam a gravidade do que aconteceu hoje no Brasil. A sanha golpista afugentou o otimismo. 61 canalhas acumpliciados contra o povo, julgaram uma presidenta inocente e rasgaram os preceitos mais elementares do Estado de Democrático de Direito. 

Diante de um momento tão sério, resta-nos apenas uma decisão: a politização radical, o estudo, a leitura, a resistência contra o fascismo e suas derivações; a serenidade para reconhecer que somos um país em que as instituições são frágeis; que a sua classe média é cega, obtusa e alienada; um país que não se leva a sério; que possui uma aristocracia subalterna ao grande capital, pária, repleta de chefetes do grande imperialismo, lacaios e serviçais, capazes de massacrar os pobres, a gente comum, para terem os seus interesses atendidos. 

Como diz Darcy Ribeiro em O povo brasileiro, numa afirmação profética de grande pensador:

"Não é impensável que a reordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força".

Mais uma vez, isso ficou provado no dia de hoje. Triste. 

domingo, agosto 28, 2016

Uma governanta inocente condenada por um bando de corruptos - Por Leonardo Boff

Era uma vez uma nação grande por sua extensão e por seu povo alegre embora injustiçado. Em sua maioria sofria na miséria, nas grandes periferias das cidades e no interior profundo. Por séculos era governado por uma pequena elite do dinheiro que nunca se interessou pelo destino do povo pobre. No dizer de um historiador mulato, ele foi socialmente “capado e recapado, sangrado e ressangrado”.

Mas lentamente esses pobres foram se organizando em movimentos de todo tipo, acumulando poder social e alimentando um sonho de outro Brasil. Conseguiram transformar o poder social num poder político. Ajudaram a fundar o Partido dos Trabalhadores. Um de seus membros, sobrevivente da grande tribulação e torneiro mecânico, chegou a ser presidente. Apesar das pressões e concessões que sofreu dos endinheirados nacionais e transnacionais, conseguiu abrir uma significativa brecha no sistema de dominação permitindo-lhe fazer políticas sociais humanizadoras. Uma Argentina inteira saíu da miséria e da fome. Milhares conseguiram sua casinha, com luz e energia. Negros e pobres tiveram  acesso, antes impossível, ao ensino técnico e superior. Mais que tudo, porém, sentiram resgatada sua dignidade sempre negada. Viram-se parte da sociedade. Até podiam, em prestações, comprar um carrinho e tomar até o avião para visitar parentes distantes. Isso irritou a classe media, pois via seus espaços ocupados. Daí nasceu a discriminação e o ódio contra eles.

Ocorreu que nos13 anos de governo Lula-Dilma o Brasil ganhou respeitabilidade mundial. Mas a crise da economia e das financias, por ser sistêmica, nos atingiu, provocando dificuldades econômicas e desemprego que obrigou o governo a tomar medidas severas. A corrupção endêmica no país densificou-se na Petrobrás, envolvendo altos estratos do PT mas também dos principais partidos. Um juiz parcial, com traços de justiceiro, focou, praticamente, apenas o PT. Especialmente a mídia empressarial conservadora conseguiu criar o esteriótipo do PT como sinônimo de  corrupção. O que não é verdade, pois confunde a pequena parcela com o todo correto. Mas a corrupção condenável serviu de pretexto às elites endinheiras e seus aliados históricos, para tramar  um golpe parlamentar, pois mediante as eleições jamais trinfariam. Temendo que esse curso voltado aos mais pobres se consolidasse, decidiram liquidá-lo. O método usado antes, com Vargas e Jango, foi agora retomado com o mesmo pretexto “de combater a corrupção”, na verdade, para ocultar a própria corrupção. Os golpistas usaram o Parlamento no qual 60% estão sob acusações criminais e desrespeitaram os 54 milhões de votos que elegeram Dilma Rousseff.

Importa deixar claro que atrás desse golpe parlamentar se aninham os interesses mesquinhos e anti-sociais dos donos do poder, mancomunados com a imprensa que distorce os fatos e sempre se fez sócia de todos os golpes, juntamente com os partidos conservadores, com parte do Ministério Público e  da Polícia Militar (que substitui os tanques) e  uma parcela da Corte Suprema que, indignamente, não guarda imparcialidade. O golpe não é só contra a governanta, mas contra a democracia com viés participativo e social. Intenta-se voltar ao neoliberalismo mais descarado, atribuindo quase tudo ao mercado que é sempre competitivo e nada cooperativo (por isso conflitivo e anti-social). Para isso decidiu-se demolir as políticas sociais, privatizar a saúde e  educação e o petróleo e atacar as conquistas sociais dos trabalhadores.


Contra a Presidenta não se identificou nenhum crime. De erros administrativos toleráveis, também feitos pelos governos anteriores, derivou-se a irresponsabilidade  governamental contra a qual aplicou-se um impeachment. Por um pequeno acidente de bicicleta, se condena a Presidenta à morte, castigo totalmente desproporcional. Dos 81 senadores que vão julgá-la mais de 40 são réus ou investigados por outros crimes. Obrigam-na a sentar-se no banco dos réus, onde seus algozes deveriam estar. Entre eles se encontram 5 ex-ministros.

A corrupção não é só monetária. A pior é a corrupção das mentes e dos corações, cheios de ódio. Os senadores pro impeachment têm a mente corrompida, pois sabem que estão justificiando uma inocente. Mas a cegueira e os interesses corporativos prevalecem sobre os interesses de todo um povo.      

Aqui vale a dura sentença do Apóstolo Paulo:”eles aprisionam a verdade na injustiça. É o que atrai a ira de Deus”(Romanos 1,18). Os golpistas levarão na testa, pela vida afora, o sinal de Caim que assaninou seu irmão Abel. Eles assassinaram a democracia. Sua memória será maldita pelo crime que cometeram. E a ira divina pesará sobre eles.

Leonardo Boff é ex-professor de Ética da UERJ e escritor.

terça-feira, agosto 09, 2016

Sobre o "desfazer" anos - de acordo com Rubem Alves

Rubem Alves, o mineiro sensível de Boa Esperança-MG, sempre foi uma referência delicada para mim. Desde a primeira vez que li o seu texto, nunca mais fui o mesmo. Com ele passei a perceber que existe um gesto invisível, um movimento silencioso, que, às vezes, mora nos interstícios das coisas. É preciso ter humildade para perceber. Ler Rubem Alves é treinar o olhar. É ter a possibilidade de endireitar aquelas ramificações invisíveis que nos ligam ao mundo real e que faz dele "uma metáfora para alguma coisa", evocando a fala do carteiro a Pablo Neruda, no filme O carteiro e o poeta. É, por isso, que nunca deixei de lê-lo. De aprender com a sua pedagogia provocativa, capaz de nos tirar do lugar-comum.  

Pois, recordo-me de um episódio em que li uma das suas crônicas, um exercício que é sempre humanizante. Nessa crônica, ela comentava sobre a possibilidade de "desfazer" anos em seu aniversário. Essa ideia pouco comum, andava na direção contrária à compreensão que, geralmente, as pessoas possuem: de que à medida que o tempo passa, vou "fazendo" anos. Hoje, quando completo mais um ano de vida, bateu-me o desejo de ler mais uma vez esse bonito texto. Achei-o no site da Folha. 

Está abaixo:

Desfiz 75 anos... - por Rubem Alves

As velinhas acesas fincadas no bolo não querem morrer, mas elas vão ser mortas por um sopro que apaga a vida

MINHA FORMAÇÃO filosófica impõe-me o uso preciso das palavras porque as palavras devem revelar o ser. E é assim, usando de forma precisa as palavras, comunico aos meus leitores que ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos...

Haverá leitores que se apressarão a corrigir meu uso estranho, nunca visto, da palavra "desfazer", atribuindo-o, quem sabe, a um início do mal de Alzheimer. Todo mundo sabe que, para se anunciar um aniversário, o certo é dizer "fiz" tantos anos. No meu caso, "fiz" 75 anos...

Mas o verbo "fazer" sugere algo que aumenta, um crescimento do ser, o artista e o artesão "fazem"...
Mas, que ser aumenta com a passagem do tempo, esse monstro que devora os seus filhos? O que aumenta é o vazio. Esses anos que o aniversariante distraído anuncia como anos que ele fez são, precisamente, os anos que ele desfez, o tempo que já passou, que deixou de ser, os anos que o tempo devorou.

Por isso acho um equívoco filosófico perguntar a alguém: "Quantos anos você tem?". O certo seria perguntar "quantos anos você não tem?". E ela responderia "não tenho 42 anos", "não tenho 28 anos". Porque esse número de anos indica precisamente os anos que ela não tem mais. Nos aniversários, então, a maneira correta de se dirigir ao aniversariante é perguntando-lhe "quantos anos você está desfazendo hoje?".

Com base nessas reflexões filosóficas acho extremamente estranho e mesmo de mau gosto esse costume de o aniversariante soprar as velinhas acessas para que elas se reduzam a um pavio negro retorcido. Aí, nesse momento, todos gritam e riem de alegria e cantam o "Parabéns pra você", em louvor a essa "data querida..."

Bachelard, no seu delicadíssimo livro "A Chama de uma Vela", que nunca será best-seller, nos lembra que uma vela que queima é uma metáfora da existência humana. Há alguma coisa de trágico na vela que queima: para iluminar, ela tem que morrer um pouco. Por isso ela chora, e suas lágrimas escorrem sobre o seu corpo sob a forma de estrias de cera.

Uma vela que se apaga é uma vela que morre. Algumas velas se consomem todas, morrem de pé, têm de morrer porque a cera já se chorou toda. Outras morrem antes da hora -elas não queriam morrer-, mas veio o vento e a chama se foi.

As velinhas acesas fincadas no bolo não querem morrer. Elas vão ser assassinadas por um sopro. O sopro que apaga as velas é o sopro que apaga a vida...

Por isso não entendo os risos, as palmas e a alegria que se segue ao sopro que apaga as velas. Uma vela que se apaga é um sol que se põe, disse Bachelard. E todo pôr-do-sol é triste... Uma vela que se apaga anuncia um crepúsculo.

Por isso eu prefiro um ritual diferente, ritual que é uma invocação. Eu acendo uma vela pedindo aos deuses que me dêem muitos anos a mais de vida, esses anos que se seguirão, que são o único tempo que realmente possuo...

Assim fiz, acendi uma vela, meus amigos à minha volta. Que coisa boa é ter amigos, especialmente quando o crepúsculo e a noite se anunciam!

Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas cerebrais. Somos humanos, permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a esperança da alegria. Desfeita a esperança da alegria, a vela se apaga e a vida perde o sentido.

segunda-feira, agosto 08, 2016

Contos de Kolimá - livro 2 - "A margem esquerda"

Voltei ao texto de Varlam Chalámov. Como afirmei há algum tempo atrás, pretendo ler os seis livros que serão lançados pela Editora 34. Até agora saíram três. Vou para o segundo. Não há como ler Chalámov e não sair com uma experiência amarga e realista sobre os limites da natureza humana. Em Chalámov passamos a entender que escrever é um forma de resistência, de manter-se vivo, de suportar a facticidade da história, mesmo quando ela nos marca e deixa em nós o seu gosto amargo.

O russo foi levado ao inferno duas vezes, ou seja, foi preso duas vezes e enviado para Kolimá - região afastada da Sibéria - acusado de atividade contrarrevolucionária. Esteve no mundo subterrâneo, na casa dos mortos, dos degredados. São memórias que revelam como o homem pode se tornar o lobo do próprio homem. Poucas coisas na história da humanidade podem ser comparadas às experiências vivenciadas nos campos gelados de Kolimá. Vê-lo narrar com frieza e ataraxia, mostra-nos o quanto ele resistiu e manteve-se sóbrio. 

O escritor foi uma daquelas existências afeitas às grandes tragédias, aos grandes infortúnios que seguem determinadas figuras. Ao regressar após vinte anos em degredo, é enxotado pela esposa que manda que ele pegue os badulaques pessoais e siga para o outro lugar. Sou capaz de enxergá-lo escrevendo, sozinho, os seis tomos de Os Contos de Kolimá. Sua memória privilegiada foi capaz de esponjar os fatos, as dores lancinantes provocadas pelo infortúnio de uma existência condenada ao trabalho forçado, à má alimentação, ao frio, aos insetos, à sujeira, ao escorbuto, à infâmia, ao olhar torto e desconfiado dos lacaios do regime soviético. 

O conto de abertura - O procurador da Judeia - é uma aula de serenidade, de quem aprendeu a conviver com o sofrimento; de quem já se acostumou com todo o espectro de desgraças; de quem já viu aquilo que seres médios não imaginam. A narrativa conta de um navio que transporta três mil prisioneiros que são tratados como monturo. Milhares já haviam morrido e são jogados em valas-comuns, sem que se preocupe com suas histórias pessoais. Chalámov escreve assim:

"... Em cinco de dezembro de 1947, o vapor KIM entrou na baía de Nagáievo com uma carga humana - três mil presos. Durante a viagem os presos fizeram um motim, e as autoridades, para enfrentá-los, decidiram inundar de água todos os porões. E tudo a um frio de quarenta graus negativos. O que é uma queimadura de gelo de terceiro, quarto grau..."

São por meio desses enxertos de acontecimentos com feições de surrealidade, que encontramos o resultado do trabalho narrativo de Chalámov. A leitura do seu texto nos cura. E isso é paradoxal. Coloca-nos diante de uma maturidade, de uma serenidade que nos instrumentaliza para resistir aos grandes reveses. Em Chalámov, aprendemos que "o medo", como ele mesmo falou, "é um sentimento vergonhoso e depravador, que humilha o homem". Assim, existe uma beleza silenciosa, graciosa, mesmo em meio à tragédia e ao horror. Chalámov consegue destilar equilíbrio mesmo em meio à loucura; consegue a sobriedade quando os homens desvairavam. Seu texto é um sopro de vida em meio ao asfixiamento físico e moral de uma época e serve como reflexão, como um daqueles ensaios de Montaigne. Em Chalámov, ainda, vemos quando a vida perde completamente o seu valor e se passa a conviver com a banalidade do mal. 

domingo, agosto 07, 2016

Mais um texto de Jack London - "O vento do Norte"

Jack London (1876-1916) bem à vontade.
A natureza tem mil maneiras de recordar ao homem que ele é mortal e de o convencer disso (p. 104)


Jack London é um daqueles escritores que, ao iniciarmos a leitura do seu texto, somos fisgados, presos por sua prosa dinâmica, enxuta, ágil. Jack London é o pseudônimo para John Griffith Chaney, sujeito cujas qualidades e iniciativas o tornam uma figura atraente. Ao longo de sua curta vida (quarenta anos), esse grande personagem da literatura estadunidense acumulou largas e ricas experiências. Se observamos o rosário de atividades exercidas - vendedor ambulante, pescador de ostras, escritor, jornalista, ativista social, mineiro, marujo, viajante, dono de embarcação, notamos que sua capacidade criativa estava ligada a essa potência inquieta que o movia. 

É de se admirar que em apenas vinte e três anos, escreveu mais de cinquenta livros. Alguém poderia questionar as qualidades dessa produção. Todavia, o que se deve afirmar é que London era um narrador poderoso. Sua mente inquieta parecia uma usina inesgotável de fantasia. Segundo informações sobre a sua controversa morte, o escritor teria cometido suicídio; isso aos quarenta anos, quando a vida se enuncia para acontecimentos mais sublimes; quando a maturidade se mostra sólida e as experiências vividas se sedimentam para gerar as grandes reflexões. 

Pois, terminei a leitura do seu livro O vento do Norte, que encontrei na Estante Virtual pela bagatela de pouco mais de cinco reais. Trata-se de um livro de contos. As histórias estão cobertas pela neve do Norte - do Klondike, uma região do Yukon, no noroeste do Canadá, a leste da fronteira com o Alasca. A região é marcada pelo clima rigoroso, tendo períodos quentes e úmidos, durante o verão, e um inverno inclemente. Nessa região, na década de 90 do século XIX, houve a famosa Corrida do Ouro. Cidades inteiras se esvaziaram por causa das migrações. E, de repente, naquela região impiedosa, indivíduos morriam por causa da escassez de víveres. Havia aqueles que conseguiram o tão sonhado ouro; outros, por sua vez, voltaram famélicos e humilhados. É o caso de Jack London, que esteve no Klondike à procura de ouro.

Acontecia um processo curioso com o escritor: ele bebia, sorvia as paisagens, os tipos humanos. Nas viagens, por exemplo, que fez ao Japão ou à Austrália, transformou em histórias bem contadas e urdidas. Pois as histórias que são contadas em O vento do Norte, passam-nos um pouco dessa atmosfera gelada. São contos, por exemplo, como O pesadelo que conta a história de um sujeito paranoico e ganancioso. Vivia à ao longo de uma estrada. Geralmente, alugava a sua cabana para viajantes que queriam se hospedar. O pagamento era feito em ouro. Ele conseguiu acumular mais de vinte quilogramas do metal amarelo. Mas havia um problema: quanto mais ele ganhava, mais era acometido por uma sonho terrível. Todas as noites um sujeito com uma cicatriz horrível aparecia em seus sonhos tortos. Roubava o seu precioso metal e em seguida fulminava-o mortalmente. 

Certo dia, eis que aparece o misterioso sujeito com a cicatriz horrenda. O dono da choupana se ver congelado por aquela conspiração coincidentemente terrível - talvez profética. O visitante deseja apenas passar uma noite. Quando este está dormindo, o dono do estabelecimento amarra-lhe e passa-lhe a corda ao pescoço. Empunha uma arma contra ele. Cansado por conta da energia despendida, tira um pequeno cochilo. Ao acordar, olha para a sua bolsa e não encontra a sua preciosidade, a valiosa trouxa que havia escondida junto a si em uma bolsa. Acorda o sujeito com a cicatriz. Faz inquirições. Questiona-o. O visitante nega saber qualquer coisa. O dono do estabelecimento resolve matá-lo com a sua espingarda. Entrementes, não consegue. Enquanto dormia, colocara parte de sua mercadoria valiosa no cano da espingarda, pois tencionava escondê-la do viajante com a cicatriz. Ao puxar o gatilho, o tiro sai pela culatra: a espingarda explodiu em sua cara. O homem com a cicatriz procura por toda a casa e escava a preciosidade que havia sido escondida nas frestas mais impensáveis e vai embora com o ouro acumulado durante um bom pedaço de tempo.

London impressiona pela forma como escreve. Tudo nele converge para um fim, cuja grande preocupação é aglutinar em um fluxo esse fio veloz que torna um texto especial. Isso ele sabia e fez como ninguém ao longo de sua curta vida, todavia grande em realizações - principalmente literárias.