A análise é precisa. Vivemos tempos difíceis, daqueles de fascismo
escancarado. A Constituição de 88 ao declarar que somos um Estado
Democrático de Direito, deu uma "dignidade" e ao mesmo tempo uma
"tarefa" ao Estado e à sociedade brasileira para a qual ainda não
estávamos preparados. Passamos da Ditadura à Democracia sem entendermos
de fato o que isso significava. De repente, saímos de uma Ditadura e
mergulhamos em um "espaço" que eleva o debate, que consagra os Direitos
Humanos como garantias fundamentais. Todavia, passou a existir um espaço
absurdo entre o proclamado pela Constituição e o vivido pela sociedade
brasileira.
O Brasil é um país violento e que possui no seu imaginário
uma acepção pouco afável para com aqueles que, também, formam o corpo
social. O "homem cordial", sempre pronto a acolher, a recepcionar, de
Sérgio Buarque de Holanda é um mito. É só observar como o Estado
brasileiro tratou as manifestações, as insurreições populares em sua
história. Cito apenas três: o Quilombo dos Palmares, Canudos e os
cangaceiros de Lampião. Nos três exemplos, a violência foi praticada de
forma radical. Palmares foi aniquilado e seus líderes destroçados. Zumbi
teve a sua cabeça cortada e exposta em Recife. Canudos foi uma das
maiores genocídios praticados pelo Estado Brasileiro em sua história.
Mais de 30 mil brasileiro foram mortos. No caso de Lampião, como se não
bastasse o barbarismo da morte, ainda houve uma exposição pública das
cabeças dos miseráveis mortos, como que para dizer: "É assim que
tratamos o diferente em nosso país". Outros casos poderiam ser citados
como, por exemplo, O contestado ou a Inconfidência Mineira, os mais de
trezentos anos de escravidão. Ou seja, a sociedade brasileira é
violenta. Ela carrega em seu interior uma noção beligerante para com o
diferente. Confunde-se "justiça" com "justiçamento". Atualmente, esse
"juízo do carrasco", que estava adormecido, acordou bruscamente como um
vulcão com grande força eruptiva.
Vendo a reportagem pela televisão,
senti-me mal. Sabia que havia algo de estranho no modo como estava sendo
veiculada. O texto apenas confirmou minha desconfiança. Os fogos de
artifício representam "o retumbar da ignorância", a exatificação do
quanto somos violentos. Uma comemoração basbaque e, ao mesmo tempo,
sanguinária, de que a justiça está sendo feita. Aconteceu isso com o
golpe parlamentar contra a Dilma, sem perceberem que era o Direito que
estava sendo violado. É importante lembrar que Sergio Cabral e Garotinho
são dois políticos que possuem um histórico obscuro. Mas, o que está em
jogo não é somente a trajetória política dos dois. O debate está em
torno de como a mídia trata/tratou a prisão preventiva de cada um deles.
No Brasil, temos o seguinte rito: (1) o Ministério Público investiga,
recolhe supostas e eventuais provas; pede ao Judiciário o indiciamento
do investigado. O Judiciário decreta a prisão cautelar; (2) a mídia faz
um trabalho sujo de difamação do sujeito, ou seja, o sujeito é "malhado"
como o Judas em sábado de aleluia, numa clara violação do Estado
Democrático de Direito. Isso cria um juízo moral em torno do caso. (3)
quando o juiz vai julgar o caso, ele é coagido pela opinião pública,
mesmo que não haja provas robustas ou indício de materialidade, a
condenar o sujeito. Se o Estado não condenar, desacredita-se da justiça e
do Estado. Em um Estado Democrático de Direito, as garantias
fundamentais são respeitas: direito ao contraditório, ampla defesa,
presunção de inocência. Ou seja, até que o julgamento aconteça, o
sujeito está sendo acusado, mas tem o direito de construir a sua defesa,
por isso, não pode ser culpabilizado antes do tempo.
Direito é um tema
sensível. Geralmente, entende-se que Direito é apenas aquilo que
concerne ao Judiciário, aos advogados, às leis. Não. A sociedade também
faz o Direito. E o que temos visto no Brasil é uma acintosa reversão,
uma involução dos direitos fundamentais, que são aqueles, mínimos que
sejam, capazes de ofertarem a qualquer sujeito, independentemente de sua
cor, religião, origem social, opção sexual, discernimento ideológico, a
capacidade de serem considerados humanos. Assustamo-nos com a ação dos
agentes puxando o Garotinho pela perna (novamente, é preciso diferenciar
o homem político e o paciente que estava em uma maca, precisando de
cuidados), mas esse é o tratamento que muitos brasileiros e brasileiras,
que vivem nas periferias têm todos os dias, sem que a mídia esteja lá
para mostrar. São criaturas anônimas que sofrem com a violação de
garantias mínimas que as tornem humanas. E, num processo dialético
consequente, essa mesma violência é passada para a sociedade, alimentada
pela mídia, represada nas entranhas e avolumada em grande poupança pelo
senso comum. Resultado: temos um quadro social dramático de insegurança
e sensação de insegurança.
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