terça-feira, abril 28, 2009

O Outro - Por Jorge Luis Borges

O conto que ora posto dispensa apresentações, assim como o seu autor - Jorge Luis Borges. Serei frugal no texto de apresentação deste magnífico documento literário. O Outro revela muito da temática trabalhada por Borges nos seus textos, o duplo. O escritor argentino é, em sua essência, labiríntico, o que se deve ao fato de seus textos não serem de fácil leitura. Mas uma vez que se descubra, se ache a chave dos labirintos boergeanos, tem-se acesso à sua imagética. O Outro, por exemplo, para ser entendido, é preciso mais de uma leitura. É um texto extraordinário. A sua linguagem é convidativa, atrai-nos, puxa-nos para dentro de sua teia de possibilidades. O bruxo Borges é considerado um dos maiores escritores do século XX e um dos mais importantes da História da Literatura Universal. Jorge Luis é uma unanimidade na Argentina e por aqui, no Brasil, tem sido descoberto com certa razoabilidade.

Separei dois sites importantes onde se pode achar mais informações sobre Borges: Primeiro: AQUI e Segundo:AQUI



O Outro

O fato ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim.
Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as noites desveladas que o seguiram. Isto não significa que seu relato possa comover a um terceiro.
Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos alunos. Não havia ninguém à vista.
Senti, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado.
Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La Tapera de Elias Regules. O estilo me reconduziu a um pátio já desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da décima do princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.
Aproximei-me e disse-lhe:
— O senhor é oriental ou argentino?
— Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra — foi a resposta.
Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe:
— No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?
Respondeu-me que sim.
— Neste caso — disse-lhe resolutamente — o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.
— Não — respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante.
Ao fim de um tempo insistiu:
— Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. 0 estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.
Respondi:
— Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. Lá em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que nosso bisavô trouxe do Peru. Há também uma bacia de prata que pendia do arção. No armário do teu quarto, há duas filas de livros. Os três volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com gravações em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germania de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tábuas de Sangue de Rivera Indarte, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg.
— Dufour — corrigiu.
— Está bem. Dufour. Te basta, tudo isto?
— Não — respondeu — Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão.
A objeção era justa. Respondi:
— Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos.
— E se o sonho durasse? — disse com ansiedade.
Para tranqüilizá-lo e me tranqüilizar, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia. Disse-lhe:
— Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está, acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?
Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido:
— A mão está saudável e bem, em sua casa de Charcas y Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita era como a mão de uma criança posta sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim chamou-nos a todos e disse-nos: "Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente". Norah, tua irmã, se casou e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão?
— Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos que não querem se comprometer e que, por isto, pregava através de parábolas.
Vacilou e disse:
— E o senhor?
— Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são demasiados. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de nosso sangue.
Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros. Mudei de tom e prossegui:
— No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, ao redor de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, travada pela superstição da democracia, não se resolve a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano, Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.
Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, o aterrorizava. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho da minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro. Perguntei-lhe o que era.
— Os possessos ou, segundo creio, Os Demônios, de Feodor Dostoiewski — me replicou não sem vaidade.
— Já o esqueci. Que tal é?
Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia.
— O mestre russo — sentenciou — penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava.
Essa tentativa retórica me pareceu uma prova de que se havia acalmado.
Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia percorrido. Enumerou dois ou três, entre eles O Sósia.
Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem as personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa.
— A verdade é que não — respondeu-me com uma certa surpresa.
Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse que preparava um livro de versos que se chamaria Os hinos vermelhos. Também havia pensado em Os ritmos vermelhos.
— Por que não? — disse-lhe. — Podes alegar bons antecedentes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine.
Sem me fazer caso, esclareceu que seu livro contaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época.
Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etc.. Disse-me que seu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias.
— Tua massa de oprimidos e párias — respondi — não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova.
Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os solda¬dos que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.
Quase não me escutava. De repente, disse:
— Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges?
Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção:
— Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de esquecê-lo.
Aventurou uma tímida pergunta:
— Como anda sua memória?
Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto. Respondi:
— Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.
Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho. Uma súbita idéia me ocorreu.
— Eu posso te provar imediatamente — disse-lhe — que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre.
Lentamente entoei o famoso verso:
L'hydre — univers tordant son corps ecaillé d'astres.
Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-o em voz baixa saboreando cada resplandescente palavra.
— É verdade — balbuciou — Eu não poderei nunca escrever um verso como este.
Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquela breve peça em que Walt Whitman rememora uma noite compartilhada diante do mar em que foi realmente feliz.
— Se Whitman a cantou – observei — é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se não adivinhamos que é a manifestação de um anelo. Não a história de um fato.
Ficou a me olhar.
— O senhor não o conhece — exclamou. — Whitman é incapaz de mentir.
Meio século não passa em vão. Sob nossa conversação de pessoas de leitura miscelânea e de gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos nos enganar, o que torna o diálogo difícil. Cada um de nós dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era anormal demais para durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destino era ser o que sou.
De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali esta a flor.
Ocorreu-me artifício semelhante.
— Ouve – disse-lhe — tens algum dinheiro?
— Sim me replicou. — Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simón Jichlinski ao Crocodile.
— Diz a Simón que exercerá a medicina em Carouge e que fará muito bem... agora, dá me uma de tua moedas.
Tirou três escudos de prata e umas peças menores. Sem compreender, me ofereceu um dos primeiros.
Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho. Examinou-a com avidez.
— Não pode ser — gritou — Leva a data de mil novecentos e sessenta e quatro.
(Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não levam data.)
— Tudo isto é um milagre — conseguiu dizer — e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados.
Não mudamos nada, pensei. Sempre as referências livrescas.
Fez a nota em pedaços e guardou a moeda.
Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de praia perdendo-se no rio de prata teria conferido à minha história uma imagem vivida, mas a sorte não quis assim.
Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.
Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam me buscar.
— Buscá-lo? — interrogou.
— Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.
Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta.
O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar.

quarta-feira, abril 22, 2009

Noturno Sabático

O manto escuro da noite
envolve os homens.
Luzes trêmulas cintilam
no horizonte.
Carros com olhos de fogo
arrastam-se morosos na distância.
Tenho impressões dúbias
sobre o momento presente.
A cabeça dói, uma dor lancinante
me apoquenta.
Sentado, espero a condução.
Jovens passam com modelos possantes.
Uma música atordoadora derrama-se
dos veículos e arrebenta em meus ouvidos.
Do alto de meu orgulho,
relego-os ao ostracismo.
Como os animais na natureza emitem
sons extravagantes para chamarem a atenção
da fêmea, os animais humanos também buscam
impressionar, destacar-se na treva da noite sabática.
Mastigo o tempo, rumino impropriedades,
enquanto a noite de sábado revela os
desejos da humanidade.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 18 de abril de 2009, sábado, 19:10:36

terça-feira, abril 07, 2009

Que chique, hein?

Talvez influenciado pela pompa e circunstância da realeza britânica, em Londres, o presidente Lula apareceu todo sorridente, na semana passada, durante a reunião do G-20 – grupo das nações desenvolvidas e em desenvolvimento -, para perguntar aos jornalistas: “Vocês não acham muito chique o Brasil emprestar dinheiro ao FMI?” Lembrando que, no seu passado de sindicalista, se cansou de carregar faixas onde se lia “Fora, FMI”, Lula se gabou de poder oferecer dinheiro brasileiro para engrossar a proposta dos países ricos de reunir US$ 1 trilhão para o fundo emprestar a países afetados pela crise e ajudar, assim, a restabelecer o crédito no mercado financeiro internacional. Ou seja, para manter a ciranda perversa do capitalismo funcionando como sempre funcionou, ajudando os pobres para que esses continuem consumindo e assim, ajudar os ricos a ficarem mais ricos.
Enquanto o presidente esbanjava felicidade na capital londrina, trocando elogios com o “new brasileiro” Barack Obama ( “Se você encontrar Obama no Rio, vai pensar que ele é carioca, se encontrar em Salvador, vai pensar que é baiano...” disse Lula), a dona de um conhecido restaurante de Brasília tentava desesperadamente internar a mãe de 89 anos em um também conhecido hospital particular. Apesar do encaminhamento médico de emergência, ela rodou a noite toda em busca de UTI e só conseguiu vaga no começo da tarde do dia seguinte. Mas esbarrou numa exigência insólita: o hospital só internaria se a senhora desse entrada no estabelecimento dentro da UTI móvel. “Quer dizer que tenho que pagar uma UTI móvel só para minha mãe dar uma volta no quarteirão e poder entrar no hospital?”, disse ela, perplexa.
Na outra ponta da cidade, enquanto isso, uma mulher de 30 anos de idade, três filhos, moradora de Brasilinha com emprego no Plano voltava de maus um round da via-crúcis que enfrenta desde janeiro, tentando retirar um caroço que não para de crescer no olho direito e depende de cirurgia tão simples quanto inalcançável para trabalhadores sem plano particular de saúde. A moça, como milhares país afora, virou um número na burocracia que lhe tira o sono e não lhe dá solução. Em Planaltina de Goiás, conseguiu uma data para a próxima consulta – em julho! No DF, a ordem é aguardar. A vantagem do sarro que Lula tirou com o FMI foi todos saberem que dinheiro nós temos. Porque chique mesmo, presidente Lula, seria usá-lo para dar ao sofrido povo brasileiro a saúde e a atenção que ele merece.

VELOSO, Valéria. Que chique, hein? Correio Braziliense. Caderno Opinião. Brasília –DF, terça-deira, 7 de abril de 2009.

sábado, abril 04, 2009

Os 27 Beijos Perdidos

O filme “OS 27 beijos perdidos”, da diretora georgiana Nana Djordjadze deixou-me feliz e introspectivo. Viu-o sábado, dia 24/01/2009. Tenho uma relação de filmes para serem vistos. A produção tinha que ser assistida naquela data. Antes de ver ao filme, resolvi ler alguns comentários sobre a película. Havia mais críticas negativas do que positivas.

Após ter visto à obra aprendi algo: devo formar minha própria opinião e não ser induzido por sentenças alheias. Lembro-me de Nietzsche no epílogo da “Gaia Ciência”: “Moro em minha própria casa, / Nada imitei de ninguém/ E ainda ri de todo mestre/ Que nunca riu de si também”. Segundo o livro, estes dizeres estavam sobre a porta da casa do filósofo. Não sei se era intenção dele fazer qualquer menção ao texto bíblico de Deuteronômio. Talvez, Nietzsche sardônico como era, deva ter seguido a instrução de Moisés quando disse ao povo de Israel: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e dela falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas” (Dt 6.4-9). Nietzsche conhecia profundamente as Escrituras. O ato de colocar tal inscrição deve ter sido premeditado.

Voltemos aos 27 Beijos Perdidos. De início, comecei a assistir ao filme com aquela desconfiança, mas aos poucos um fino interesse se avivou em mim. O filme é bonito sob vários aspectos. A começar pela fotografia. A diretora abusou – no bom sentido – em mostrar as belas paisagens da Geórgia, país situado nas proximidades do mar Cáspio e ex-república da União Soviética. A presença do comunismo está na obra. Fotos do grande Lênin aparecem em algumas cenas. Os livros de Karl Marx servem de apoio para uma cena de amor. Uma bruma leitosa toma os espaços naturais e humanos: a floresta, o campo, a cidade, o rio. A última cena do filme é extraordinária. Um rio enorme, com montanhas escondidas e embaçadas por uma névoa que envolve os montes.

O filme se passa numa cidade afastada. A chegada de Sybilla à cidade, dá novas conotações comportamentais aos habitantes. Garota de hábitos precoces, conhecedora da poesia de Safo e Shakespeare, Sybilla desperta paixão em Myka, filho de Alexander, um viúvo metido a cientista. Todavia, Alexander um mulherengo de 41 anos de idade, faz nascer a paixão na menina de 14 anos.

O jovem Myka busca de todas as formas chamar a atenção da jovem. A única promessa que receba dela é de 100 beijos naquele verão. O jovem só consegue dá 73 beijos, os 27 restantes dão nome ao filme.

A produção é pródiga em sensualidade. Não se trata de uma sexualidade leviana, baixa. Trata-se de um incremento à beleza da obra. A garota não hesita em mostrar os seios esculturais e o corpo franzino em várias ocasiões. Não chega a consumar nenhum tipo de relação libidinosa durante o filme. Verônica é justamente a personagem que substantiva aquilo que Sybilla não executa. Esposa de um militar ciumento e machista, Verônica se mostra ninfomaníaca.

O filme busca mesmo é enfocar a paixão da menina por Alexander que não corresponde às intenções da garota. Ao passo que Sybilla empreende ações com o fim de conquistar Alexander, Myka se fecha para o pai. São as reações adversas da paixão que toma a alma e o corpo do jovem. E nesse sentido é que o filme se torna surpreendente. Certa noite, Sybilla adentra à casa de Alexander, despe-se e busca fazer amor com o viúvo. Este a manda embora. Ela desce correndo, semi-desnuda, as escadarias da casa de Alexander e encontra com Myka, que fora despertado pelo barulho que ouvira. Myka num acesso de irracionalidade se mune de uma arma. Vai até o quarto do pai. Embaixo, enquanto saia, Sybilla escuta o estampido da arma. Myka ainda aparece na janela e ver a garota que já tinha tido acesso à rua. Não se mostra, nem se entra em detalhes explícitos sobre a morte de Alexander. Fica a interrogação: matou ou não matou? A garota foge num barco. Some no horizonte como se fosse uma miragem. A bruma de vodka engole todas as coisas. A paixão é gestora de desatinos.

Após o filme ficamos pensando embriagados nesse acontecimento. A música russa, triste, amalgama-se à paisagem com cheiro de umidade. As florestas ralas se mostram distantes. Permanecemos imaginosos. Para onde se foi Sybilla, aquela de seios à semelhança dos da Vênus de Milo? Será que ela nos enfeitiçou como fez a Myka? Cometeremos um parricídio? Os créditos do filme a subir e eu a pensar no inusitado.

Nana Djordjadze foi feliz com o longa de 2000. Fiquei com a impressão de que ela era um ser angélico. Seu corpo esguio faz morada na nossa mente, assim como os rios de água verde e as florestas amarelas de folhas caducas da Geórgia.


P.S. Segundo informações encontradas AQUI: "Esta fita participou do Festival de Cannes 2000 e ganhou o prêmio especial do Júri do Festival de Bruxelas e prêmio do público do Festival de Montpellier, ambos em 2001".


Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: 28 de janeiro de 2009, quarta-feira, 21:06 hs.