quarta-feira, dezembro 31, 2008

Ano Novo

As pernas passam apressadas lá fora.
Muitos sonhos e expectativas
Também são alimentados esta noite.
Conversas, viagens, confraternizações,
A gola aberta para a solidariedade.
O resto do ano é murro, é força,
É suor, é choro.
Rojões, fogos-de-artificio, estrondos;
Alaridos, gritos, sussurros.
O momento extremo.
É como se um dia, horas,
Tivesse o poder para nos fazer novos.
Somos os mesmos.
Mudam as disposições mentais.
Enquanto isso, esperanças são cosidas,
Tecidas, alinhavadas, costuradas, esta noite.
O mundo é um grande templo de sonhos.
Os olhos se levantam para o céu.
Brotam desejos do asfalto, da praia, do mar.
Promessas emuladas, cantadas.
Augúrios surgem em propulsão.
Os homens sonham.
A matéria invisível do tempo
Insere novas possibilidades.
É como se os minutos, as horas, os dias,
Fizesse caducar um ano inteiro de frustrações
E descontentamentos acumulados.
Esses rituais são necessários para
Deixarem os homens vivos.
Amanhã uma nova estação surgirá
Para que pensemos no ponderável.
Começa a novidade, a possibilidade virgem.
Essa página branca será borrada pelo uso:
Luta, murro, suor, lágrimas.
E tempo trará os minutos, as horas,
Os dias, os meses, o ano novo.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: quarta-feira, 31 de dezembro de 2008, 11:22:01.

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Panegírico a um cativamento

Há muito tempo que reunia motivos para escrever algo para cada um dos senhores. Mas, motivos tenho em demasia, por isso, antes de botar o que tenciono no papel, quero dizer que sinto existir um livro abstrato aqui comigo desejando se tornar matéria, substância. Não se trata de motivos. Talvez, disciplina , organização.
Hoje à tarde enquanto manuseava um livro de poemas da Cecília Meireles, a lembrança dos senhores se avivou em minha saudade. Rebentou inevitavelmente como uma bolha de sabão. Cobrou de mim a sua existência. Declarei-me vencido. Não há o que contestar contra esse imperativo. Diz a Cecília: “Minha canção vai comigo/ Vai doce/ Tão sereno é o seu compasso/ que penso em ti, meu amigo/. – Se fosse, em vez de canção, teu abraço”[1]. Singelamente, ao fundo toca uma canção, uma música com poderes evocadores. A música, porém, poderia ser substituído pela companhia dos senhores.
Outro texto que me veio à lembrança foi uma passagem belíssima do livro “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupérry. O trecho aborda o problema da saudade cativada, da presença que um dia foi e que se tornou memória. A memória revive o desejo por intermédio do símbolo, que faz a mediação entre o evento que foi e aquilo que ficou aprisionada como memória no espaço interior de nossa necessidade.

XXI

E foi então que apareceu a raposa:
- Boa dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer "cativar"?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! não foi na Terra, disse o principezinho. A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me! - Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo
[2].

Estas são uma das páginas mais belas e ternas da literatura universal, escritas pelo grande escritor francês Saint-Exupérry. Trata-se de um diálogo simples, quase infantil e que celebra a amizade, a saudade. Escolhi este texto, pois sei que traduz com bastante significância “o cativamento” que criamos mutuamente. Começamos todos ali na 602 Sul. Éramos todos estranhos. Olhamo-nos inicialmente com certo espanto no respeito. Mas aos poucos, enquanto surgiam as necessidades (os trabalhos, apresentações, leituras), fomos nos cativando uns aos outros. Isso se deu de tal modo que um espírito crescente de amizade se fez presente, criou uma espécie de cola que nos uniu.
Passaram-se três anos e encontramos algumas referências, nomes inesquecíveis – professores e alunos: tivemos num único semestre a presença do inesquecível Francisco Agrimar, figura fabulosa. Professores como Dioney Gomes, Veruska Machado, Carlos Mota, Maria das Graças, Cátia Martins, Mário Bispo, Ricardo. Creio que fomos cativados por esses mestres. Figuras que se inscreveram de forma completa em nossa existência. Fomos para a 609 Norte e lá conhecemos o Clerton, a Sarom e outros mestres. Tivemos dificuldades com a distância e com a estrutura capenga da nova faculdade. Fomos vítimas de uma instabilidade. Seguiram-se dias de rumores. Estudamos num “subsolo executivo”, em salas ordinárias, num espaço deficitário. Aquilo aturdiu-nos.
Até que fomos encaminhados para a 702 Norte. Em três anos, mudamos três vezes – uma a cada ano. Nossa graduação foi marcado pelo nomadismo. Mudamos de marca três vezes – primeiro Imesb, depois Unireal e, por último, Fortium. Todavia, sei que se tornou consenso a cada um de que sempre levaremos em nossos corações o Imesb como nosso espaço de celebração, de amizade, de “cativamento”.
Não poderia deixar a oportunidade de cumprimentá-los. De desejar-lhes uma humilde nota de elogio. Quero afirmar que foi enriquecedor está com cada um dos senhores nestes quase três anos de caminhada. Importante mesmo! Os “campos de trigo” do meu espaço interior permanecerão sempre vivos, assim como esteve para a raposa. A amizade deve ser celebrada, também, porque aconteceu. Quero dizer que fui cativado pelos senhores. Não saio perdendo, sem lucro, fica em mim marcada a lembrança daquilo que foi. Trata-se de uma força sempre viva, que possui auto-causação. No futuro, desejo que o “meu campo de trigo”, permaneça vivo. Para isso, regarei com as lágrimas da minha saudade.
Rubem Alves falando dessa mesma passagem diz que a imagem do campo de trigo é um símbolo evocador de uma ausência. “O Pequeno Príncipe retrucou: “ Não é culpa minha. Eu não queria te cativar. Agora você vai chorar. Qual foi a vantagem?” Respondeu a raposa: “ A vantagem? Os campos de trigo. Eu sou uma raposa. Como galinhas. O trigo me é indiferente. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. Os campos de trigo são dourados. Porque você me cativou sempre que o vento balançar as espigas douradas de trigo eu me lembrarei de você. E sorrirei...” É isso que é um sacramento: uma imagem carregada de emoções. O sacramentos são símbolos que têm o poder de invocar ausências”[3]. A minha saudade regará o meu sacramento. Conhecemo-nos e nos separamos, pois a vida implica nisso. Chegamos e partimos com bastante rapidez.
Diz Rubem Alves em outro texto denominado “A chegada e a despedida” que as chegadas e as despedidas fazem parte da vida, assim como o dia que se despede com a chegada da noite ou a noite com a chegada do dia: “A vida começa com uma chegada. Termina com uma despedida. A chegada faz parte da vida. A despedida faz parte da vida. Como o dia que começa com a madrugada e termina com o sol que se põe. A madrugada é alegre, luzes e cores que chegam. O sol que se põe é triste, orgasmo de luzes e cores que se vão. Madrugada e crepúsculo, alegria e tristeza, chegada e despedida: tudo é parte da vida, tudo precisa ser cuidado. A gente prepara, com carinho e alegria, a chegada quem a gente ama. É preciso preparar também, com carinho e tristeza, a despedida de quem a gente ama”[4].
Um abraço a cada um dos senhores, trigos de minha inspiração. Boas festas, bons sonhos!
P.S. A ilustração acima faz parte do livro "O Pequeno Príncipe".

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: segunda-feira, 22 de dezembro de 2008, 13:46:08.
[1] MEIRELES, Cecília. Flor de Poemas. Rio de Janeiro e São Paulo. Ed. Record. 1983, p.83.
[2] Disponível em http://br.geocities.com/lidijunior/principe.
[3] Quarto de Badulaques XXXVIII.
[4] ALVES, Rubem. Concerto para corpo e alma, 13ª. Edição. Campinas- SP: Papirus, 2007, p. 130-131.

sábado, dezembro 20, 2008

A feira

O mundo é um grande mercado.
Vendem-se todas as coisas.
Há compradores para todos os artefatos.
As mercadorias são de variados gêneros:
Há casas à venda;
Móveis em liquidação;
Obras de arte em empórios;
Panelas e badulaques em armazéns;
Carros em concessionárias.
Armas em lojas especializadas;
O corpo (sexo) nas esquinas escuras
Ou à luz, em pleno dia;
Órgãos humanos no mercado negro;
Drogas pelo tráfico;
Curas pelos sacerdotes;
Esperanças em seminários;
Saúde em academias e hospitais;
Educação nas escolas e faculdades;
Pílulas que aliviam e acalmam
Nas farmácias;
Terras públicas por especuladores;
Salvação eterna em nichos religiosos;
Aprovação em concurso público;
Desintoxicação em clínicas especiais;
Roupas em lojas de departamento;
Companhia e cuidado em asilos;
Ações na bolsa de valores;
Relíquias antigas em leilões;
Serviços em licitações;
Felicidade em livros de auto-ajuda;
Viagens em pacotes turísticos;
Imóveis em consórcios;
Fama em agências de publicidade;
Pedaços do Muro de Berlim pela internet;
Fugas vazias em balcões de bares;
Cursos por correspondência;
Conselhos em empresas de consultoria;
Safarias nas savanas africanas;
Animais em espaços clandestinos;
Dinheiro em instituições financeiras.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 05 de dezembro de 2008.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Cantos

As cigarras cantam plangentemente
Nos galhos tortos das árvores.
São cantos vaticinadores:
A chuva vem.
Vem com seus encantos.
Com o seu tamborilar imperioso.
Os mosquitos brincam no ar.
O verde vomita fragrâncias
E exibe-se – a natureza.
Tantos choros,
Tantos lamentos.
A natureza comemora
Os seus encantos.
Grasnados canoros.
A hora infinda escorre com vagar.
O tempo dentro de mim
Move-se como uma serpente.
A diferença:
Fora, vagar e comemoração;
Dentro, apenas o silêncio
E a eternidade.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: sexta-feira, 27 de outubro de 2006, 18:27.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Impertubabilidade

A vida que se gasta como
A linha de um carretel.
O problema que acontece do
Outro lado da esquina não é
Sentido do lado de cá.
Impressionamo-nos com o baque
Surdo da queda.
Alvoroçamo-nos porque habitua-se
Fácil aos fatos fantásticos.
Acontece a correria como motivo para
Satisfação da curiosidade.
Após está satisfeito,
A vida pode sar continuidade ao
Seu fluxo imperturbável.
Todos os dias há quedas.
Mas o outro, também, está
Imperturbável.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 25/12/2005, domingo, Goiânia-GO, 10:04:20 AM

terça-feira, dezembro 09, 2008

Coisas IX

Ser-me-ia interessante aprender sobre as coisas
Do céu, da terra e do ar.
Nesta tarde chuvosa na minha alma.
Parece que tudo está impregnado de umidade.
A vida está úmida, sensível, romantizada.
As desolações dos homens são sonhos desfeitos,
Mal apalpados, mal fecundados pelo ventre
Grávido da vida.
O que é você? Já parou para perguntar.
Seja claro com você e talvez não tenha
Uma resposta satisfatória e de confiança.
O meu mundo não é o teu mundo, por isso
Não chove com tanta freqüência e intensidade.
As brochuras que nos dão para estudar não tem
Todas as coisas necessárias para se viver bem.
É aí que temos que achar sozinhos as respostas satisfatórias
E que nos conduza por esta vida tão inopinada.
A vida é sonho! Acredite.
A diferença entre o pesadelo e o encanto está na forma
Que você ver as coisas.
Eu vejo castelos de areia que são roídos pelo
Vento implacável da tempestade que sai do mar da vida.
Apenas entendo que enxergar tempestade é ser fiel
À vocação a que somos chamados.
Mas também vejo um jardim com borboletas que
Voam e levam o pólen que fecundará outras flores
De alegria que brotam neste solo fértil que está
Sob nós.
A diferença está apenas no olhar as coisas.
E, agora, o que você está vendo?

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 24/10/2003 11:57:56, sexta-feira.

sábado, novembro 29, 2008

Quase diário I

É quase distante o som das vozes que ouço.
O que dizem?
Não dizem. Não falam da excelência da vida.
É o centro das expectativas e o retorno do terno que
Me emociona.
O fato é que existem dias nesta vida que o estranho é quase diário.
É quase diário o meu lema.
É distante. É completo. É vago.
É uma imensa distância inamovível que tenho de percorrer.
O dilema é que têm dias em que as regiões assumidamente
Serenas transformam-se em centros ciclonais.
É uma nova manhã que come e vomita os teus desejos.
É o lapso friorento do desânimo.
Eu já nem sei quem sou, vida.
É quase diário as horas nuas e incompreensivas da vida, vida.
É o teu melífluo , transparente enigma, que me arrebate.
Tu me chamas a ti.
Vou.
É o não-revelado que me abisma.
O revelado é apenas fachada.
Não é o que de fato conclui-se como verdade inescusável.
Estou cansado desta farsa,
Destes hábitos mal-cosidos, mal-cozinhados.
O que me dizes?
Tenho todos os sentidos ao passo que sou pobre.
É quase diariamente que tenho que aprender a ser comigo mesmo.
O que entendes disso?
Não entendes.
Não atentastes para essas palavras carregadas, acendradas.
Ouça, ouves?
Eu estou tentado te dizer que sou diário, sou quase diário,
Porque nos outros dias eu cismo em negar o que sou.
Mas em outros eu tenho que assumir o que vivo,
Porque sou histórico.
Sou homem, sou animal, sou diário.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 18/3/2004 09:03:56, quinta-feira.

terça-feira, novembro 25, 2008

Coisas V

Estou tremendamente abalado nas bases

Que sustentam o mundo do meu ser.

Alguém disse que temos que

Está atentos para o brotar do novo na vida.

Mas o vazio, a tristeza e agonia circulam na órbita

Desarmônica do meu coração.

São entes satélites.

Eu só queria está mais atento para prestar atenção

A esses reveses desordenados.

São convulsões trépidas.

São descontínuos nervosismos que germinam

Em sinal de ânsia e solidão.

Talvez seja aquele rosto anêmico que está se

Escondendo por trás daqueles móveis velhos

Lá naquela sala isolado num canto da minha alma.

São apenas coisas sem brilho ou sem graça,

Talvez a ponta deste istmo continental, sem barreiras,

Sem fronteiras ou sem qualquer delimitação aparente.

Eu apenas me seguro nos fiapos de alegria que são

Tão tênues, tão incipientes.

Pareço estar na ante-sala que me leva a algum lugar.

Talvez este lugar não tenha fundo, não tenha paredes

Separatórias ou termo.

São apenas palavras que evocam algumas coisas.

Apenas coisas que não sei dá nome ou classificar

Com termos humanos e científicos.

Apenas os sinto, apenas o vivo, apenas sou eu,

Por isso, sinto coisas.

Meu momento é especial porque não sei

Identifico-me entre as infinitas e ínfimas

Criaturas do cosmo.

Eu sou apenas mais uma criatura neste mundo.

Insignificante e desprezível em relação ao

Universo de tamanho impensável.

Mas tenho sentidos e ouço um noturno

De Chopin e por isso sinto coisas.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 30/7/2003 09:00:33, quarta-feira.

sexta-feira, novembro 21, 2008

Coisas III

Existe uma ponte sobre um vasto rio de águas escuras.

Não consigo ver minha imagem refletida sobre estas águas.

Quem dera todas as dores que surgem em nós,

proferissem em tom audível para quê vieram.

Quem dera estas vozes ininteligíveis, se tornassem claras

E audíveis.

Quem dera esta ponte pênsil me levasse ao outro lado

Do rio.

Não leva.

“Quem dera que as coisas simples fossem vistas como as

Mais importantes”.

Não compreendo.

Para quê entender?!

As águas seguem marulhosas, silenciosas, constantes.

Agitam-se, mas não dizem nada.

Há um céu azul sobre a minha cabeça.

Lá existem vozes que não são ouvidas,

Mas são compreendidas.

É para lá que devo ir.

Se viver é angustiar-se, quero viver para alegrar-me.

É para o céu que recorrerei.

As vozes do rio não são ouvidas

E ainda são como grandes arrancadoras de controle

Do que eu sou e do que pretendo ser.

O rio que vejo é turvo, negro e silencioso,

mas o céu que espero é cheio de surpresas

e eternidade.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque.

Data: 26/6/2003 08:31:19, quinta-feira.

terça-feira, novembro 18, 2008

O efeito das palavras

Palavras, apenas palavras

Passionalidade

Honestidade

Tentativa de acerto

Grandes atropelos.

Palavras pungentes.

Da força de um raio.

Brilho revoluteante.

Assensos.

Dissensos...

Tento mostrar-me...

Expor-me com toda

A minha feiúra.

Assusto-te...

Não cedes...

Tuas palavras...

Apenas palavras.

Já tentei outras vezes

Desaturdir-me.

Renitência...

As horas que passam.

Inocência?

Há alguma?

Tudo um show de cruezas

Paciência como elemento

Das horas nuas.

Angústia e tristeza surgidas

Com potência infinita.

Palavras, apenas as tuas palavras.

Aposto nas melhores intenções.

Crueza nos fatos,

Danação nos gestos dos sentidos.

Pareço-me incompreendido.

Mas pareço, também, não compreender.

Às vezes acho-te tão dura,

Parece-me que enxergas a

Vida apenas com os teus olhos,

Apenas com as tuas intenções.

Já se faz tarde!

As palavras brotam,

Apenas palavras.

O desejo de estar perto de ti,

Confundido com tuas

Palavras acerbas, azedas,

doces, agridoces.

Apenas palavras!


Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: domingo, 18 de novembro de 2007, 17:18:03.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Uma Oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Por Jorge Luis Borges



Borges nasceu em 1899 na cidade de Buenos Aires, capital da Argentina e faleceu em Genebra, no ano de 1986. É considerado o maior poeta argentino de todos os tempos e é, sem dúvida, um dos mais importantes escritores da literatura mundial.

O poema acima foi extraído do livro "Elogio da Sombra", Editora Globo - Porto Alegre, 2001, pág. 75 (tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques; revisão da tradução: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz).

domingo, novembro 09, 2008

Vieira – o riso da beleza e as lágrimas da arte

Terminei de ler uma seleção de seis sermões do Padre Antônio Vieira. Vieira é um jardim fecundo de aromas e estilos. Uma enciclopédia que abriga em si a ciência do cultismo, mas da simplicidade também. Ele falava aos catedráticos, aos reis e rainhas, ao escol de tudo o que mais distinto havia, mas se pronunciava também aos índios e à gente simples da terra. Falar de Vieira é afirmar a cristalização, a materialização de um gênio poderoso, que com a sua palavra arrebatava a platéia e dizia: “que o ouvinte não deveria sair contente com o pregador, mas triste consigo mesmo, pois se aconteceu isso é porque algo poderoso aconteceu àquele coração”. Em Vieira é tão possível sair feliz quanto triste do sermão: triste pelos confrontos sugeridos em sua oratória imaculada; feliz pelas sentenças refinadas, brilhantes. Como ele mesmo atesta no Sermão da Sexagésima “cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio, cada razão um triunfo”[1]. Assim era Vieira – um trovão do Céu, que assombrava e fazia tremer o mundo de sua época.
A sua vida volumosa, cheia de acontecimentos significativos já é um grande livro. Nasceu em Portugal. Veio para o Brasil ainda muito jovem. Decide estudar para ser padre. O pai não concordava com as intenções de Vieira. Tinha outras missões para o filho. Quando no seminário, os padres começaram a perceber-lhe os prodígios, as habilidades, as larvas da inteligência que fervilhavam em seu potente cérebro. Isso é tão significativo, que ainda não havia completado 18 anos, mas já era responsável por escrever em latim as cartas que seriam enviadas à Sé. Foi enviado a Olinda como eminentíssimo professor de oratória. Vieira parecia compreender que a palavra era uma grande arma, que ela poderia ser usada a favor da justiça. Ele usou a palavra para apaziguar os calores no Maranhão. Os ânimos dos colonos estavam eriçados, por causa do edito real a fim de que se libertasse todos os índios. O padre prega dois sermões impetuosos: O Sermão das Tentações – “Que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos, e que todos nós nos sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio”[2]; e o Sermão de Santo Antônio (ou dos Peixes) – “A primeira coisa que me desedifica de vós – peixes – é que vós comeis uns aos outros. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastaria um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande e para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos que vós vos comeis no mar...”[3]. O que é impressionante em Vieira é saber como alguém consegue ser tão prolífico, tão erudito, tão intenso, tão profundo. A sua inteligência era versátil. Passa-nos a impressão que tudo aquilo que lia conseguia assimilar sem qualquer titubeio.
Vieira visitou os salões reais. Viajou pelos locais mais afastados do Brasil. Instalou-se no Maranhão. Estendeu a missão jesuíta. Aprofundou a sua relação com os índios. Era conhecido pelos índios como Paiaçu (grande padre). Constituiu-se numa espécie de apóstolo da palavra. O termo apóstolus do grego significa “mensageiro”, “enviado”, “embaixador”, “ministro”, “caminhante”. Foi o próprio Cristo quem chamou os seus discípulos de apóstolos. Eles seriam os pregoeiros das boas novas. Vieira é o eminente “embaixador” da Palavra, que leva em seus lábios a certeza da equidade. Para ele: Subir ao púpito e não dizer a verdade era contra o ofício[4]. Por isso, todas as vezes que se colocava de pé com a missão de proferir o Evangelho, era invadido pelo calor do Espírito Divino. Pregava com tamanha beleza, erudição; com uma inspiração tão irradiada que os salões das igrejas ficavam pequenos para a quantidade de pessoas que viam ouvi-lo. Esse poder de Vieira levou o poeta Fernando Pessoa a dizer que ‘se não houvesse mais ninguém para falar a língua portuguesa, mas se em compensação ficassem os sermões de Vieira, a língua lusa jamais morreria’. Em suma: Vieira consegue reunir em seus sermões o que de mais belo há na língua portuguesa. Ele soube utilizá-la como ninguém. Extraiu dela todo o encanto; os vernáculos harmônicos e dissonantes; a versatilidade e a flexibilidade dos termos necessários. Proferiu com tamanha graça a língua de Camões que ler os seus sermões após tanto tempo, causa-nos uma impressão singular.
Neste ano de 2008 são completados quatro séculos do seu nascimento. Ouvi poucos falarem desse acontecimento. Até mesmo os estudantes de Letras não atentaram para o fato de que no dia 6 de fevereiro de 1608, nascia em Lisboa, Antônio Vieira, estadista, teólogo, missionário, padre – e por que não dizer filósofo? A homenagem que vi aconteceu na Câmara dos Deputados da República. Ouvi José Sarney solitariamente proferi um discurso com rasgos de uma erudição afetada, tentar lançar luzes sobre as trevas da memória opaca da nação. A pouca memória do país para com os seus ilustres personagens históricos não permitiu que rendesse a ele, Vieira, homenagens dignas, do mais alto jaez. Lamentavelmente a memória é suprimida, a História é apagada e os grandes homens de espíritos livres borrados e negligenciados.
Viveu 91 anos (morreu no dia 18 de julho de 1697). Muito tempo para a expectativa de vida da época. Todavia, todo este tempo foi dedicado em sua integralidade à justiça e à defesa dos direitos humanos – especialmente dos índios. Não poderia deixar de finalizar sem que mencionar Vieira num dos sermões mais belos e altivos que já foram pregados – O Pranto e o Riso ou as Lágrimas de Heráclito defendidas em Roma pelo padre Antônio Vieira contra o Riso de Demócrito. Este sermão foi proferido no Palácio da rainha Cristina da Suécia, no ano de 1674: “Quem verdadeiramente conhece o mundo, precisamente há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece”[5]. É pertinente dizer que a vida de Vieira foi bela por que riso; e foi arte por que lágrimas. Ele conhecia o mundo e a alma humana como ninguém.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: sexta-feira, 25 de julho de 2008, 21:28:13.

[1] VIEIRA, Padre Antônio. Sermões Escolhidos. São Paulo. Editora Martin Claret. 2003. p. 99
[2] Idem, p. 19.
[3] Idem, pp. 19-20.
[4] Idem, p. 32.
[5] Idem, p. 190.

quinta-feira, novembro 06, 2008

Sobre os flamboyants - parte II

Sempre fui fascinado pela beleza silenciosa das árvores. Trata-se de uma beleza para ser escutada com os olhos. Encontrei o texto de Rubem Alves sobre os flamboyants, mas não encontrei muitas informações sobre a árvore em si. Perto da Administração de Ceilândia – DF, cidade onde moro, há uma alameda dessas árvores fantásticas de origem africana. Passar próximo a essas árvores é um estímulo para o espírito. O flamboyant é uma visão que excita os olhos é o ânimo. Li certa vez o romance o romance O Prisioneiro de Érico Veríssimo, refere-se aos flamboyants como “tachas escarlates e estáticas”. O romance passa-se numa cidadezinha do sudeste asiático. História muito bem urdida, com profundidade psicológica, os flamboyants são um personagem do livro. Recordo que quando li o livro há alguns anos atrás não sabia exatamente o que eram os tais flamboyants, embora já tivesse visto um. Conhecia a árvore, mas não sabia o seu nome.
Como nessa época do ano aqui em Brasília, os flamboyants vicejam, surgem com suas cabeleiras inflamadas e nos enche os olhos, não podem passar despercebidos. Impossível. Mesmo os mais desatentos de uma forma ou outra detêm a sua atenção. O jornal Correio Braziliense trouxe uma pequena reportagem sobre essas árvores de nome afrancesado.
Não transcreverei o texto integralmente. Deterei atenção apenas na parte que trata da origem da árvore:
“O nome com o qual a árvore ficou conhecido é francês. Significa flamejante, ardente – referência à cor mais comum das flores que caem em cascata. A procedência da espécie é da costa da África, de Madagascar e de ilhas do Oceano Índico. ‘É uma espécie exótica, mas se adaptou muito bem ao clima brasileiro’, conta Ozanan Coelho. As primeiras mudas foram trazidas para o Brasil ainda no século XIX, na época de D. João VI e, desde então, os flamboyants são usados intensamente para o ajardinamento das cidades.
Apesar da beleza, a espécie têm duas desvantagens. O fato de ser exótica, portanto, não adequada para a alimentação da fauna local. E a característica das raízes serem superficiais, o que pode destruir as calçadas próximas aos locais onde estão plantadas. No Distrito Federal, o plantio de novos flamboyants tem sido evitado nos últimos anos. ‘Estamos dando preferência a espécies nativas porque elas são importantes para a vida da fauna local’, explica Ozanan Coelho, do DPJ.
As floradas dos flamboyants acontecem entre outubro e dezembro. Com o tempo, as pétalas vão caindo e aí o terreno próximo às plantas é que ficam pintados de vermelho, laranja ou amarelo. As árvores atingem até 15 metros de altura, mas as que estão em Brasília chegam, em média, a 10 metros por conta das características do solo. A copa das árvores se espalha até por 10 metros de diâmetro, tornando o impacto visual da planta maior à distância. Já as flores são delicadas, têm apenas sete centímetros de comprimento. Nos cachos, uma ou outra flor aparece com uma das pétalas salpicada de branco, mas esse detalhe só é percebido quando se observa a planta bem de perto.
Profundo conhecedor das árvores brasilienses, Ozanan Coelho garante que ainda hoje se emociona quando vê um flamboyant amarelo florir. ‘Todos eles são lindos, mas o amarelo é especial por ser mais raro’, comenta. Segundo Ozanan Coelho, o tom amarelo é alcançado quando a planta apresenta uma variação de genes recessivos”[1].

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Quinta-feira, 6 de novembro de 2008, 09:31:16.

[1] Edição número 16.608. Brasília, quinta-feira, 6 de novembro de 2008, p. 40.

domingo, novembro 02, 2008

Os flamboyants

A manhã estava linda: céu azul, ventinho fresco. Infelizmente, muitas obrigações me aguardavam. Coisas que eu tinha de fazer. Aí, lembrei-me do menino-filósofo chamado Nietzsche que dizia que ficar em casa estudando, quando tudo é lindo lá fora, é uma evidência de estupidez. Mandei as obrigações às favas e fui caminhar na lagoa do Taquaral.


Bem, não fui mesmo caminhar. Meu desejo não era médico, caminhar para combater o colesterol. Caminhar, para mim, é uma desculpa para ver, para cheirar, para ouvir... Caminho para levar meus sentidos a dar um passeio. Tanta coisa: os patos, os gansos, os eucaliptos, as libélulas, a brisa acarinhando a pele — os pensamentos esquecidos dos deveres. Sem pensar, porque, como disse Caeiro, "pensar é estar doente dos olhos". Aí, quando já me preparava para ir embora, já no carro, vejo um amigo. Paramos. Papeamos. Ele, com uma máquina fotográfica. Andava por lá, fotografando. Não tenho autorização para dizer o nome dele. Vou chamá-lo de Romeu, aquele que amava a Julieta. Me confidenciou: "Vou fazer uma surpresa para a Julieta. Ela adora os flamboyants. E eles estão maravilhosos. Vou fazer um álbum de fotografias de flamboyants para ela... Você não quer vir até a nossa casa para tomar um cafezinho?"

Fui. Mas ele me advertiu: "Não diga nada para ela. É surpresa..." Esta história tem sua continuação um pouco abaixo. Recomeço em outro lugar.

As crianças da 3ª série do Parthenon, escola linda, me convidaram para uma visita. Elas tinham estado fazendo um trabalho sobre um livrinho que escrevi, O Gambá Que Não Sabia Sorrir. Queriam me mostrar. Foi uma gostosura. É uma felicidade sentir-se amado pelas crianças. Eu me senti feliz. Aí aconteceu uma coisa que não estava no programa. Uma menininha, na hora das perguntas, disse que ela havia lido a minha crônica Se Eu Tiver Apenas Um Ano a Mais de Vida...

Espantei-me ao saber que uma menina de nove anos lia minhas crônicas. Lia e gostava. Lia e entendia. Aí ela acrescentou: "Recortei a crônica e trouxe para a professora..." Confirmou-se aquilo de que eu sempre suspeitara: as crianças são mais sábias que os adultos. Porque o fato é que muitos adultos ficaram espantados e não quiseram brincar de fazer de contas que eles tinham apenas um ano a mais para viver. Ficaram com medo. Acharam mórbido.

As crianças, inconscientemente, sabem que a vida é coisa muito frágil, feito uma bolha de sabão. Minha filha Raquel tinha apenas dois anos. Eram seis horas da manhã. Eu estava dormindo. Ela saiu da caminha dela e veio me acordar. Veio me acordar porque ela estava lutando com uma idéia que a fazia sofrer. Sacudiu-me, eu acordei, sorri para ela, e ela me disse: "Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?" Eu fiquei pasmo, sem saber o que dizer. Mas aí ela me salvou: "Não chore porque eu vou abraçar você..."

As crianças sabem que a vida é marcada por perdas. As pessoas morrem, partem. Partindo, devem sentir saudades — porque a vida é tão boa! Por isso, o que nos resta fazer é abraçar o que amamos enquanto a bolha não estoura.

Os adultos não sabem disso porque foram educados. Um dos objetivos da educação é fazer-nos esquecer da morte. Você conhece alguma escola em que se fale sobre a morte com os alunos? É preciso esquecer da morte para levar a sério os deveres. Esquecidos da morte, a bolha de sabão vira esfera de aço. Inconscientes da morte aceitamos como naturais as cargas de repressão, sofrimento e frustração que a realidade social nos impõe. Quem sabe que a vida é bolha de sabão passa a desconfiar dos deveres... E, como disse Walt Whitmann, "quem anda duzentos metros sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha".

O pessoal da poesia está levando a sério a brincadeira. Eu mesmo já fiz vários cortes drásticos em compromissos que assumi. Eram esferas de aço. Transformei-os em bolhas de sabão e os estourei. Pois o pessoal da poesia decidiu que, no programa de um ano de vida apenas, num dos nossos encontros não haveria leitura de poesia: haveria brinquedos e brincadeiras. Cada um trataria de desenterrar os brinquedos que os deveres haviam enterrado.

Obedeci. Abri o meu baú de brinquedos. Piões, corrupios, bilboquês, iô-iôs e uma infinidade de outros brinquedos que não têm nome. Seria indigno que eu levasse piões e não soubesse rodá-los. Peguei um pião e uma fieira e fui praticar. Estava rodando o pião no meu jardim quando um cliente chegou. Olhou-me espantado. Ele não imaginava que psicanalistas rodassem piões. Psicanalista é pessoa séria, ser do dever. Pião é coisa de criança, ser do prazer.

Acho que meus colegas psicanalistas concordariam com meu paciente. A teoria diz que um cliente nada deve saber da vida do psicanalista. O psicanalista deve ser apenas um espaço vazio, tela onde o paciente projeta suas identificações. Mas a minha vocação é a heresia. Ando na direção contrária. "Você sabe rodar piões?", eu perguntei. Ele não sabia. Acho que ficou com inveja. A sessão de terapia foi sobre isso. E ele me disse que um dos seus maiores problemas era o medo do ridículo. Crianças são ridículas. Adultos não são ridículos. Aí conversamos sobre uma coisa sobre a qual eu nunca havia pensado: que, talvez, uma das funções da terapia seja fazer com que as pessoas não tenham medo das coisas que os "outros" definem como ridículo. Quem não tem medo do ridículo está livre do olhar dos outros.

Preparei o encontro de poesia de um jeito diferente. Nada de sopas sofisticadas. Fui procurar macarrão de letrinha, coisa de criança. Não encontrei. Encontrei estrelinhas. Fiz sopa de estrelinhas. E toda festa de criança tem de ter cachorro-quente. Fiz molho de cachorro-quente. E nada de vinho. Criança não gosta de vinho. Gosta é de guaraná.

Foi uma alegria, todo mundo brincando: iô-iôs, piões, corrupios, bilboquês, quebra-cabeças, pererecas (aquelas bolas coloridas na ponta de um elástico)... Rimos a mais não poder. Todo mundo ficou leve. Aí tive uma idéia que muito me divertiu: que na sala de visitas das casas houvesse um baú de brinquedos. Quando a conversa fica chata, a gente abre o baú de brinquedos e faz o convite: "Não gostaria de brincar com corrupio?" E a gente começa a brincar com o corrupio e a rir. A visita fica pasma. Não entende. "Quem sabe, ao invés do corrupio, um bilboquê?" E a gente brinca com o bilboquê. Aí a gente estende o brinquedo para a visita e diz: "Por favor, nada de acanhamentos! Experimente. Você vai gostar..." São duas as possibilidades. Primeira: a visita brinca e gosta e dá risadas. Segunda: ela acha que somos ridículos e trata de se despedir para nunca mais voltar...

Pois a Julieta — aquela do Romeu — me trouxe uma pipa de presente. Vou empinar a pipa em algum gramado da Unicamp. E aí ela nos contou da surpresa que lhe fizera o Romeu. Fotografias de flamboyants vermelhos — que coisa mais romântica! Árvores em chamas, incendiadas! Cada apaixonado é um flamboyant vermelho! E nos contou das coisas que o Romeu tivera que fazer para que ela não descobrisse o que ele estava preparando.

Mas o mais bonito foi o que ele lhe disse, na entrega do presente. Não sei se foi isso mesmo que ele disse. Sei que foi mais ou menos assim: "Sabe, Julieta, aquela história de ter um ano apenas a mais para viver... Pensei que você gostava de flamboyants e que você ficaria feliz com um álbum de flamboyants. E concluí que, se eu tiver um ano apenas a mais para viver, o que quero é fazer as coisas que farão você feliz..."

Um ano apenas a mais para viver: aí os sentimentos se tornam puros. As palavras que devem ser ditas, devem ser ditas agora. Os atos que devem ser feitos, devem ser feitos agora. Quem acha que vai viver muito tempo fica deixando tudo para depois. A vida ainda não começou. Vai começar depois da construção da casa, depois da educação dos filhos, depois da segurança financeira, depois da aposentadoria...

As flores dos flamboyants, dentro de poucos dias, terão caído. Assim é a vida. É preciso viver enquanto a chama do amor está queimando...

Rubem Alves

O texto acima foi extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.

Extraído: www.releituras.com/rubemalves_flamb.asp


quarta-feira, outubro 29, 2008

Impressões solares

Uma luz incandescente doura o horizonte.
Cria um ponto referencial alaranjado.
Um réquiem.
A beleza mesclada à morte.
Nuvens como gases ensangüentadas giram,
Enfeitam, tentam por ataduras no
Astro magnificente.
Os momentos são decisivos.
Uma laranja avermelhado, ourífero,
Habitado pela dor encarnada do silêncio.
As formas “deformadas” pela luz carmesim.
O horizonte com os montículos
Distantes completamente tomados
Pela fumaça rala, acinzentado,
Com uma coroa vermelha a lhe vestir
Toda a extensão.
A luz desapareceu e ficaram os fragmentos,
Os pedaços tênues
Das cinzas escarlates.
É o prelúdio da morte.
O ritual da vida natural,
Dos processos naturais;
Em outra parte, em outro lugar,
Os vívidos raios encherão de vida
Os seres, as coisas, para morrer outra vez –
Seria o eterno retorno da natureza?
Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 01 de julho de 2008.

sexta-feira, outubro 24, 2008

Melancolia

Uma corrente fria de vento

Atravessa a minha alma.

Sinto-me triste.

É uma tristeza tristemente delicada.

Tristeza sem recatos.

Sensação recatada.

O peso de mil toneladas comprime

O meu peito.

Asfixia-me com sua presença tórrida.

Desabo qual monstro ao chão.

Estou triste.

A tristeza ri de mim.

Solta impropérios sufocantes.

Amarra-me.

Lança-me sobre estacas de medo

E desengano.

A manhã está fria.

Não quero contatos.

Palavras não me serão receptivas.

O que sinto me é escusado.

De uma coisa eu sei:

Dói, como dói!


Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: terça-feira, 24 de junho de 2008, 08:57:16.

sexta-feira, outubro 17, 2008

Altares domésticos

Em princípio, isto é uma simples crônica. Mas pode ser transformada numa densa tese universitária. Estou lhes falando de altares – coisa meio arcaica, mas estou falando também de nossa alucinada cultura eletrônica. Vou me referir ao rádio e à televisão, que foram durante muito tempo o altar em torno do qual a família se congregava. O altar é uma exigência simbólica dos humanos. Estão dentro e fora das igrejas. Remetem para uma idéia de dentro e para cima. As pirâmides são uma espécie de altar. O altar é um diálogo com o imponderável. As pirâmides são enormes altares ao ar livre. No México, nos dias de finados, num dos cômodos da casa, ergue-se um altar coberto de frutas e comidas para os mortos familiares.
Quando era menino, as casas de classe média e burguesas tinham uma sala de visitas. Esse ambiente ficava fechado, só era aberto quando vinham tios e conhecidos especiais. Receber uma visita era um ritual. E nas paredes haviam retratos de parentes mortos, com aqueles bigodes, chapéus, aquelas poses e olhares nos espiando da eternidade. Os mais ricos tinham retratos solenemente pintados a óleo. Aquela sala especial era o recinto sagrado da família. Havia silêncio ali até os móveis ritualizavam reverência.
Com o amesquinhamento moderno do espaço doméstico, as salas de visitas foram se extinguindo. De repente, apareceu um visitante que veio para ficar: o rádio. Ele também falava conosco, trazia notícias de longe. Mas com seu surgimento, houve um deslocamento simbólico. O rádio foi posto na sala de jantar, no meio da vida, entronizado num móvel especial. A família unida em torno da mesa, numa santa ceia profana, assistia piamente às lagrimosas novelas na hora do almoço e do jantar. Embora cada membro da família pudesse ter também seu programa preferido, o rádio estava ali com sua força cêntrica, era um altar em torno do qual até vizinhos vinham se reunir.
Com o surgimento da televisão, houve apenas uma substituição de objeto. Uma troca metonímica. Mas altar continua congregando. Dizia-se, no entanto, que a família já não mais conversava, não mais externava seus conflitos na terapia de grupo que era o almoço e o jantar. Ficavam todos ajoelhados diante dessa deusa terrível. Deu-se, então, que com o crescimento econômico e com a fragmentação crescente da família, o altar se moveu. Cada membro da família passou a ter uma tevê em seu quarto, um altar próprio para os seus ritos. Dizem que isto incrementou a desagregação familiar.
Aí surgiu o computador. Pensava-se que fosse simplesmente competir com a máquina de escrever e com as canetas mata-borrões. Mas, surpreendentemente, surgiu a internet e a questão do altar tornou-se bem complexa. Poder-se-ia dizer também que a internet virou uma espécie de janela, de plano de fuga, de túnel por onde se escapa e se viaja, rompendo os muros do próprio lar. Mas, essencialmente, o computador e a internet são um novo altar. Muito mais pessoal do que os anteriores e instalado em diversos cômodos da casa. Teria ocorrido, então, uma descentralização do rito. Não mais a sala de visitas que só se abria em ocasiões especiais, não o mais a família (e vizinhos) na sala em torno do rádio ou da tevê. Agora, cada um na sua (ou seu altar).
Mas a coisa, semiologicamente, radicalizou-se ainda mais. O computador e a televisão se fundiram, se casaram. E mais: apareceu um terceiro elemento inovador: o celular que é o mesmo tempo telefone, computador, MP3 (antigo toca-disco) e televisão. Com a vantagem de ser móvel, que se leva para o avião, para o piquenique, para a praia, enfim, um “duplo” indispensável, a segunda natureza do ser humano.
Nesta perplexidade de crentes-descreventes estamos. Redes invisíveis nos unem planetariamente. A igreja está em nossas mãos, é portátil, está em todas as partes e em lugar nenhum. Pensamos freqüentá-la, mas ela é que nos freqüenta, já que o “o meio é a mensagem”.
Há uns 40 anos, Drummond fez um estranho e premonitório poema, Ao Deus Kom Unik Assão, que lembro no final dessa crônica, mas que deveria ter epígrafe na tese sobre os “altares da pós-modernidade”, que algum leitor escreverá. No final, vendo o paradoxo em que a sociedade da comunicação se metera, ele indagava que nos salvaria da “inkomunikhassão”.

Por Affonso Romano Sant'Anna

SANT’ANNA, Affonso Romano de, Altares Domésticos, Correio Braziliense, Brasília, 23 Mar. 2008. Caderno C. p. 8.


Data: segunda-feira, 7 de abril de 2008.

sexta-feira, outubro 10, 2008

A minha alma está cheia de poesia

Quero me lançar em direção ao vazio espiral

No deserto que formou-se em mim.

“As velhas palavras mortas sujaram a minha alma,

por isso quero lavá-la com as águas do silêncio.

Eu desconfio do sentido e das vozes dos homens

Ditos normais – são normais demais!

Deixemos a normalidade tão fingida deles e corramos

Na direção do outonal extremo da nossa alma.

Lá não se fala palavras normais, porque a normalidade

Cristaliza os movimentos que formamos com a poesia.

Poesia é movimento silencioso.

Movimento e combinação de sentidos

Inauditos.

Desconfio das poesias paradas.

As poesias não são verões parados e abafados.

São primaveras coloridas e cheia de musicalidade.

Gosto do que não dizem justamente por ser algo que busco

Compreender com a minha liberdade poética.

Eu sou mais que sou. Sou a outra metade afastada de mim.

Porque é justamente diante do insondável que buscamos

Compreensão para o não-entendido.

A minha história é mais que voz. Ela é o filtro indicador

Das horas nuas da vida.

Palavras desencontradas brotam de dentro de mim neste

Momento.

Parece saírem de uma cascata caudalosa que se precipita

Nas pedras da vida.

É como o magma que emerge do ventre da terra

Terrificantemente pastoso, mas que vira pedra quando enfrenta

A realidade climática externa.

O viajor da história me faz ter espasmos diante dessa

incógnita chamada vida.

Apenas reflexão... nada mais.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 27/12/2003 14:59:15, sábado.