segunda-feira, dezembro 22, 2008

Panegírico a um cativamento

Há muito tempo que reunia motivos para escrever algo para cada um dos senhores. Mas, motivos tenho em demasia, por isso, antes de botar o que tenciono no papel, quero dizer que sinto existir um livro abstrato aqui comigo desejando se tornar matéria, substância. Não se trata de motivos. Talvez, disciplina , organização.
Hoje à tarde enquanto manuseava um livro de poemas da Cecília Meireles, a lembrança dos senhores se avivou em minha saudade. Rebentou inevitavelmente como uma bolha de sabão. Cobrou de mim a sua existência. Declarei-me vencido. Não há o que contestar contra esse imperativo. Diz a Cecília: “Minha canção vai comigo/ Vai doce/ Tão sereno é o seu compasso/ que penso em ti, meu amigo/. – Se fosse, em vez de canção, teu abraço”[1]. Singelamente, ao fundo toca uma canção, uma música com poderes evocadores. A música, porém, poderia ser substituído pela companhia dos senhores.
Outro texto que me veio à lembrança foi uma passagem belíssima do livro “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupérry. O trecho aborda o problema da saudade cativada, da presença que um dia foi e que se tornou memória. A memória revive o desejo por intermédio do símbolo, que faz a mediação entre o evento que foi e aquilo que ficou aprisionada como memória no espaço interior de nossa necessidade.

XXI

E foi então que apareceu a raposa:
- Boa dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer "cativar"?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! não foi na Terra, disse o principezinho. A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me! - Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo
[2].

Estas são uma das páginas mais belas e ternas da literatura universal, escritas pelo grande escritor francês Saint-Exupérry. Trata-se de um diálogo simples, quase infantil e que celebra a amizade, a saudade. Escolhi este texto, pois sei que traduz com bastante significância “o cativamento” que criamos mutuamente. Começamos todos ali na 602 Sul. Éramos todos estranhos. Olhamo-nos inicialmente com certo espanto no respeito. Mas aos poucos, enquanto surgiam as necessidades (os trabalhos, apresentações, leituras), fomos nos cativando uns aos outros. Isso se deu de tal modo que um espírito crescente de amizade se fez presente, criou uma espécie de cola que nos uniu.
Passaram-se três anos e encontramos algumas referências, nomes inesquecíveis – professores e alunos: tivemos num único semestre a presença do inesquecível Francisco Agrimar, figura fabulosa. Professores como Dioney Gomes, Veruska Machado, Carlos Mota, Maria das Graças, Cátia Martins, Mário Bispo, Ricardo. Creio que fomos cativados por esses mestres. Figuras que se inscreveram de forma completa em nossa existência. Fomos para a 609 Norte e lá conhecemos o Clerton, a Sarom e outros mestres. Tivemos dificuldades com a distância e com a estrutura capenga da nova faculdade. Fomos vítimas de uma instabilidade. Seguiram-se dias de rumores. Estudamos num “subsolo executivo”, em salas ordinárias, num espaço deficitário. Aquilo aturdiu-nos.
Até que fomos encaminhados para a 702 Norte. Em três anos, mudamos três vezes – uma a cada ano. Nossa graduação foi marcado pelo nomadismo. Mudamos de marca três vezes – primeiro Imesb, depois Unireal e, por último, Fortium. Todavia, sei que se tornou consenso a cada um de que sempre levaremos em nossos corações o Imesb como nosso espaço de celebração, de amizade, de “cativamento”.
Não poderia deixar a oportunidade de cumprimentá-los. De desejar-lhes uma humilde nota de elogio. Quero afirmar que foi enriquecedor está com cada um dos senhores nestes quase três anos de caminhada. Importante mesmo! Os “campos de trigo” do meu espaço interior permanecerão sempre vivos, assim como esteve para a raposa. A amizade deve ser celebrada, também, porque aconteceu. Quero dizer que fui cativado pelos senhores. Não saio perdendo, sem lucro, fica em mim marcada a lembrança daquilo que foi. Trata-se de uma força sempre viva, que possui auto-causação. No futuro, desejo que o “meu campo de trigo”, permaneça vivo. Para isso, regarei com as lágrimas da minha saudade.
Rubem Alves falando dessa mesma passagem diz que a imagem do campo de trigo é um símbolo evocador de uma ausência. “O Pequeno Príncipe retrucou: “ Não é culpa minha. Eu não queria te cativar. Agora você vai chorar. Qual foi a vantagem?” Respondeu a raposa: “ A vantagem? Os campos de trigo. Eu sou uma raposa. Como galinhas. O trigo me é indiferente. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. Os campos de trigo são dourados. Porque você me cativou sempre que o vento balançar as espigas douradas de trigo eu me lembrarei de você. E sorrirei...” É isso que é um sacramento: uma imagem carregada de emoções. O sacramentos são símbolos que têm o poder de invocar ausências”[3]. A minha saudade regará o meu sacramento. Conhecemo-nos e nos separamos, pois a vida implica nisso. Chegamos e partimos com bastante rapidez.
Diz Rubem Alves em outro texto denominado “A chegada e a despedida” que as chegadas e as despedidas fazem parte da vida, assim como o dia que se despede com a chegada da noite ou a noite com a chegada do dia: “A vida começa com uma chegada. Termina com uma despedida. A chegada faz parte da vida. A despedida faz parte da vida. Como o dia que começa com a madrugada e termina com o sol que se põe. A madrugada é alegre, luzes e cores que chegam. O sol que se põe é triste, orgasmo de luzes e cores que se vão. Madrugada e crepúsculo, alegria e tristeza, chegada e despedida: tudo é parte da vida, tudo precisa ser cuidado. A gente prepara, com carinho e alegria, a chegada quem a gente ama. É preciso preparar também, com carinho e tristeza, a despedida de quem a gente ama”[4].
Um abraço a cada um dos senhores, trigos de minha inspiração. Boas festas, bons sonhos!
P.S. A ilustração acima faz parte do livro "O Pequeno Príncipe".

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: segunda-feira, 22 de dezembro de 2008, 13:46:08.
[1] MEIRELES, Cecília. Flor de Poemas. Rio de Janeiro e São Paulo. Ed. Record. 1983, p.83.
[2] Disponível em http://br.geocities.com/lidijunior/principe.
[3] Quarto de Badulaques XXXVIII.
[4] ALVES, Rubem. Concerto para corpo e alma, 13ª. Edição. Campinas- SP: Papirus, 2007, p. 130-131.

5 comentários:

Anônimo disse...

Amor, gostei! li agora... Pq vc não manda este texto para o e-amil do pessoal?... bjus

Anônimo disse...

Grande Carlinus...
Cara, é verdade, cativa-mo-nos mutuamente e calmamente, sem pressa e sem intenção... mas marcamos uns aos outros de-veras.

Ainda não sei quando nos veremos novamente, espero somente que seja breve, pra mantermos viva essa proximidade...

Mais que companheiros de graduação, nos tornamos parceiros de idéias, de sentimentos, de sonhos...

Tenho a honra de ter feito parte "daquela turma"... 2006, IMESB.

Dyoneis, Veruskas, Cátias, Mários, Carlosos, Ricardos... Chicos, Vandeílsons, e "´Nozes"... sempre Nozes, no dizer Ívico...

A gente sempre se "ver" pelo msn, por esse seu cantinho aconchegante aqui (blog), pelas ruas por aí, pelos textos compartilhados...

Um grande abraço pra você... e meus desejos sinceros de que você alce vôos mais altos...

Nunca se esqueça do amor eterno do Criador, nosso Pai, nutrido por você... filho do Reino...

Té.

Markim.

Ps.: Você e Liane são motivos da minha intercessão... amo-vos.

Juninho disse...

Grande Carlinus!
Satisfação ler um texto como esse que narra nossa história!
Sempre tentei separar na minha vida, faculdade, família e amigos...mas nessa turma esses tres elementos se minsturam e nao a como definir quem é pai, quem é amigo e quem é apenas um colega de faculdade!
o que resta é agradecer a todos voces pelo carinho!
fiquem na paz!

SEMO NOZES!!!

P.S.: Pensamento do dia...
"A alegria de saber que você existe faz-me forte para suportar a tristeza de sua ausência."

Fé em Deus!

Anônimo disse...

Olá Ser Carlinus, muito bom o seu resgate imesbiano e a celebração da perpetuidade entre nós, pois, como disse o Ivo, "A alegria de saber que você existe faz-nos forte para suportar a tristeza de sua ausência."
Carlos uma coisa que tenho aprendido ao longo de minha existência é que devemos absorver o máximo das pessoas que estão ao nosso redor, pois nunca sabemos quando elas se tornarão ausentes. Lembra-se da frase do Marcos? Nunca desprezes quem está ao seu lado, pois nunca se sabe se é um príncipe ou um plebeu.(é mais ou menos assim). Você Carlos é um dos Principes que nos prestigiou e nos contagiou com sua nobreza durante nossa caminhada em comum. Com certeza temos muitos frutos guardados dentro de nós,alguns amadurecidos na caminhada, outros a madurar ainda no porvir, com certeza, nenhum deles apodrecerá pois a árvore é de excelente qualidade.
Meu amigo o que desejo a você é que toda a sorte de bençãos celestiais possam te alcançar, para que possas continuar com esta mente brilhante abençoada por Deus e por seus empenhos.
Obrigada por fazer parte da minha historia. Noemi.

Carlinus disse...

Obrigado pelo depoimento maravilhoso de todos vocês. Todos estão inscritos na avenida central do meu pensamento. Um abraço cordial!