segunda-feira, dezembro 31, 2012

Último post do ano! Na encruzilhada do tempo!

Que 2013 seja um ano bom, repleto de paisagens belas, já que "a beleza está nos olhos de quem vê" (Sartre); que seja regado a muitos sorrisos, música e literatura; que as amizades sinceras frutifiquem e as anêmicas se obliteram como badulaques imprestáveis; que meus olhos se fixem na bondade, na sinceridade e que eu saiba sorrir com os que riem e me solidarizar com os que choram; que eu esteja pronto para enfrentar os fatos positivos e os negativos com justeza de julgamento, pois o mundo existe como vontade e representação; que eu não desista quando os meus pés vacilarem e quando os meus olhos insisterem em se fecharem por causa do cansaço; que as águas imensas do tempo lavem a minha alma e limpem a sujeira que os dias trazem; que eu esteja pronto a me levantar quando tropeçar em algum fato; que a vontade de poder e desejo de ser bom sejam bússolas que me orientem em um mundo cada vez mais repleto de cínicos. Não sou suspeticioso e sei que determinadas coisas estão aquém do nosso controle, mas desejo a todos um extraordinário 2013.

sábado, dezembro 29, 2012

Admirável Mundo Novo, de Huxley, a distopia de um mundo programado

Devo confessar que o estilo de Aldous Huxley não me agradou. Após a leitura de Admirável Mundo Novo, surgiram-me duas visões sobre o escritor inglês.

(1) Aldous Huxley era um sujeito com ideias mirabolantes com um estilo ruim. O enredo de Admirável Mundo Novo é frankensteiniano. A sucessão de fatos segue uma lógica aleatória. Há furos medonhos. Os personagens são psicologicamente fracos. Huxley me trouxe a ideia de que há escritores que, por meio de um golpe de sorte, conseguem o sucesso. Não critico a intelectualidade do inglês, para qual os competidores eram poucos. Refiro-me à prosa de Huxley. Por vários momentos pensei em abandonar o livro. Mas havia algo grandioso ali. O escritor abordava algo elevado.

Refletia sobre a nossa sociedade brutalizada. Colocava-nos diante de uma sociedade distópica e futurista. A invenção habilidosa de algo que está lá, para lançar uma crítica dilacerante a algo que está aqui. Huxley viveu em uma época em que a ideia de totalitarismo e ditadura estava em voga - na Itália, de Mussolini, na União Soviética, de Stálin, na Alemanha de Hitler, na Espanha, de Franco. E nesse sentido, chegamos a um segundo ponto;

(2) Admirável Mundo Novo (Brave New World) foi escrito em 1932. É a obra que consagrou Huxley. Se não estou enganado, tenho aqui em casa Contraponto, A Ilha e O gênio e a deusa. Huxley se notabilizou pelas atitudes que tomou e pela engajamento intelectual. Talvez, no século XX, poucos foram aqueles que travaram de forma tão fremente uma batalha pelo conhecimento e alimentaram uma saciedade espiritual tão marcante quanto ele.

As reflexões suscitadas por Huxley ainda são absurdamente atuais. Que direção estamos tomando? O que é liberdade? A nossa ânsia pela liberdade e o crescente individualismo, não nos levará a um totalitarismo? A falência das religiões não nos levará a uma sociedade cínica? O tecnicismo não nos levará a uma sociedade a qual os valores éticos são negociáveis em nome da felicidade? O hedonismo de uma sociedade amorfa não nos levará a um mundo de aparências e de valores artificiais? Seria possível a invenção de uma droga, um fármaco que propiciasse a felicidade? No livro, existe o soma "para acalmar uma ira, para reconciliá-lo com os inimigos, para o tornar paciente e tolerante" (...) "Um Cristianismo sem lágrimas". (p.287). O soma na obra é o eixo de equilíbrio gravitacional das relações. É a substância produtora de prazer, bem-estar e tradutora dos melhores sonhos.


Essas são algumas das questões levantadas por Huxley em Admirável Mundo Novo. O escritor nos mostra o mundo em que o conceito de autoritarismo ganha nuances complexos. Ainda não vivemos em uma sociedade em que os "selvagens" são aqueles que leem a Bíblia, cultivam os valores da família, rezam e educam os filhos; encontram-se geograficamente isolados, vivendo em colônias. Uma sociedade clean, tecnicamente higienizada do ponto de vista material e social. Uma sociedade dividida em castas, no qual os seres humanos são fabricados. E nesse processo de fabricação são definidos a cor do cabelo, a cor da pele, a cor dos olhos, a capacidade intelectual. Ainda vivemos em um meio complexamente difuso. Mas a obra nos alerta para existência de um mundo despersonalizado, brutalizado pelos valores aritificiais, em que cada indivíduo é programado a sentir, a pensar e a viver de determinada forma. Para a ausência de altruísmo, de sensações daquilo que é belo e que nos comove. 

Ou seja, o livro nos alerta para a possibilidade de programação do ser humano. E a possibilidade da técnica nos tornar em esquizóides, algo deformado, amorfo, sem raízes, sem história. Em suma: quanto mais os níveis tecnológicos avançam, mais o homem se coisifica, mais se bestializa, mas se desperzonaliza, mais tende ao antinatural.

sexta-feira, dezembro 28, 2012

Ratos e Homens, de Steinbeck, excelente história

Ratos e Homens, livro de John Steinbeck, escrito em 1937, possui mais do que aparenta ter. É um daqueles livros que se deve ler com um assomo, um gole. Foi o que fiz. Li-o em uma manhã há alguns dias atrás. Comprara o livro numa daquelas seções reservadas aos pockets, aqueles livrinhos viciantes que acabamos comprando cinco ou seis de uma vez, naqueles intantes que nos propomos a namorá-los. 

John Steinbeck, ganhador do Prêmio Nobel no ano de 1962, focou a atenção num dos momentos mais conturbados da história do seu país - a Depressão Americana, aquele momento de falência do capitalismo na década de 30. Durante este período, que é resultado da Grande Crise de 1929, os Estados Unidos e vários outros países do mundo amargaram taxas impiedosas de colapso econômico. Desemprego. Fome. Pobreza excessiva. Recessão. Estagnação. Ausência de perspectivas no campo e na cidade. 

Com isso, a obra de Steinbeck narra de forma muito simples e singela, a história de Lennie e George, duas figuras completamente antagônicas. Os dois perambulam por regiões enormes da Califórnia em busca de trabalho. George é inteligente, franzino, consciencioso; Lennie, em contrapartida, é forte, ingênuo e bobo em excesso. Essas duas personagens vivem o sonho da posse da terra. Almejam ter um lugar onde pudessem viver de forma simples, sem as amarras obrigatórias que existem numa relação trabalhista de exploração. As duas personagens por trás da habilidade de Steinbeck são complementares. George parece ser aquilo qeu falta a Lennie - ou seja, a consciência, a inteligência.

É curioso como Steinbeck, um dos maiores romancistas do século XX, por meio de uma prosa simples, apresenta personagens que são verdadeiras metáforas de um momento histórico - uma mulher que sonha ser uma atriz de cinema e que tem a sua condição vulnerabilizada; é inteligente ao extremo, mas o fato de ser mulher impõe um fardo, uma sina, um carma.

Candy, um velho, que é metaforizado na figura do seu cachoro. Possuía um cachorro tão velho que teve de ser sacrificado. Com isso, Steinbeck quer demonstrar a terrível moral construída por uma sociedade que descarta aqueles seres que não possuem "mais nada a oferecer". A personagem consegue guardar dinheiro e tenciona comprar um rancho com George e Lennie. 

John Steinbeck
Crooks é outro personagem importante da obra. É um negro. Vive à parte. Não possui uma boa relação com os demais personagens. Dos funcionários da fazenda, parece que é o mais instruído. Possui livros. Um código jurídico - o Código Civil da Califórnia, de 1905. Todavia, o que é curioso é que por mais que conheça o código, o valor legal do código não lhe está franqueado. A lei não se materializa com efeitos plenos. Sua condição de negro é vituperante.

Os personagens são verdadeiros tipos. São representações da sociedade. Daquele que foi um dos momentos mais tristes do século XX. Steinbeck com a sua atenção voltada para sujeitos que são relegados, que estão à margem, narra o quanto existe de esperança, de beleza e de sensibilidade na alma da gente simples.

Este é o primeiro livro que leio de Steinbeck. Possuo outros livros dele aqui em minha biblioteca. O principal deles é As vinhas da ira, um dos mais importantes livros da literatura americana do século XX e de leitura obrigatória. Notei a habilidade de Steinbeck para fecundar o final de uma história. Os golpes lancinantes de emoções desferidos para extinguir a história. Após a leitura, ficamos meio bobos e a verbalizar: "Meu Deus!". Steinbeck nos atinge bem no plexo.

quarta-feira, dezembro 26, 2012

Devaneios ou como se aplica um golpe na consciência II

Na noite de Natal, do dia 24 para 25, como de praxe, eu e a minha esposa fomos a uma reunião de família. Como acontece todos os anos, muitas músicas cristãs alimentam o momento com uma aura rala de felicidade e paz. Logo após as músicas, foi feita uma pregação por um dos pastores da família. Foi lido o texto do evangelho segundo São Lucas: 

"A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta. Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim". (Lucas 1:27-33).

Uma explicação bastante emotiva se consumou após a leitura do excerto. O discurso se fiou pelos caminhos da missão de Jesus. E qual a Sua missão? A resposta surgiu fáicl: livrar o homem do pecado. E o que é o pecado? Tudo aquilo que separa o homem de Cristo. Não deixei de observar que o sermão estava cheio de termos teológicos: queda, pecado original, justificação, redenção, predestinação, graça etc. 

O que é curioso nesse sentido é que Jesus não pronunciou nenhuma dessas palavras. Todas fazem parte da plêiade do universo paulino. O sermão ficou repleto de um discurso afetado pelo "mau humor" do apóstolo. Diferente daquilo que se vê nos evangelhos, linguagem grávida de bondade, de expectativa pelo reino de deus, tornou-se numa sentença condenatória - a típica verve de Paulo

Enquanto ouvia o sermão, fiquei pensando que acontecera a leitura do evangelho, mas o discurso proferido se conciliava com a força agressiva, bárbara e ressentida do corolário de Paulo.

Não é preciso ser um estudioso profundo para perceber a diferença nítida que existe entre os quatro evangelhos - narrativas sobre a vida de Jesus - e as cartas paulinas. Não é necessário fazer um estudo das fontes, das lacunas, do "documento Q"; estudar teologia, filologia, teoria do discurso, hermenêutica, para perceber que existe uma inflexão estilística nos textos paulinos. É como se dobrassêmos a esquina. A teologia de Paulo é uma esquina. Um leitor experiente e acostumado às nuances estilísticas de um bom texto literário, consegue perceber o antogonismo que se perpetra no Novo Testamento a partir da carta aos romanos. 

Por exemplo, um leitor treinado conseguirá perceber o estilo de Machado de Assis, de Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa com muita facilidade. Se lhe vendassem os olhos e lessem os textos de um dos três autores, perceber-se-ia de maneira clara as diferenças - o desenvolvimento de ideias, a muicalidade, a jogo linguístico, as perorações, a fluência verbal etc. Ou seja, cada autor possui elementos idiossincráticos. Peculiares. Com o texto paulino não é diferente.

Dos 27 livros do Novo Testamento, a tradição ("a lenda dos santos", no dizer de Nietzsche) da igreja atribui 13 a Paulo. Existe ainda uma controvérsia em torno da Carta aos Hebreus. Para muitos, esse documento também teria sido escrito por Paulo. Todavia, não é algo assegurado e sustentado por muitos téologos conservadores.

O certo é que mesmo sem a carta aos Hebreus, o efeito do pensamento de Paulo se faz sentir no Novo Testamento  - e, consequentemente, na história do cristianismo. Sem o chamado "apóstolo dos gentios", a configuração do cristianismo não seria a mesma que temos hoje.

Somente um homem como ele, com uma personalidade que conjugava o bairrismo de um rabino e a força, a energia de um soldado romano, poderia ter tido a a criatividade para elaborar um conjunto de pensamento tão atraente e tão bem articulado como o pensamento paulino. Paulo tira o foco dos demais díscipulos em projeta-se como centro do discurso. Vislumbra-se aqui a necessidade de auto-afirmação. 

Mesmo dentro do judaísmo Paulo não era alguém benquisto. Ele mesmo afirma em uma das suas cartas (Galátas) que ficou quatorze anos se preparando para a missão que empreendeu. E daí nos surge um questionamento: não teria sido esse o momento em que Paulo sistematizou o seu pensamento? É possível que tenha ouvido os relatos dos evangelhos; tenha feito consulta a possíveis testetmunhas e tenha coligido o arcabouço daquilo que é a sua teologia. 

Paulo transformou a morte de Cristo num discurso triunfalista. Aqui é importante dizer que os evangelhos também não são narrativas fidedignas da vida de Cristo. Há muito de triunfalismo e a forja de eventos miraculos com a finalidade de transformar a existência de Jesus em algo miraculoso. Assim, no meio da narrativa evangélica é necessário encontrar as verdadeiras palavaras e ensinamentos de Cristo - um mestre por excelência. Os evangelhos não são relatos neutros e objetivos, o que lhes deformam a intenção. Foram escritos pela comunidade de crentes, logo, são viciados e parciais. Mas, nada impede que lá dentro encontremos "algumas" palavras de Jesus. 

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Especulação sobre uma lista de livros (em construção)

Fazer listas de filmes ou de livros é algo complexo. Existe sempre a limitação pessoal. A experiência, o influxo de cada leitor. O crivo diletante daquele que faz a lista - o meu caso. Ainda me sinto muito pequeno para tal empreedimento. 

Caminhei pouco. Testemunhei poucas paisagens. Ainda faltam os muitos mundos de Tólstoi, de Melville, de Sterne, de Saramago, de Dostoiévsky, de Borges, de Córtazar, de Sábato, de Garcia Marquez, de Thomas Mann, de George Eliot, de Faulkner, de Swift, Cervantes, de Euclides da Cunha, de Guimarães Rosa, de Dickens, de Fernando Pessoa, de Jorge Amado, de Saul Bellow, de Philipp Roth, de Pynchon, de Clarice Lispector, Tchekhov, de Leskov, de Joyce e tantos outros que aqui não citei.

Tenho a consciência de que a minha caminhada foi curta; meus passos, estreitos. Ainda há distâncias enormes a serem percorridas. Polifonias variadas. Amplidões que se estendem até ao infinito. 

Antes de colocar a minha lista - que não segue uma ordem de importância; foram sendo assinalados à medida que lembrava -, gostaria de explicar a presença de duas obras - o livro de C.S. Lewis e o livro de Carl Sagan, nomes de significâncias tão antagônicas. 

(1) O livro de C.S. Lewis foi marcante em minha existência. Era o ano de 2002. Meu primeiro ano no seminário como estudante de teologia. Um mundo de especulação. De paixões frementes. Sonhos. Expectativas. Paixão neófita. De repente, caiu-me às mãos o livro de Lewis. Um encontro apaixonante - sem sombras de dúvida! Um deslumbramento. O livro foi escrito no ano de 1955 e conta a sua história de conversão à fé cristã; sua cruzada como intelectual. Uma autobiografia. Suas descobertas como literato nos colégios ingleses. A descoberta dos clássicos. Os caminhos inescrutáveis da mitologia. No ano de 2002, li o livro duas vezes. Já procurei em várias livrarias, em sebos virtuais, mas não o encontro. A edição está esgotada. 

(2) O livro de Carl Sagan me surgiu como uma força elegante e compressora. Não possui relação com a literatura. É um livro de divulgação científica. Mas, pela beleza, pelo estilo apurado, pela singularidade, pela abordagem, bem que deveria figurar entre os grandes clássicos. È o último livro escrito por Sagan. Aquele em que ele resumiu, compilou de forma burilada o seu pensamento. Sagan era um gentleman mesmo quando era duro, mesmo quando era implacável com o oponente. Posso parafrasear Kant e dizer que, quando li Sagan, 'eu acordei de meu sono dogmático'. Ou seja, passei a perceber o quanto a relatividade, a ausência de um olhar sem preconceitos é necessária para que hajamos e encaremos o mundo com bom senso. A verdade não é algo que uns possuam e, outros, não, como dizia Nietzsche; e ainda citando o grande filósofo: "Não nos enganemos; os grandes espirítos são céticos". Era justamente esse ceticismo que Sagan pregava. Para ele, para se chegar à verdade eram necessárias duas coisas: ceticismo e a ousadia para criar. 

Abaixo a minha lista (em construção) - ratificando: ela não é definitiva nem segue uma ordem valorativa:

1 - Angústia - Gracialiano Ramos;
2 - Crime e Castigo - Dostoiévsky;
3 - As Confissões - Santo Agostinho;
4 - Memórias Póstumas - Mchados de Assis;
5 - O processo - Franz Kafka;
6 - Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos;
7 - O mundo assombrado pelos demônios - Carl Sagan;
8 - Surpreendido pela Alegria - C.S. Lewis;
9 - A náusea - Jean-Paul Sartre;
10 - São Bernardo - Graciliano Ramos;
11 - Os sofrimentos do jovem Werther - Goethe;
12 - O fausto - Goethe;
13 - O morro dos ventos uivantes - Emily Brontë;
14 - Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk - Leskov;
15 - O vermelho e o negro - Stendhal;
16 - Quincas Borba - Machado de Assis;

Há obras de autores que não citei como, por exemplo, Erico Veríssimo, Clarice Lispector, José Lins do Rego e outras obras de Machado de Assis.

P.S. Quiçá no próximo ano eu faça outra e outros nomes surgirão.

domingo, dezembro 23, 2012

Devaneios ou como se aplica um golpe na consciência I

Isso é algo que tem me perseguido nos últimos dias, mas não devo deixar de verbalizá-lo:

Ao criarem uma religião, os judeus se insurgiram contra as leis naturais. Eles mesmos se elegeram a raça eleita. Criaram a ideia de um deus carrasco, punitivo, egoísta, inimigo da humanidade; compensador de debilidades; patrocinador de extermínios; amante da culpa. Por que somente a religião dos judeus e, mais tarde, o seu mais conhecido derivativo, o cristianismo, deve ser entendida como verdade? É curioso perceber aqui como a história de um povo é sacralizada. Torna-se uma bússola orientadora. É transmitida ao mundo. Como o passado nacional de um povo se torna uma virtude. A base de toda moral. A ofensa contra Yaweh, a mais perniciosa de todas as ações.

Passou-se a medir os destinos do mundo pelos óculos parciais da história dos judeus. A história de Israel siu do plano de um ínfimo acontecimento, para ser a norma de destino do universo. As noções míticas preencheram os espaços vazios de uma época a-científica.

O golpe de misericórdia do judaísmo se deu quando do surgimento do cristianismo. A religião cristã não é uma ruptura do judaísmo, mas a sua consecução. É a sofisticação. O burilamento estilístico. Com o cristianismo, a filosofia grega - leia-se a platônica - consolidou-se como um entedimento para as massas. O platonismo fazia parte do mundo especulativo dos filósofos, mas essa mesma base epistemológica estrutural, foi traduzida para o povo. É  por isso, que Nietzsche vai dizer que "o cristianismo é um platonismo para o povo". Os judeus, assim, trasmitiram a sua psicologia, os seus esquemas mentais, sua visão escatológica para o mundo.

A arma mais poderosa, mais sutil, mais eficaz, forjada pelos judeus não é material - uma espada, uma adaga, um punhal. A arma utilizada para aprisionar, cortar e ferir é a ideia de pecado. Do pecado se extrai a culpa. Explica-se a partir desse fato, a necessidade, de nos cultos cristãos, que exista o momento da contrição; de pedir perdão pelas faltas cometidas. É justamente nesse ato que se consuma a dominação e o poder dessa força abstrata chamada fé.

Em outars palavras: se não existisse pecado não existiria culpa; se não existisse culpa, de outro modo, não haveria fé; e se não existisse fé, não haveria esperança. Pecado, culpa, fé e esperança são nomes que se dão a uma força que predispõe o ser a se submeter - a deus, à igreja, à tradição, aos dogmas, ao sacerdote, à ideia de comunidade. A partir dessa consciência, tudo aquilo que não se coadune ou que não se encaixe ou resvale nessa linguagem é encarado como erro, como heresia, como pecado.

É o que diz, por exemplo, a metalinguagem bíblica do evangelista são João: "... o pecado é a transgressão da lei" (1 Jo 3.4). Qual lei? Ora, a lei escrita pelos judeus como universal, como algo que não se pode ultrapassar - um non plus ultra.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

Pascal, Cristo e o cristianismo

Sou um sujeito grávido de espiritualidade por natureza. As ideias eternas andam comigo. Sou um ser moral. Procuro viver virtuosamente, numa espécie de socratismo inevitável. Cidadão que cumpre o dever ordinário, busco viver em paz com os homens, criaturas estúpidas e com essa força que nos alimenta e faz viver. Existe uma lei inscrita em meu coração que me leva a proceder de tal modo. Todavia, apesar dessa inclinação, angustio-me com a ausência de fundamento da fé institucionalizada. 

Tenho chegado a conclusões contudentes sobre as religiões - principalmente a cristã cuja doutrinação se deu desde pequeno. Não me tornei contrário a tudo aquilo que diga respeito a Cristo; tornei-me contrário, por sua vez, a tudo aquilo que diga respeito ao cristianismo. A mensagem de Cristo é uma mensagem autêntica. Já, por sua vez, a mensagem do cristianismo atua como uma anti-vontade contrária à liberdade. O cristianismo é uma religião doente. Enfermante. Segregadora. Arrogante. Inimiga da natureza. Cristo foi fiel àquilo que pregou. Havia bondade em sua mensagem - era "a boa-nova", que chamava aquele de coração cativo a ter em si o reino de deus. O reino de deus não era uma realidade metafísica, invisível, mas era a essência do evangelho que mora no coração. Cria tanto naquilo que falava, que morreu por aquilo que pregou. O cristianismo, de outro modo,  é uma vontade ressentida contra as forças do mundo, desejoso por afirmação e glória. 

O cristianismo enquanto sistema religioso é a negação da vida. É o escoderijo de uma metafísica arrogante, triunfalista e inimiga do mundo - porque inimiga da vida. É uma religião para homens com sentidos deformados e que buscam refúgio na culpa e na doença. 

Afirmo tais coisas, porquanto, ontem assisti ao filme Blaise Pascal (1972), do diretor italiano Roberto Rossellini. Na década de 70, Rossellini gravou filmes sobre a vida de alguns filósofos. Abordou a vida de Sócrates, Santo Agostinho, Blaise Pascal e Descartes. Tenho os quatro filmes do diretor italiano. Reservei três dos quatro para assisti neste final de ano - Sócrates, Blaise Pascal e Descartes. Mas é certo que eu assista à película sobre Agostinho também. 

Voltando: o retrato pintado a respeito do francês gerou curiosidade para que eu conheça mais profundamente o inquieto pensador. Há muito que tenho intenção de ler os Pensamentos, projeto que pretendo encetar no próximo ano. Comprei, há alguns dias, um livro sobre Pascal na livraria Paulus aqui em Brasília ("Blaise Pascal - conversão e apologética", de Henri Gouhier). Pretendo lê-lo assim que terminar os Pensamentos

O que me interessa em Pascal é a sua acuidade intelectual e filósofica. Pascal era dono de uma inteligência rara, capaz de se expandir em especulações sobre os mais variados campos do saber - era físico, astronômo, filósofo, matemático, teólogo. 

 O que é curioso nessa argúcia do pensador é o quanto a religião cristã foi responsável por oprimir o espírito de Pascal; o quanto isso lhe amofinou o engenho, a capacidade. O quanto ele sofreu. O quanto a sua saúde se tornou frágil por causa dos sofrimentos infligidos pela fé. Ele chega quase a sofrer uma paixão. Buscava suprimir um questionamento, uma ausência, uma ânsia pelo infinito. Para isso, fiou-se pelo cristianismo. Anulou-se. E aquilo acabou por matá-lo. A crença o assassinou de forma lenta, gradual, terrificante.

É conhecida a fala sarcástica e irônica de Voltaire sobre Pascal. Conta-se a lenda que Pascal se converteu ao cristianismo após ter caído de um cavalo. Voltaire disse, que, nesse tombo, Pascal bateu a cabeça e, a consequência, foi a perda da inteligência. 

Pascal poderia ter sido uma das mentes mais destacadas dos últimos mil anos, já que habitava nele uma sede pela especulação. Segundo ele, a existência não deveria se organizar apenas por intermédio de um método racional, como fica explícito em sua conversa com Descartes no filme de Rossellini. Além disso, é conhecida a frase de Pascal - "o coração tem razões que a própria razão desconhece" - que foi proferida para se constituir em antítese ao cartesianismo.

Sendo assim, penso que a religião constrói cadeias, esconde a vida da vida. A mensagem que abarca a existência é resultado de uma explosão luminosa chamada devir, que é sempre uma força criadora. Ela pode trazer eventos ditos positivos ou negativos; mas seja bom ou ruim, tudo é vida. Esconder-se por trás de promessas inócuas, debéis, com a consistência de eflúvios gelatinosos é jogar, se conduzir,  de forma inautêntica. Talvez tenha faltado isso a Pascal.

quarta-feira, dezembro 19, 2012

Lima Barreto e sua crítica ao país dos bruzundangas


 Ao ler o trecho abaixo do livro Os Bruzundangas, de Lima Barreto, não pude deixar de pensar no Brasil que foi e no Brasil que é; percebi que o Brasil que é não mudou a sua face, a sua estrutura corrupta e parasitária.

"Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. 

No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a cousa mas fácil desta vida. 

Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem, empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres". ( Lima Barreto, Os Bruzundangas, p. 31)

Lima Barreto viveu em um período singular da história do Brasil - durante a nossa Primeira República, também conhecida como República Velha, um período viciado e atrasado economicamente da história nativa. Era o período dos grandes latifúndios. A burguesia, com dois cavalos, alguns militares e um grito, derrubara um Império e instituira a República. Isso era o ano de 1889. A elites agrárias, dona dos grandes latifúndios, como os barões do café, já estavam instalados nas metrópoles regionais. Deixamos a casa-grande para trás, mas a tradição oligárquica de concetração da terra e do poder político permaneceu entre nós. 

Os velhos fazendeiros do passado se converteram nos empresários e nos banqueiros dos dias de hoje, mas os costumes da gênese rural se processam desde aqueles tempos. Essa "fauna nativa" está nos sucessivos revezes pelas quais a vida política brasileira atravessou: aplica golpes, faz pactos para manuntenção do poder, passeatas reacionárias, criminaliza os movimentos sociais e voluntariamente se rebaixa aos interesses dos países centrais. 

A evolução do capitalismo no Brasil é o de uma modernização sem ruptura, como diria Lênin. A nossa história não registra nenhuma revolução que engendrou uma interrupção na forma de domínio político, que se inseriu verdadeiramente no imaginário da coletividade nacional. Não temos uma tradição revolucionária. Somos um país de coiós, de atoleimados que espera o carnaval e a final do campeonato. 

É justamente em um país como esse, descrito aqui que Lima Barreto viveu. Talvez a diferença do ontem para o hoje repouse no nível de urbanização e na mudança interna do modo de produção: saímos de capitalismo agrário e exportador para um capitalismo corporativista e monopolista a serviço do deus mercado.

Se formos elencar a importância política da prosa dos literatos tupiniquins, veremos que Lima Barreto, Graciliano Ramos e Machado de Assis, tenham realizado os discursos mais contudentes. Dos três, penso que Machado tenha sido aquele que se aburguesou. O mulato, gago e epiléptico fundou uma Academia para escritor conservador e reacionário. Vale mencionar que enquanto esteve vivo, Lima tentou ingressar por duas vezes na fatídica Academia e foi recusado. Bloqueram-lhe o acesso. Todavia, em sua história teve figuras dantescas como Getúlio Vargas e Roberto Marinho e até quixotescas, como por exemplo, os atuais José Sarney e Paulo Coelho.

Lima Barreto era um sujeito maldito. Morador de subúrbio. Mulato. Filho de pais alforriados. Funcionário de repartição pública. Uma função pequena, ordinária. Viciado em álcool. Considerado como dono de uma prosa ruim. Picaresco em suas abordagens. Cínico em demasia. Leitor de Voltaire. Amante de Nietzsche. Amigo de Monteiro Lobato. Anarquista e simpatizante da Revolução Russa. Conhecedor da angústia de Dostoiévsky. Cético. E no final da vida, abandonado e louco. Esse curriculum não agradava à Academia, que desejava figuras de prosa ensaboada e escovada como os parnasianos. 

O autor de O Triste fim de Policarpo Quaresma, sua tese pintada de maneira sarcástica contra o convencionalismo político e cultural, precisa ser lido para que conheçamos o Brasil "deitado em berço explêndido". O Brasil que é a antítese de si mesmo. O Brasil que não acredita no Brasil. O Brasil que se orgulha de patacas; dos sonhos adormecidos; dos rompentes de dois palmos. O Brasil que sonha em ser uma potência cosmopolitista. O Brasil das utopias estranhas e infantis. O Brasil que se vê, identifica-se, que se resigna com as novelas globais.

A nossa superestrutura (política, cultural, econômica) é pintada com as cores daquilo que foi, mas que ainda insiste em permanecer. O país dos bruzundangas não conhece a sua história e ostenta sonhos não velados.

terça-feira, dezembro 18, 2012

Baixio das Bestas e sua tese artificial


Ousei assistir ao filme Baixio das Bestas (2006), de Cláudio de Assis. O interesse pelo filme de Assis era um projeto antigo. Quando o filme estreou em 2006, li uma crônica positiva sobre o filme. Reservei um interesse pela obra. No mês de julho deste ano, assisti a outro filme de Cláudio Assis, de 2002, Amarelo Manga.

Mas tenho a dizer que esta segunda obra não me impressionou tanto quanto a primeira. Baixio das bestas me deixou com uma impressão decepcionante. Como em Amarelo Manga, Baixio traz uma tese de ruína social. Se naquele Assis retratou a vida citadina dos recifenses do subúrbio, neste o cinesta voltou os seus olhos para o campo - a Zona da Mata pernambucana. O espaço da obra é o espaço da decadência, do embargo do tempo. 

As cenas iniciais nos coloca um narrador que verbaliza sobre o poder de morte do tempo. Essa entidade matou os "engenhos", matou as "usinas", matará "a mim" e matará "a você". Talvez nessa afirmação resida o fato de que o tempo é o propugnador inveterado da condição de penúria e alienação do ser humano; que a passagem do tempo não trará mudanças, que a condição de miséria se retroalimenta. E de certa forma, o que percebemos no filme é a clausura; a ausência de saídas; o enredo da obra é apriosionante. A história tem início, mas o final não nos dá notícia dos personagens. De forma abrupta, o fluxo da história é interrompido.

Ao invés de levar o espectador à história, fazendo-o refletir, Assis opta por trazer a história. Impô-la. Torná-la chocante. A estratégia utilizada é o corpo nu, a masturbação, o estupro de prostitutas, a orgia, a moral decadente, a hiprocria, o cafetismo e a exploração sexual imposta por um avô à neta, a prisão domiciliar, a vida infame de agroboys que se utilizam da condição de 'civilizados' para ultrajar a vida do homem do campo.

Numa da cenas iniciais, talvez querendo estabelecer uma conexão com aquilo que mais tarde é trabalhado, numa espécie de spoiler, o avô da garota supra mencionado, leva a neta para se despir paras caminhoneirso e outros sujeitos da terra. Num jogo cinematográfico, a jovem se apequena com o distaciamento da câmera, enquanto os homens são mostrados em simulações de masturbação, num gesto desvairado e animal, e logo em seguida é mostrada a cruz de uma igreja velha. Ou seja, de um lado a ignomínia, a vilania, a baixeza de bestas, do outro lado, a moralidade sagrada da religião. Aquela se soprepõe a esta. 

O acerto claro em Amarelo Manga, faltou em Baixio das bestas. O Brasil é um país assentado na desigualdade, de fato. Um país que possui uma quantidade significativa de pessoas que vive uma realidade infame de miséria e alienação. Homens e mulheres que são violentados pelo descaso e que vivem em "baixios" rurais e urbanos; que não experimentam a dignidade; que experimentam a não dinamicidade das mudanças sociais e que, por causa disso, são vítimas da violência e de uma olhar pequeno sobre o mundo. 

Todavia, a intencionalidade da obra asfixia o espectador e não deixa a possibilidade de credulidade. O homem para Assis, tornou-se em bicho medonho, ávido por misérias e putrefação. Se Assis tivesse apostado na denúncia, criando processos de reflexão como fez em Amarelo Manga, a sua tese teria sido aceita com mais facilidade.

sábado, dezembro 15, 2012

Luiz Gonzaga - a voz que representa um povo

No último dia 13 de dezembro, o Brasil teve a honra de comemorar o centenário do nascimento de um dos seus artistas populares mais ilustres - Luiz Gonzaga, o rei do baião, o velho Lua; um dos responsáveis pela consolidação do forró, do baião e do xote como ritmos musicais essencilamente brasileiros. Não percebi muitas homenagens sendo realizadas para laurear o grande artista nascido no sertão do estado de Pernambuco.

Resolvi, por isso, no último dia 13, assisti ao filme "Luiz Gonzaga - de pai para filho", que me pareceu bastante contudente no aspecto biográfico. A obra de Bruno Silveira revela os momentos mais importantes da história do artista pernambucano - sua origem, a saída de Exu, sua cidade natal, a fase no exército brasileiro, a ida ao Rio de Janeiro, as dificuldades iniciais para conseguir se consolidar como um artista das massas, a fase de sucesso e o posterior esquecimento do público a partir da época de JK. Todos os fatos são narrados ao filho Gonzaguinha, que vai a Exu com a finalidade de prestar contas com o pai. Os dois possuíam uma relação estremecida em decorrência das muitas viagens empreendidas por Gonzagão e o abandono do filho. É um filme bonito. Possui momentos bastante belos e dramáticos. Os atores conseguem ser convincentes.

Falar de Luiz Gonzaga é lembrar a minha infância no interior do estado de Pernambuco, na década de 80. Recordo-me de que quando saí do estado de Pernambuco, no dia de 19 de agosto de 1989, com destino a Brasília, Gonzaga morrera dia 2 do mesmo mês. Foi um acontecimento grandioso. Triste. A minha memória traz fiapos do evento. Todavia, recordo-me da grande passeata; do choro  dos pernambucanos e de tantos outros brasileiros que se identificavam com o autor de "Asa Branca". 

Sempre observava o meu avô paterno, nas tardes de sábado, embaixo de uma mangueira frondosa, a escutar em seu Chevette '79, as canções do rei do baião. Ele inclinava o banco do carro e ficava indolente na tarde ventilada e de bafo quente. 

Recordo que ainda muito pequeno, aprendi muitas das músicas do grande artista. Lá em casa, meu pai possuía inúmeros vinis de Gonzaga. As festas juninas eram grandes e divertidas, regadas ao som de Luiz Gonzaga e do Trio Nordestino. Eu, sujeito oblíquo, tacanho, em minha inocência infantil, ganhava algumas moedas da parentela para cantar músicas de Luiz Gonzaga. Uma que eu sempre cantava era "Farinhada": "Eu tava na peneira/ eu tava peneirando/ Eu tava no namoro/ eu tava namorando". Além do quê essa canção traz uma lembrança benfazeja da minha avó paterna - que hoje não mais vive. Era uma música que eu sempre a escutava cantarolar.
Outra música bastante cantada era "A volta da asa branca": "Já faz três noites/ que pro norte relampeia/ A asa branca/ ouvindo o ronco do trovão/ Já bateu asa/ E voltou pro meu sertão/ Ai, ai eu vou me embora/ Vou cuidar da plantação".

Ou "Riacho do Navio": "Riacho do Navio/ Corre pro Pajeú/ O rio Pajeú vai despejar/ No São Francisco/ O rio São Francisco/ Vai bater no "mei" do mar/ O rio São Francisco/Vai bater no "mei" do mar".

Outra ainda era de "Fiá a Pavi": "Hoje tem forró mais cedo,/ forró como eu nunca ví/ Tem quadrilha pau de sebo,/ violeiro desafio/ Sanfoneiro forrozeiro,/ têm bandinha de bifitri/ Forró quando é gostoso eu entro de fiá pavi". 

A mais pedida era "Forró de cabo a rabo": "Eu fui dançar um forró, Lá na casa do Zé Nabo/ Nunca ví forró tão bom,/ Nessa noite quase me acabo/ Tinha um mundão de mulé,/ Sanfoneiro como o diabo/ O forró tava gostoso,/ Era forró de cabo a rabo". Em minha ignorância não entendia o termo "Zé Nabo" e cantava "Zenado". O importante era que a rima se consumava.

Gostava muito de cantar embaixo do sol inclemente "Pense n'eu": "Pense n'eu quando em vez coração/ Pense n'eu vez em quando/ Onde estou, como estarei/ Se sorrindo ou se chorando/ Se sorrindo ou se chorando/ Pense n'eu... vez em quando/ Pense n'eu... vez em quando". Recordo-me de uma marcha, uma toada que possuía um toque leve de viagem, de um vagar pesaroso. Aquela contração "n'eu" possuía um efeito tremendo sobre mim. Se não estou enganado, Gonzagão contava essa música com o seu filho Gonzaguinha.

Além dessa vivência com a música de Luiz Gonzaga, no mês de junho, meu pai inventava uma festa junina que era uma atração na região de gente humilde. Magotes de matutos pululavam por todos os lados. Colocavam camisas tacanhas e perfumes de gosto duvidoso. O arrasta-pé acontecia embaixo de uma palhoça feita com palhas de coqueiro. O chão era preperado com areia. A estrutura verde abrigava danças e bebedeiras que contemplavam as três festas católicas do mês de junho - Santo Antônio, São João e São Pedro. A pândega era alimentada pelo embalo sonoro. Acepipes ordinários. Cerveja ruim. Cachaça. Riso solto. Alegria desarrazoada. E um profundo toque de satisfação naquele regozijo ordinário. 

Todavia, as músicas de Luiz Gonzaga estavam ali. Faziam a alegria do matuto. Elevava a dignidade do sujeito que se esfumava no roçado no meio da semana. Que juntava o salário mambembe e gastava na patuscada. O riso fácil, emulado pelos vapores etílicos, era esperado com anseio nervoso pelos sertanejos do lugar. Eu, criança mofina, de gestos acanhados, observava os movimentos, a expectação, o acontecimento ruidoso.

Mas o que é tão marcante em Luiz Gonzaga? É importante dizer que Luiz Gonzaga dignificou o Nordeste com a sua música. Quando de seu surgimento, o Nordeste era preterido do cenário cultural do país. A década de quarenta não possuía lugar para as novidades vindas de lá. Ao tentar a sorte no Rio de Janeiro, Gonzaga foi ousado. Inventou um estilo e, na era de ouro do rádio, solidificou uma identificação com o público - pincipalmente os nordestinos que procuravam vida nova no Centro-Sul do país. Era época da Ditadura de Vargas. A ideia de um cantor que arrebatasse o povo, sem uma crítica política explícita, agradou o status quo.

Quando analisamos a obra de Gonzaga percebemos alguns momentos bastante curiosos. Suas canções eram engajadas? Talvez essa não fosse a sua finalidade. Ele cantou o sertão. Falou das agruras da seca, como em "Asa Branca", "Pau de Arara", "Acauã" ou em "Triste Partida", a qual o compositor faz parceria com o poeta cearense Patativa do Assaré, outra voz importante do sertão. 

O fato é que arcabouço artístico de Gonzaga - o ritmo, as letras, o sotaque, as expressões utilizadas, os elementos culturais expostos, a voz gonzaguena - faz identificar os elementos culturais de uma região, de um povo inteiro. Inocente ou não,  a música gonzagueana representou/representa as condições de vida de uma parte do povo nordestino, sobretudo àquele que estava à mercê das benesses do litoral que desigual e rapidamente passava por um processo de urbanização. Aqui parafraseando Euclides da Cunha: "O que separa o sertão do litoral, não são dezenas de quilômetros; mas um século inteiro". 

Sua música, ora pede, ora agradece; ora tece críticas, ora mostra a alegria do cotidiano da região, representou para o Brasil um novo gênero musical, seja na dança, seja nas melodias. Muitas de suas letras são poesias densas, expressivas, belas e tristes - verdadeiras forças que revelam um lado esquecido do Brasil. 

Abaixo, escolhi três canções de uma beleza comovente: Acauã, Assum Preto e Estrada de Canindé. 
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terça-feira, dezembro 11, 2012

Notas do subsolo e a largueza existencial de um personagem

Há livros cujas palavras iniciais tornam-se sentenças vivas, epigramáticas. Um desses casos é Notas do subsolo, de Dostoiévsky. A personagem, um sujeito de personalidade complexa e filosoficamente densa, representa o discurso anticientífico. O homem do subsolo de Dostoiévsky é um sujeito que se insurge contra as normas vigentes, que busca autenticidade em meio ao status quo e a ebulição de uma discurso determinante. Ele racionaliza a sua existência e diz num discurso kierkegaardiano que "o homem não é uma tecla". Ou seja, que o homem não é apenas uma engrenagem que faz girar um mecanismo social. Que ele é amplo! Que guarda mistérios e amplidões. A ideia de civilização molda os instintos, mas existe uma força subterrânea que desafia as convenções morais. Não se é apenas aquilo que se vê.

Fiquei impressionado com as vicissitudes e a largueza da personagem, que ergue um discurso anti-humano. O escritor faz uma viagem no mundo escuro das personagens. Constrói uma teia psicológica espessa. As verbalizações e o monólogo da personagem, o homem-do subsolo, o homem-do-lodo, o homem-do-escuro, o homem-barata, impinge nele a condição de anti-herói. No livro há força, energia, medo, loucura, demência, ressentimento, vergonha, escárnio, desespero, contradição, desejos autênticos, desprezo.

Segue o trecho inicial que já nos bota um gosto amargo na boca e nos faz penetrar em um mundo elétrico, lancinante.

"Sou um homem doente... Sou mau. Nada tenho de simpático. Julgo estar doente do fígado, embora não perceba nem saiba ao certo one reside meu mal. Não me trato, e nunca me tratei, por muito que considere a medicina e os médicos, pois sou altamente supersticioso, pelo menos o bastante para ter fé na medicina. (Possuo instrução suficiente para não ser supersticioso e, no entanto, sou...) Não, se não me trato é por pura maldade; é assim mesmo. O senhor não compreenderá isto, por acaso? Pois compreende-o e basta. Não há dúvida de que eu não conseguiria explicar a quem prejudico neste caso, com a minha maldade. Compreendo perfeitamente que, não me tratando, não prejudico a ninguém, nm sequer os médicos: sei melhor do que ninguém que só a mim próprio prejudico. Não importa; se não me trato é por maldade. Tenho o fígado doente? Pois que rebente!"

domingo, dezembro 09, 2012

Contos russos, nossos contemporâneos

O que há em comum entre o país narrado pelos grandes autores russos do século 19 e início do 20 e o Brasil? Muita coisa, como a tirania, a servidão, a miséria, o povo ao relento. Falta apenas o talento, fonte de gênios da literatura, que souberam transformar a nação reportada num cenário inesquecível do drama humano. Neste ensaio, abordamos contos de Tolstói, Górki e Turguêniev, entre os mais conhecidos, e outros nomes mais ocultos, como Kuprin, Sologue, Búnin, Andreiév, Garshin, Ko­rolenko e Tchirikon. Eles expressam com lucidez e impiedade o que há de mais valioso num país diante do seu destino: a população que luta pela sobrevivência e sonha para se manter à tona.

O alpinismo social na tirania

A sociedade radiografada pelo gênio de Tolstói em “A Morte de Ivan Ilitch” e “Senhores e Servos” (do livro “As Obras-Primas de Liev Tolstói”, Ediouro, tradução de Mar­ques Rabelo e Boris Sch­naiderman) é a que mais se parece com a do Brasil velho de guerra. O primeiro conto, ou novela, considerado obra-prima da literatura universal, aborda a classe média ascendendo por meio da carreira nos órgãos públicos. Esse alpinismo em direção ao estamento se faz com ambição e mediocridade, com falsidade e tenacidade, com a reprodução, por gerações, dos mesmos papéis sociais passados de pai para filho, pela sociedade de classes onde se insere a casta privilegiada de juízes e promotores. A disputa pelo butim, o arrivismo na troca de governos, a prepotência do mando e das assinaturas diante de uma população desarmada e pobre, tudo está lá, de maneira límpida e absolutamente cruel.

A fase terminal do protagonista abre seus olhos para a indiferença dos contemporâneos, a falta de solidariedade da família (o barulho de fru fru da saia chic da filha em noite de gala no momento em que o pai se esvaía em dor e morte é de arrepiar), a brutalidade nas relações humanas, o vazio e a infelicidade de uma trajetória dedicada ao nada e a coisa nenhuma, sob a capa de uma vida respeitável e honesta. É tudo mentira, mas só a presença da morte pode deixar explícita toda a trama de horrores de que é feita uma sociedade de classes.

Tolstói sabia do que estava falando. Abandonou faculdades e empregos, se insurgiu contra os desmandos no Exército, abandonou bens e família já em avançada idade: ele não queria para si o destino de Ivan Ilitch, o juiz que enxergou tarde demais. Um insight que ele economiza para as gerações que o sucederam, e que assim mesmo não aprenderam a lição, já que reproduzem o mesmo quadro indefinidamente. O que vemos hoje? A falsidade imperante, as carreiras profissionais fundadas no fingimento, na mentira e no marketing pessoal, a violência dos mercados, do trabalho, das pessoas e dos produtos.

Pense, como Ivan Ilicht, nos momentos felizes da vida profissional e adulta. Ivan teve que ir buscar na infância algumas migalhas de felicidade, já que depois não encontrou mais nada. É assim a vida que vivemos. Por mais amizades que tenhamos feito, por mais vitórias acumuladas, um balanço sincero de quem queima os navios para viver uma vida diferente poderá revelar o que fica oculto: o de que estamos submissos a essa gana pela sobrevivência, que nada respeita na sua carruagem de fogo. Radical demais? Tolstói, com seu talento insuperável e maestria, prova que não.

No segundo conto, são os mandões que enriquecem explorando tudo e todos e colocando a canga em cima das necessidades alheias. O protagonista arrisca a vida e a do seu servo para fechar um negócio inspirado pelo seu medo de perder dinheiro. Ele precisa enfrentar a tempestade para poder passar a perna em quem vai vender e nos seus concorrentes, que querem comprar a mesma floresta. Sua intenção é devastar o lugar para conseguir o máximo de lucro. Quanta coincidência, não?

Esse personagem descobre, quando fica preso no meio da neve e do vento, que é mais importante viver do que conseguir mais riqueza. Mas também é tarde demais. Ele ainda consegue recuperar parte da sua humanidade ao salvar o servo do congelamento, mas sua morte prova que esse gesto foi o único de sua vida estéril. É assim que acontece: vamos adiando a verdade até que não podemos mais abraçá-la, a não ser na hora final. Por que não queimar etapas e hoje mesmo começar a mudar? Por que é difícil, porque significa arriscar a sobrevivência. Precisamos fingir, mentir, para continuarmos vivos, ou não?

Ou tudo não passa de uma armadilha da sociedade de classes, do poder monopolizado de czares que definem nossas vidas enquanto gargalham? Pelo menos, ler Tolstói nos resgata para muitas verdades e para o entusiasmo de mergulhar num texto realmente primoroso e eterno.

Mestres ensinam a narrar

“A Mãe de Branco”, de Sologue, e “O Mártir da Moda”, de Kuprin, são dois contos do livro “As Obras Primas do Conto Russo”, (Martins Edi­tora), que abrem o leque da nossa percepção não apenas em relação à literatura russa, que a vemos sempre ligada aos grandes dramas épicos ou à denúncia das mesquinharias cotidianas, ao enfrentamento do clima áspero ou a dura vida nos desertos e na infindável miséria. Eles também nos levam pela mão para os inumeráveis recursos da narrativa, que podem nos transportar para mundos imaginados que nos pareciam exclusivos de nossa mente, mas também, descobrimos abrindo o livro, fazem parte de outros povos; e de realidades próximas que identificam tradicionais assombrações com nações e tempos remotos.

Sologue é um artista da palavra impregnada por aquele clima romântico atraído para a morte e a névoa, tão caro aos nossos poetas como Cruz e Souza ou Álvares de Azevedo. Tamara, o amor impossível, diáfana, quase transparente, é a sedução do celibatário que não suporta gente e festas de fim de ano. Ele prefere mergulhar no seu sonho, lembrando a jovem que namorou rapidamente, antes que fosse acometida por mal súbito e morresse, deixando nosso solteirão abandonado para sempre.

Parece coisa típica do século 19, mas vemos como a morbidez amorosa atrai multidões até hoje, com vampiros galantes, fantasmas sedutores e alienígenas cheios de charme. Tudo é soma na cultura, não existe mais essa fila analógica de tendências, tudo é simultâneo, contemporâneo. Não há superações. Há, claro, a experiência adquirida, mas a abordagem das várias artes é onívora, ou seja, gosta de tudo. Podemos ser árcades, românticos, radicais, revolucionários. Ou hilários, como o conto de Kuprin sobre o marido muito gordo e rico que, por amor à bela esposa, fica pagando inúmeros micos para acompanhar as modas das artes.

Lá vemos o pobre marido vestindo casacos futuristas, tentando sentar em cadeiras absurdas (como as de “design” hoje, feitas para exposições e não para serem usadas) e querendo o divórcio porque não aguentava mais fazer papel de ridículo diante dos seus amigos e parceiros de negócios. As modinhas que obrigaram nosso amigo a tomar essa decisão, depois que caiu de barriga no chão num lotado espaço de patinação, continuam em vigor, de várias formas. Vi isso muitas vezes. Gente fazendo pose, notando detalhes da tua roupa, fingindo que são vanguarda mas continuam presos a velhos hábitos. No fundo, não mudamos nunca. Somos como esses personagens tão magistralmente retratados pelos mestres russos, que nos encantam com o poder de suas palavras.

Gosto desses temas aparentemente bizarros mas que tem tudo a ver conosco. Tanto as assombrações quanto o humor de situações humanas. Precisamos rir de nós mesmos para que o mundo não se acabe de vez em barbárie. E imaginar outros mundos, para que possamos conviver com o mistério. Esqueci de dizer: o celibatário acaba adotando um órfão, obedecendo assim a sugestão do seu fantasma amoroso.

Em “A Glória”, Búnin fala do fascínio que seu povo tem pelos patifes. Ele aborda os enganadores seguidos por multidões apenas pelo fato de exibirem um comportamento bizarro confundido com sagrado. Búnin sabia abordar o povo e era um dos escritores favoritos de um especialista nesse assunto, Máximo Górki. O mujique que gostava de tomar litros de chá açucarado e que nem sabia ler cartas, mas era convocado para consultas de todo o tipo; o limpador de latrinas que cantava em eventos religiosos e sociais e que vivia recebendo presentes, doces e dinheiro; o camponês que decidiu ser um pregador e saiu em andrajos e causou grande impressão ao mugir em missas e funerais; o porteiro que um dia resolveu profetizar e que causava grande veneração popular; e o homem que dava cambalhotas nas peregrinações provocando alvoroço. Todos são personagens dessa galeria impressionante.

Em “O Grande Slam”, outro exemplar da mesma coletânea, Andreiév aborda um grupo de quatro pessoas que se reuniam metodicamente para jogar cartas. Ele nos leva para um desfecho trágico depois de descrever uma rotina que deveria ser de lazer. Mas é apenas formalidade, vazio de vida, pessoas que ficaram próximas durante anos e não sabiam nada uma das outras, nem onde moravam. O autor descreve magistralmente as contradições do comportamento social falso, quando, por exemplo, a mulher do grupo se atrapalha e é aparentemente tolerada pelos seus parceiros de jogo. Eles fazem as honras da masculinidade para os caprichos da mulher, mas não escondem a irritação por ela ser tão desastrada.

O conto também é um toque sobre o objetivo principal do evento, que seria conseguir o grande lance, o que jamais ocorre, pois a expectativa, a ansiedade e a frustração impedem que um dos jogadores, cardíaco, chegue ao final. Conviver com o corpo inerte em cima da mesa onde se distribuíam as cartas é um detalhe sinistro deste brilhante conto de mais um autor russo, que nos deslumbra pela sua capacidade de exercer um ofício tão complicado como é a literatura.

Em “Fausto”, de Tchirikov, o casal pequeno burguês que vive vida vegetativa, ele bancário viciado em jogo de cartas que odeia sua casa, ela a esposa ressentida e frustrada que lamenta a perda da juventude e da beleza. Mas ao quebrarem a rotina e irem ao teatro ver a peça de Charles Gounod sobre o homem que vendeu sua alma, eles recuperam o viço e resgatam a emoção de viver. Descobrem que são invejados pelos amigos e se flagram mais próximos do que nunca.

Em “O Sinal”, de Garshin, autor que morreu cedo demais, com 33 anos, temos a história de um camponês que foi pra a guerra e lá exercia atividade subalterna de servir samovar para os oficiais. Pegou reumatismo nos rigores da campanha e não podia mais lavrar a terra. Saiu pela estrada de ferro afora atrás de emprego e encontrou um veterano a quem servia no front, que lhe deu o emprego de guarda-trilhos. Uma cabana onde poderia plantar e viver com a mulher e enfrentar o inverno e pronto, lá estava ele feliz e orgulhoso com sua lanterna e suas ferramentas. Quis fazer amizade com vizinho, que era muito revoltado e acabou cometendo um crime: arrancou um trilho na iminência da chegada de um trem cheio de famílias pobres.

Nosso herói foi para o meio da estrada e como não tinha jeito de avisar a tempo, cortou profundamente o braço e embebeu um pano de seu sangue e o colocou na ponta de um mastro como bandeira. O maquinista viu e freou. Como saiu muito sangue, ele desmaiou no meio da sua ação, mas a bandeira foi assumida pelo próprio criminoso. “Amarrem-me. Eu arranquei um trilho”, disse o culpado. Grande literatura. Faz chorar as pedras.

Na Rússia do século 19, havia a postura bem pensante dos intelectuais em relação à grande massa de camponeses e marginalizados das cidades. Até que chegou Máximo, o amargo, ou Górki, que veio da Rússia profunda, do povo mesmo e mostrou que a humanidade a qual pertencia nada tinha de cavalheiresco ou nobre ou desprezível. Eram brutos, geniais, soberbos, mesquinhos. Humanos por toda a conta. Texto magistral e enxuto, Górki no conto “O Acidente”, mostra como três rapazes embrutecidos fazem serviços pesados e caem na tentação do roubo e da mentira. E como expressam sua espiritualidade pelo avesso, ao serem contratados pela velha carola que lê a Bíblia enquanto eles pegam no pesado.

O narrador é o próprio Górki, que sofreu horrores até ser aclamado como um gênio literário pelo povo russo. Há ainda o debochado e o ingênuo, ambos vítimas das péssimas condições de sobrevivência. Górki mostra tudo sem fazer firulas. Precisamos desse exemplo para entendermos que fazemos parte do povo e não nos destacamos dele como se fôssemos os eleitos.

Em “O Encontro”, de Tur­guêniev, o narrador é testemunha de uma despedida de um casal no ermo, em meio à natureza. A exuberância do ambiente, descrito com maestria, se contrapõe ao drama entre o conquistador indiferente e bruto e a pobre apaixonada que implora atenção mesmo sabendo que será abandonada.

“Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo mo­mento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia”, nos diz Turguêniev, mostrando o outro lado da sua magnífica nação, que sempre vemos envolta na neve, na chuva, na ventania e no frio. Aqui, temos o esplendor da estação descrito por um mestre, que nos introduz o romance aparentemente bucólico como se houvesse uma traição á natureza, ou talvez, faça parte dela, pois se trata de paixão e crueldade, elementos recorrentes na vida natural. O importante é a força da narrativa, a originalidade do enfoque, que trabalha num território muito explorado, que é a descrição da paisagem.

Não são os temas escolhidos que fazem a diferença, mas sim o que você faz com eles. É a sua pena que conta, seu talento, seu domínio de linguagem. Não se pode é se entregar a soluções batidas por falta de competência ou de conhecimento.

Difícil é achar a legítima manifestação do talento, que é uma soma de sabedoria, um conhecimento acumulado submerso que aflora num poema, conto ou romance. Em outra história do livro em questão, desta vez de autoria de Ko­rolenko, um guarda se apaixona pela estranha prisioneira que ele escolta até os confins da Sibéria. É tocante ver a mulher tossindo nos rigores do inverno russo e aquele amor que penetra o texto como um veneno tardio.

É disso que somos feitos: da transcendência conseguida pela arte da palavra. Glória aos grandes escritores e rigor contra os enganadores.

Daqui

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Angústia, de Graciliano Ramos, algumas observações após a leitura

Após ter lido a biografia (acredito que seja a melhor já escrita) sobre Graciliano Ramos, de Dênis de Moraes, veio-me o desejo de revisitar algumas obras do escritor alagoano. Escolhi três dessas obras (Angústia, Infância e Viagem). Dos três livros, ainda não li Viagem. Hoje, terminei pela terceira vez a leitura de Angústia. Recordo-me, fazendo uma digressão, que a primeira vez que li Angústia - isso lá pelos idos de 1999 - fui invadido por um pasmo que somente um bom texto pode proporcionar. As leituras que fizera até ali, mostravam-se tolas, inexpressivas e até previsíveis. Eu, um leitor de lorotas literárias; eu, um leitor de placebos literários; eu, um leitor de sensaborias; de letras pouco "edificantes". Quando li Angústia houve um toque de transformação.

O personagem Luís da Silva se tornou um ente pegajoso. A prosa arrastada, asfixiante, perseguiu-me por semanas. Naquela ocasião eu frequentava uma igreja evangélica (de teologia calvinista). Fui falar sobre o livro e sobre a perspectiva literária de Graciliano Ramos com o reverendo da igreja, saí de lá com uma sensura agasalhada no entendimento e um conselho explícito para abandonar os textos do velho Graça. Não assenti. O julgamento tacanho do reverendo me fez perder a confiança na inteligência da maioria dos religiosos. Afinal, Graciliano se consumou como uma grande paixão.

Em 2004, li pela segunda vez a obra. Naquela ocasião, eu estava na casa do meu avô, no estado de Pernambuco. Foi um momento prazeroso. Muita chuva. Silêncios enormes. Uma casa de farinha de arquitetura mambembe. A chuva caindo como farinha fina, ocultando os prados afastados, as matas distantes; nuvens sisudas à semelhança de cobertores escuros no céu; intervalos regados com muita conversa com o meu avô, na ocasião, bastante sorridente. A experiência foi gostosa e reveladora. Foi o último contato que tive com meu avô.

E, agora, voltei a lê a obra de Graciliano. Fiquei com uma dúvida após ter realizado a leitura. Não sei se elegerei Angústia como o livro que mais gosto do escritor. Tenho uma predileção por São Bernardo, que possui uma escrita enxuta, um tema grandioso e uma análise psicológica sobre o mundo humano raro de se ler em literatura. Mas é curioso como Angústia é um tipo de literatura de estética esfumaçada, cinzenta, úmida, pegajosa.

O que Graciliano queria transmitir com esta obra? Os romances dos escritor possuem dinstinções singulares: Caetés se mete pela análise de uma pequena burguesia interiorana; com esta obra, o velho Graça se transforma em um Eça Queirós rural; com São Bernardo, Graça se transforma num Balzac do sertão; a narrativa sobre as vicissitudes de Paulo Honório e sua sina de bicho indomesticado transforma o romance em um dos livros mais importantes escritos na literatura brasileira do século XX. Em Angústia, seu terceiro romance, Graciliano sai do meio rural e se fixa na análise no meio urbano; Luís da Silva, um pequeno-burguês decadente, morador de subúrbio, pequeno em seus anseios; frustrado em sua paixão.

A obra está repleta de um pessimismo trascendente. Trata-se de uma naturalismo fundado no psicológico. Enquanto os realistas e naturalistas fixavam-se nos apsectos físicos como resultado das determinações psicológicas da natureza humana, Graciliano amplifica o psicológico e cria uma espécie de realidade fantasmal; um abismo escuro, onde bichos se escondem e são coloridos pela disposição mórbida de descrever do narrador. 

É curioso notar como a vida social em Angústia é construída por tipos tacanhos, pequenos, mesquinhos. Nenhuma das personagens parece estar fincado numa ideia de progresso da ordem social. Julião Tavares é burguês da história, mas é um conquistador, uma aventureiro e aproveitador. Utiliza posição para enganar as moças pobres. É um grande fanfarrão. Marina é alguém que busca o progresso por meio da sorte em um casamento que malogra. Moisés é o caudilho que sonha com a revolução e que escreve "Proleletários uni-vos" com piche em um muro velho, num subúrbio sujo. A grafia é torta e, a sintaxe, emperrada pela ignorância. Cabe a Luís da Silva proferir em outra parte do romance, demonstrando as suas crenças: "História! Esta porcaria não endireita. Revolução no Brasil! Conversa! Quem vai fazer a revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem. Os camponeses votam no governo, gostam do vigário". 

Como não existe perpectiva positiva no plano objetivo, cabe à personagem viver a angústia da imobilidade. A ideia patológica da alienação e do conformismo inoperante. O ódio de Luís da Silva por Julião Tavares, é o ódio do pequeno burguês sem possibilidade de ascensão, contra o privilegiado, ou seja, tudo aquilo que o primeiro quer ser. O intelectual emergente, que reflete a sua mísera e tacanha condição, que possui projetos pequenos e é abafado pela via material. Luís da Silva nesse sentido é um Raskolnikov, personagem de Crime de Castigo, do russo Dostoiévsky.

O mundo do romance está repleto de sombras oleosas e cinzas, de ratos que roem os papéis de Luís da Silva e de ratos, que no plano social, roem a utopia; de taras e de inapetência; de supercialidade no plano das relações físicas e de visceralidade no escrutínio dos dilemas das personagens; de mulambos, de decadência. Não sei, mas penso que Angústia tenha se tornado, no meu ponto de vista, o romance mais complexo de Graciliano Ramos. A linguagem é diversa daquela de São Bernardo ou de Vidas Secas.

Leiamos Infância. Mas antes terminemos As notas do subsolo, de Dostoiévsky.

domingo, dezembro 02, 2012

"Deus não existe!.."

Gostei bastante do texto. Reflete importantes questões cosmológicas, teológicas e filósoficas sobre a existência de Deus. A tese do autor é interessante - e vale muito a pena ler. 

Se Deus existe, Ele passou muito tempo na moita até que pudesse ser percebido por alguém. O universo, como existência física, é estimado em 14,5 bilhões de anos pelo calendário terreno, quando surgiu de um ovo pré-universal, numa explosão espetacular, cujos estilhaços formam os monumentais corpos celestes. Em um desses estilhaços, dos bem pequenos, é verdade, o Homo sapiens, a nossa espécie primordial, surgiu há cerca de  145 mil anos, ou seja: a nossa existência no universo ocupa o percentual infinitamente miúdo de 0,001% da existência do mundo. 

Astronomicamente falando é um tempo tão ínfimo quanto aquele gasto no piscar de uma lagartixa no contexto de um ano. Em algum momento de nossa curtíssima trajetória, desenvolvemos alguns atributos que nos foram diferenciando da bicharada, tais como consciência, o raciocínio lógico, o desenvolvimento de ferramentas, a interferência conduzida no meio ambiente, a cultura e a intuição da existência do sobrenatural.  Só então Deus começou a dar as caras. Ou seja, a existência de Deus como ideia e conceito começa de fato com a evolução racional do ser humano, dentro de um processo da evolução natural das espécies. Daí não ser um disparate afirmar que a natureza criou o homem e o homem criou Deus. A existência de Deus, se fosse pão, ainda estava quentinho de derreter a manteiga. Nenhuma das linhagens que nos antecederam, como as bactérias, as formigas, as baratas, os crocodilos, os dinossauros, supõe-se, não chegaram a aventar, ou mesmo intuir a existência de Deus. Pela simples razão de que eram ou são seres irracionais. A existência der Deus teve início com a nossa espécie.

A existência de Deus, a rigor, é um efeito colateral da racionalidade. Ela acontece onde o nosso limitado raciocínio esgota suas forças e não consegue romper. Aí entra a ordem sobrenatural, tendo como centro o Deus absoluto, princípio, meio e fim, aquele que é ubíquo e tudo sabe, que tem visão de raio X para saber o que existe por trás das pedras, por trás de nosso discurso falho e não raro dissimulado.

Costumamos afirmar que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, o que nos parece não só uma forma arrogante de nos colocar em posição superior diante das demais criaturas e assim subjugá-las, mas também um evidente equívoco, prontamente observável.

Depois que fez o mundo, com sua alquimia explosiva, Deus esperou com paciência por mais de 14 bilhões de anos para inserir o homem em sua arena. Se fôssemos tão importantes como supomos ser, talvez Deus tivesse nos preparado mesmo antes da construção do cenário e nos conservado no formol divino e nos inserido em cena desde o primeiro ato. Já o Homo sapiens, ao contrário de Deus, é um bicho extremamente ansioso. Queremos alcançar resultados, atingir objetivos desde as primeiras ações.

Diante desta situação, de duas uma: ou Deus é semelhante a nós, mas não somos importantes para Ele, apesar da semelhança. (A semelhança, no caso, ao invés de produzir simpatia, pode ter produzido rejeição, pois, pelo dom da ubiquidade, Deus sabia desde sempre quem seríamos nós e do que seríamos capazes.) Ou então Deus não é semelhante a nós e, como espécie, somos apenas mais uma no desenrolar do longo novelo evolutivo, e que irá desaparecer até mais rapidamente do que as outras, como as baratas, as formigas e as bactérias, em razão de nossa racionalidade convertida em estupidez.

É uma noção quase unânime, independente da seita que se filie, ou da versão de Deus que se adote, que Ele é um ser permeável e receptivo aos nossos rapapés, que costumamos chamar de orações. E isso talvez nos fizesse especiais diante de Deus, pois somos a única espécie capaz de desenvolver rituais bajulatórios. Ora, há evidências de que Deus não se impressiona com nossos comovidos petitórios. Ou pelo menos a comoção de Deus não se manifesta de forma semelhante à comoção humana. Vez que somos tendentes a poupar de nossa ira as pessoas que nos beijam as mãos.

Ao longo da história, não foi uma nem duas vezes que templos abarrotados desabaram sobre os fiéis em oração. Exemplo típico foi o Dia de Todos os Santos de 1755, em Lisboa. Estando as igrejas da Capital repletas de fiéis, veio um terremoto. Quem sobreviveu ao terremoto foi engolido pelas chamas provocadas pelos escombros sobre as velas acesas. Quem ainda conseguiu sobreviver, em seguida foi engolido por um tsunami. Milhares e milhares de pessoas morreram rezando. A família real sobreviveu porque estava praticando um ato que contrariava a suposta vontade de Deus. Naquele domingo santo, dia de fervorosas adorações, estava fazendo churrasco e descansando na casa de verão, em Queluz.

Outro exemplo bem recente foi o tremor de terras do Haiti. Um dos países mais pobre do mundo, um povo extremamente sofrido e digno da piedade humana e divina e outras mais, se mais houver. Foi violentamente sacudido, não poupando nada nem ninguém. Levou de eito aficionados do vodu, do budismo, do islã, do cristianismo e quem mais estivesse por lá. Levou inclusive a Dra. Zilda Arns, a nossa santa viva e operante, que salvou milhões de crianças da mortalidade infantil, no Brasil e em outras partes. Inclusive estava lá em missão de salvação dos pequeninos, quando a igreja desabou sobre ela.

Em qualquer tempo e lugar, as pessoas que apostaram na hipótese de um Deus expresso e socorrista, a não ser que tenham se vendando pelas lonas do autoengano, acabaram desiludidas. O próprio Jesus Cristo, que se achava em condição mais do que especial diante das atenções de Deus, na hora em que ele mais esperava, desabafou:

− Oh, Pai, por que me abandonaste!?

Deus não é um ser de misericórdia e amor. Pelo menos seu amor e sua misericórdia não têm as feições que gostaríamos que tivessem. Nem tem o apego por nós que gostaríamos que tivesse. Talvez do que Deus goste mesmo sejam suas esferas rodopiantes, suas galáxias em espirais, suas estrelas incendiadas, seus buracos negros que povoam o universo numa profusão quase infinita. Enquanto nós, bicho da terra tão pequeno, como já sentenciou Camões, continuamos circunscritos a este estilhaço minúsculo, neste recanto de universo, que Terra tem por nome, com nosso destino atrelado ao destino das baratas e das moscas varejeiras. Ainda assim cheios de poesia em nosso triunfalismo enganoso.

Quanto ao título deste texto “Deus não existe!...” é no sentido brasileiro popular. Quando alguém nos surpreende de forma cabal, ou tem qualidades que superam quaisquer expectativas ou prescrições, nós dizemos simplesmente: “Fulano não existe!...” Assim me parece que seja Deus, uma entidade surpreendente, sobejante, incapaz de se ajustar ao entendimento humano, aos dogmas religiosos, à ciência ou à vã filosofia.

Definitivamente, Deus não existe!...
Extraído Daqui