O que há em comum entre o país narrado
pelos grandes autores russos do século 19 e início do 20 e o Brasil?
Muita coisa, como a tirania, a servidão, a miséria, o povo ao relento.
Falta apenas o talento, fonte de gênios da literatura, que souberam
transformar a nação reportada num cenário inesquecível do drama humano.
Neste ensaio, abordamos contos de Tolstói, Górki e Turguêniev, entre os
mais conhecidos, e outros nomes mais ocultos, como Kuprin, Sologue,
Búnin, Andreiév, Garshin, Korolenko e Tchirikon. Eles expressam com
lucidez e impiedade o que há de mais valioso num país diante do seu
destino: a população que luta pela sobrevivência e sonha para se manter à
tona.
O alpinismo social na tirania
A sociedade radiografada pelo gênio de
Tolstói em “A Morte de Ivan Ilitch” e “Senhores e Servos” (do livro “As
Obras-Primas de Liev Tolstói”, Ediouro, tradução de Marques Rabelo e
Boris Schnaiderman) é a que mais se parece com a do Brasil velho de
guerra. O primeiro conto, ou novela, considerado obra-prima da
literatura universal, aborda a classe média ascendendo por meio da
carreira nos órgãos públicos. Esse alpinismo em direção ao estamento se
faz com ambição e mediocridade, com falsidade e tenacidade, com a
reprodução, por gerações, dos mesmos papéis sociais passados de pai para
filho, pela sociedade de classes onde se insere a casta privilegiada de
juízes e promotores. A disputa pelo butim, o arrivismo na troca de
governos, a prepotência do mando e das assinaturas diante de uma
população desarmada e pobre, tudo está lá, de maneira límpida e
absolutamente cruel.
A fase terminal do protagonista abre
seus olhos para a indiferença dos contemporâneos, a falta de
solidariedade da família (o barulho de fru fru da saia chic da filha em
noite de gala no momento em que o pai se esvaía em dor e morte é de
arrepiar), a brutalidade nas relações humanas, o vazio e a infelicidade
de uma trajetória dedicada ao nada e a coisa nenhuma, sob a capa de uma
vida respeitável e honesta. É tudo mentira, mas só a presença da morte
pode deixar explícita toda a trama de horrores de que é feita uma
sociedade de classes.
Tolstói sabia do que estava falando.
Abandonou faculdades e empregos, se insurgiu contra os desmandos no
Exército, abandonou bens e família já em avançada idade: ele não queria
para si o destino de Ivan Ilitch, o juiz que enxergou tarde demais. Um
insight que ele economiza para as gerações que o sucederam, e que assim
mesmo não aprenderam a lição, já que reproduzem o mesmo quadro
indefinidamente. O que vemos hoje? A falsidade imperante, as carreiras
profissionais fundadas no fingimento, na mentira e no marketing pessoal,
a violência dos mercados, do trabalho, das pessoas e dos produtos.
Pense, como Ivan Ilicht, nos momentos
felizes da vida profissional e adulta. Ivan teve que ir buscar na
infância algumas migalhas de felicidade, já que depois não encontrou
mais nada. É assim a vida que vivemos. Por mais amizades que tenhamos
feito, por mais vitórias acumuladas, um balanço sincero de quem queima
os navios para viver uma vida diferente poderá revelar o que fica
oculto: o de que estamos submissos a essa gana pela sobrevivência, que
nada respeita na sua carruagem de fogo. Radical demais? Tolstói, com seu
talento insuperável e maestria, prova que não.
No segundo conto, são os mandões que
enriquecem explorando tudo e todos e colocando a canga em cima das
necessidades alheias. O protagonista arrisca a vida e a do seu servo
para fechar um negócio inspirado pelo seu medo de perder dinheiro. Ele
precisa enfrentar a tempestade para poder passar a perna em quem vai
vender e nos seus concorrentes, que querem comprar a mesma floresta. Sua
intenção é devastar o lugar para conseguir o máximo de lucro. Quanta
coincidência, não?
Esse personagem descobre, quando fica
preso no meio da neve e do vento, que é mais importante viver do que
conseguir mais riqueza. Mas também é tarde demais. Ele ainda consegue
recuperar parte da sua humanidade ao salvar o servo do congelamento, mas
sua morte prova que esse gesto foi o único de sua vida estéril. É assim
que acontece: vamos adiando a verdade até que não podemos mais
abraçá-la, a não ser na hora final. Por que não queimar etapas e hoje
mesmo começar a mudar? Por que é difícil, porque significa arriscar a
sobrevivência. Precisamos fingir, mentir, para continuarmos vivos, ou
não?
Ou tudo não passa de uma armadilha da
sociedade de classes, do poder monopolizado de czares que definem nossas
vidas enquanto gargalham? Pelo menos, ler Tolstói nos resgata para
muitas verdades e para o entusiasmo de mergulhar num texto realmente
primoroso e eterno.
Mestres ensinam a narrar
“A Mãe de Branco”, de Sologue, e “O
Mártir da Moda”, de Kuprin, são dois contos do livro “As Obras Primas do
Conto Russo”, (Martins Editora), que abrem o leque da nossa percepção
não apenas em relação à literatura russa, que a vemos sempre ligada aos
grandes dramas épicos ou à denúncia das mesquinharias cotidianas, ao
enfrentamento do clima áspero ou a dura vida nos desertos e na
infindável miséria. Eles também nos levam pela mão para os inumeráveis
recursos da narrativa, que podem nos transportar para mundos imaginados
que nos pareciam exclusivos de nossa mente, mas também, descobrimos
abrindo o livro, fazem parte de outros povos; e de realidades próximas
que identificam tradicionais assombrações com nações e tempos remotos.
Sologue é um artista da palavra
impregnada por aquele clima romântico atraído para a morte e a névoa,
tão caro aos nossos poetas como Cruz e Souza ou Álvares de Azevedo.
Tamara, o amor impossível, diáfana, quase transparente, é a sedução do
celibatário que não suporta gente e festas de fim de ano. Ele prefere
mergulhar no seu sonho, lembrando a jovem que namorou rapidamente, antes
que fosse acometida por mal súbito e morresse, deixando nosso solteirão
abandonado para sempre.
Parece coisa típica do século 19, mas
vemos como a morbidez amorosa atrai multidões até hoje, com vampiros
galantes, fantasmas sedutores e alienígenas cheios de charme. Tudo é
soma na cultura, não existe mais essa fila analógica de tendências, tudo
é simultâneo, contemporâneo. Não há superações. Há, claro, a
experiência adquirida, mas a abordagem das várias artes é onívora, ou
seja, gosta de tudo. Podemos ser árcades, românticos, radicais,
revolucionários. Ou hilários, como o conto de Kuprin sobre o marido
muito gordo e rico que, por amor à bela esposa, fica pagando inúmeros
micos para acompanhar as modas das artes.
Lá vemos o pobre marido vestindo casacos
futuristas, tentando sentar em cadeiras absurdas (como as de “design”
hoje, feitas para exposições e não para serem usadas) e querendo o
divórcio porque não aguentava mais fazer papel de ridículo diante dos
seus amigos e parceiros de negócios. As modinhas que obrigaram nosso
amigo a tomar essa decisão, depois que caiu de barriga no chão num
lotado espaço de patinação, continuam em vigor, de várias formas. Vi
isso muitas vezes. Gente fazendo pose, notando detalhes da tua roupa,
fingindo que são vanguarda mas continuam presos a velhos hábitos. No
fundo, não mudamos nunca. Somos como esses personagens tão
magistralmente retratados pelos mestres russos, que nos encantam com o
poder de suas palavras.
Gosto desses temas aparentemente
bizarros mas que tem tudo a ver conosco. Tanto as assombrações quanto o
humor de situações humanas. Precisamos rir de nós mesmos para que o
mundo não se acabe de vez em barbárie. E imaginar outros mundos, para
que possamos conviver com o mistério. Esqueci de dizer: o celibatário
acaba adotando um órfão, obedecendo assim a sugestão do seu fantasma
amoroso.
Em “A Glória”, Búnin fala do fascínio
que seu povo tem pelos patifes. Ele aborda os enganadores seguidos por
multidões apenas pelo fato de exibirem um comportamento bizarro
confundido com sagrado. Búnin sabia abordar o povo e era um dos
escritores favoritos de um especialista nesse assunto, Máximo Górki. O
mujique que gostava de tomar litros de chá açucarado e que nem sabia ler
cartas, mas era convocado para consultas de todo o tipo; o limpador de
latrinas que cantava em eventos religiosos e sociais e que vivia
recebendo presentes, doces e dinheiro; o camponês que decidiu ser um
pregador e saiu em andrajos e causou grande impressão ao mugir em missas
e funerais; o porteiro que um dia resolveu profetizar e que causava
grande veneração popular; e o homem que dava cambalhotas nas
peregrinações provocando alvoroço. Todos são personagens dessa galeria
impressionante.
Em “O Grande Slam”, outro exemplar da
mesma coletânea, Andreiév aborda um grupo de quatro pessoas que se
reuniam metodicamente para jogar cartas. Ele nos leva para um desfecho
trágico depois de descrever uma rotina que deveria ser de lazer. Mas é
apenas formalidade, vazio de vida, pessoas que ficaram próximas durante
anos e não sabiam nada uma das outras, nem onde moravam. O autor
descreve magistralmente as contradições do comportamento social falso,
quando, por exemplo, a mulher do grupo se atrapalha e é aparentemente
tolerada pelos seus parceiros de jogo. Eles fazem as honras da
masculinidade para os caprichos da mulher, mas não escondem a irritação
por ela ser tão desastrada.
O conto também é um toque sobre o
objetivo principal do evento, que seria conseguir o grande lance, o que
jamais ocorre, pois a expectativa, a ansiedade e a frustração impedem
que um dos jogadores, cardíaco, chegue ao final. Conviver com o corpo
inerte em cima da mesa onde se distribuíam as cartas é um detalhe
sinistro deste brilhante conto de mais um autor russo, que nos deslumbra
pela sua capacidade de exercer um ofício tão complicado como é a
literatura.
Em “Fausto”, de Tchirikov, o casal
pequeno burguês que vive vida vegetativa, ele bancário viciado em jogo
de cartas que odeia sua casa, ela a esposa ressentida e frustrada que
lamenta a perda da juventude e da beleza. Mas ao quebrarem a rotina e
irem ao teatro ver a peça de Charles Gounod sobre o homem que vendeu sua
alma, eles recuperam o viço e resgatam a emoção de viver. Descobrem que
são invejados pelos amigos e se flagram mais próximos do que nunca.
Em “O Sinal”, de Garshin, autor que
morreu cedo demais, com 33 anos, temos a história de um camponês que foi
pra a guerra e lá exercia atividade subalterna de servir samovar para
os oficiais. Pegou reumatismo nos rigores da campanha e não podia mais
lavrar a terra. Saiu pela estrada de ferro afora atrás de emprego e
encontrou um veterano a quem servia no front, que lhe deu o emprego de
guarda-trilhos. Uma cabana onde poderia plantar e viver com a mulher e
enfrentar o inverno e pronto, lá estava ele feliz e orgulhoso com sua
lanterna e suas ferramentas. Quis fazer amizade com vizinho, que era
muito revoltado e acabou cometendo um crime: arrancou um trilho na
iminência da chegada de um trem cheio de famílias pobres.
Nosso herói foi para o meio da estrada e
como não tinha jeito de avisar a tempo, cortou profundamente o braço e
embebeu um pano de seu sangue e o colocou na ponta de um mastro como
bandeira. O maquinista viu e freou. Como saiu muito sangue, ele desmaiou
no meio da sua ação, mas a bandeira foi assumida pelo próprio
criminoso. “Amarrem-me. Eu arranquei um trilho”, disse o culpado. Grande
literatura. Faz chorar as pedras.
Na Rússia do século 19, havia a postura
bem pensante dos intelectuais em relação à grande massa de camponeses e
marginalizados das cidades. Até que chegou Máximo, o amargo, ou Górki,
que veio da Rússia profunda, do povo mesmo e mostrou que a humanidade a
qual pertencia nada tinha de cavalheiresco ou nobre ou desprezível. Eram
brutos, geniais, soberbos, mesquinhos. Humanos por toda a conta. Texto
magistral e enxuto, Górki no conto “O Acidente”, mostra como três
rapazes embrutecidos fazem serviços pesados e caem na tentação do roubo e
da mentira. E como expressam sua espiritualidade pelo avesso, ao serem
contratados pela velha carola que lê a Bíblia enquanto eles pegam no
pesado.
O narrador é o próprio Górki, que sofreu
horrores até ser aclamado como um gênio literário pelo povo russo. Há
ainda o debochado e o ingênuo, ambos vítimas das péssimas condições de
sobrevivência. Górki mostra tudo sem fazer firulas. Precisamos desse
exemplo para entendermos que fazemos parte do povo e não nos destacamos
dele como se fôssemos os eleitos.
Em “O Encontro”, de Turguêniev, o
narrador é testemunha de uma despedida de um casal no ermo, em meio à
natureza. A exuberância do ambiente, descrito com maestria, se contrapõe
ao drama entre o conquistador indiferente e bruto e a pobre apaixonada
que implora atenção mesmo sabendo que será abandonada.
“Uma brisa ligeira alisava o cimo das
árvores. A floresta molhada mudava a todo momento de aspecto, conforme o
sol brilhava ou se escondia”, nos diz Turguêniev, mostrando o outro
lado da sua magnífica nação, que sempre vemos envolta na neve, na chuva,
na ventania e no frio. Aqui, temos o esplendor da estação descrito por
um mestre, que nos introduz o romance aparentemente bucólico como se
houvesse uma traição á natureza, ou talvez, faça parte dela, pois se
trata de paixão e crueldade, elementos recorrentes na vida natural. O
importante é a força da narrativa, a originalidade do enfoque, que
trabalha num território muito explorado, que é a descrição da paisagem.
Não são os temas escolhidos que fazem a
diferença, mas sim o que você faz com eles. É a sua pena que conta, seu
talento, seu domínio de linguagem. Não se pode é se entregar a soluções
batidas por falta de competência ou de conhecimento.
Difícil é achar a legítima manifestação
do talento, que é uma soma de sabedoria, um conhecimento acumulado
submerso que aflora num poema, conto ou romance. Em outra história do
livro em questão, desta vez de autoria de Korolenko, um guarda se
apaixona pela estranha prisioneira que ele escolta até os confins da
Sibéria. É tocante ver a mulher tossindo nos rigores do inverno russo e
aquele amor que penetra o texto como um veneno tardio.
É disso que somos feitos: da
transcendência conseguida pela arte da palavra. Glória aos grandes
escritores e rigor contra os enganadores.
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