domingo, dezembro 09, 2012

Contos russos, nossos contemporâneos

O que há em comum entre o país narrado pelos grandes autores russos do século 19 e início do 20 e o Brasil? Muita coisa, como a tirania, a servidão, a miséria, o povo ao relento. Falta apenas o talento, fonte de gênios da literatura, que souberam transformar a nação reportada num cenário inesquecível do drama humano. Neste ensaio, abordamos contos de Tolstói, Górki e Turguêniev, entre os mais conhecidos, e outros nomes mais ocultos, como Kuprin, Sologue, Búnin, Andreiév, Garshin, Ko­rolenko e Tchirikon. Eles expressam com lucidez e impiedade o que há de mais valioso num país diante do seu destino: a população que luta pela sobrevivência e sonha para se manter à tona.

O alpinismo social na tirania

A sociedade radiografada pelo gênio de Tolstói em “A Morte de Ivan Ilitch” e “Senhores e Servos” (do livro “As Obras-Primas de Liev Tolstói”, Ediouro, tradução de Mar­ques Rabelo e Boris Sch­naiderman) é a que mais se parece com a do Brasil velho de guerra. O primeiro conto, ou novela, considerado obra-prima da literatura universal, aborda a classe média ascendendo por meio da carreira nos órgãos públicos. Esse alpinismo em direção ao estamento se faz com ambição e mediocridade, com falsidade e tenacidade, com a reprodução, por gerações, dos mesmos papéis sociais passados de pai para filho, pela sociedade de classes onde se insere a casta privilegiada de juízes e promotores. A disputa pelo butim, o arrivismo na troca de governos, a prepotência do mando e das assinaturas diante de uma população desarmada e pobre, tudo está lá, de maneira límpida e absolutamente cruel.

A fase terminal do protagonista abre seus olhos para a indiferença dos contemporâneos, a falta de solidariedade da família (o barulho de fru fru da saia chic da filha em noite de gala no momento em que o pai se esvaía em dor e morte é de arrepiar), a brutalidade nas relações humanas, o vazio e a infelicidade de uma trajetória dedicada ao nada e a coisa nenhuma, sob a capa de uma vida respeitável e honesta. É tudo mentira, mas só a presença da morte pode deixar explícita toda a trama de horrores de que é feita uma sociedade de classes.

Tolstói sabia do que estava falando. Abandonou faculdades e empregos, se insurgiu contra os desmandos no Exército, abandonou bens e família já em avançada idade: ele não queria para si o destino de Ivan Ilitch, o juiz que enxergou tarde demais. Um insight que ele economiza para as gerações que o sucederam, e que assim mesmo não aprenderam a lição, já que reproduzem o mesmo quadro indefinidamente. O que vemos hoje? A falsidade imperante, as carreiras profissionais fundadas no fingimento, na mentira e no marketing pessoal, a violência dos mercados, do trabalho, das pessoas e dos produtos.

Pense, como Ivan Ilicht, nos momentos felizes da vida profissional e adulta. Ivan teve que ir buscar na infância algumas migalhas de felicidade, já que depois não encontrou mais nada. É assim a vida que vivemos. Por mais amizades que tenhamos feito, por mais vitórias acumuladas, um balanço sincero de quem queima os navios para viver uma vida diferente poderá revelar o que fica oculto: o de que estamos submissos a essa gana pela sobrevivência, que nada respeita na sua carruagem de fogo. Radical demais? Tolstói, com seu talento insuperável e maestria, prova que não.

No segundo conto, são os mandões que enriquecem explorando tudo e todos e colocando a canga em cima das necessidades alheias. O protagonista arrisca a vida e a do seu servo para fechar um negócio inspirado pelo seu medo de perder dinheiro. Ele precisa enfrentar a tempestade para poder passar a perna em quem vai vender e nos seus concorrentes, que querem comprar a mesma floresta. Sua intenção é devastar o lugar para conseguir o máximo de lucro. Quanta coincidência, não?

Esse personagem descobre, quando fica preso no meio da neve e do vento, que é mais importante viver do que conseguir mais riqueza. Mas também é tarde demais. Ele ainda consegue recuperar parte da sua humanidade ao salvar o servo do congelamento, mas sua morte prova que esse gesto foi o único de sua vida estéril. É assim que acontece: vamos adiando a verdade até que não podemos mais abraçá-la, a não ser na hora final. Por que não queimar etapas e hoje mesmo começar a mudar? Por que é difícil, porque significa arriscar a sobrevivência. Precisamos fingir, mentir, para continuarmos vivos, ou não?

Ou tudo não passa de uma armadilha da sociedade de classes, do poder monopolizado de czares que definem nossas vidas enquanto gargalham? Pelo menos, ler Tolstói nos resgata para muitas verdades e para o entusiasmo de mergulhar num texto realmente primoroso e eterno.

Mestres ensinam a narrar

“A Mãe de Branco”, de Sologue, e “O Mártir da Moda”, de Kuprin, são dois contos do livro “As Obras Primas do Conto Russo”, (Martins Edi­tora), que abrem o leque da nossa percepção não apenas em relação à literatura russa, que a vemos sempre ligada aos grandes dramas épicos ou à denúncia das mesquinharias cotidianas, ao enfrentamento do clima áspero ou a dura vida nos desertos e na infindável miséria. Eles também nos levam pela mão para os inumeráveis recursos da narrativa, que podem nos transportar para mundos imaginados que nos pareciam exclusivos de nossa mente, mas também, descobrimos abrindo o livro, fazem parte de outros povos; e de realidades próximas que identificam tradicionais assombrações com nações e tempos remotos.

Sologue é um artista da palavra impregnada por aquele clima romântico atraído para a morte e a névoa, tão caro aos nossos poetas como Cruz e Souza ou Álvares de Azevedo. Tamara, o amor impossível, diáfana, quase transparente, é a sedução do celibatário que não suporta gente e festas de fim de ano. Ele prefere mergulhar no seu sonho, lembrando a jovem que namorou rapidamente, antes que fosse acometida por mal súbito e morresse, deixando nosso solteirão abandonado para sempre.

Parece coisa típica do século 19, mas vemos como a morbidez amorosa atrai multidões até hoje, com vampiros galantes, fantasmas sedutores e alienígenas cheios de charme. Tudo é soma na cultura, não existe mais essa fila analógica de tendências, tudo é simultâneo, contemporâneo. Não há superações. Há, claro, a experiência adquirida, mas a abordagem das várias artes é onívora, ou seja, gosta de tudo. Podemos ser árcades, românticos, radicais, revolucionários. Ou hilários, como o conto de Kuprin sobre o marido muito gordo e rico que, por amor à bela esposa, fica pagando inúmeros micos para acompanhar as modas das artes.

Lá vemos o pobre marido vestindo casacos futuristas, tentando sentar em cadeiras absurdas (como as de “design” hoje, feitas para exposições e não para serem usadas) e querendo o divórcio porque não aguentava mais fazer papel de ridículo diante dos seus amigos e parceiros de negócios. As modinhas que obrigaram nosso amigo a tomar essa decisão, depois que caiu de barriga no chão num lotado espaço de patinação, continuam em vigor, de várias formas. Vi isso muitas vezes. Gente fazendo pose, notando detalhes da tua roupa, fingindo que são vanguarda mas continuam presos a velhos hábitos. No fundo, não mudamos nunca. Somos como esses personagens tão magistralmente retratados pelos mestres russos, que nos encantam com o poder de suas palavras.

Gosto desses temas aparentemente bizarros mas que tem tudo a ver conosco. Tanto as assombrações quanto o humor de situações humanas. Precisamos rir de nós mesmos para que o mundo não se acabe de vez em barbárie. E imaginar outros mundos, para que possamos conviver com o mistério. Esqueci de dizer: o celibatário acaba adotando um órfão, obedecendo assim a sugestão do seu fantasma amoroso.

Em “A Glória”, Búnin fala do fascínio que seu povo tem pelos patifes. Ele aborda os enganadores seguidos por multidões apenas pelo fato de exibirem um comportamento bizarro confundido com sagrado. Búnin sabia abordar o povo e era um dos escritores favoritos de um especialista nesse assunto, Máximo Górki. O mujique que gostava de tomar litros de chá açucarado e que nem sabia ler cartas, mas era convocado para consultas de todo o tipo; o limpador de latrinas que cantava em eventos religiosos e sociais e que vivia recebendo presentes, doces e dinheiro; o camponês que decidiu ser um pregador e saiu em andrajos e causou grande impressão ao mugir em missas e funerais; o porteiro que um dia resolveu profetizar e que causava grande veneração popular; e o homem que dava cambalhotas nas peregrinações provocando alvoroço. Todos são personagens dessa galeria impressionante.

Em “O Grande Slam”, outro exemplar da mesma coletânea, Andreiév aborda um grupo de quatro pessoas que se reuniam metodicamente para jogar cartas. Ele nos leva para um desfecho trágico depois de descrever uma rotina que deveria ser de lazer. Mas é apenas formalidade, vazio de vida, pessoas que ficaram próximas durante anos e não sabiam nada uma das outras, nem onde moravam. O autor descreve magistralmente as contradições do comportamento social falso, quando, por exemplo, a mulher do grupo se atrapalha e é aparentemente tolerada pelos seus parceiros de jogo. Eles fazem as honras da masculinidade para os caprichos da mulher, mas não escondem a irritação por ela ser tão desastrada.

O conto também é um toque sobre o objetivo principal do evento, que seria conseguir o grande lance, o que jamais ocorre, pois a expectativa, a ansiedade e a frustração impedem que um dos jogadores, cardíaco, chegue ao final. Conviver com o corpo inerte em cima da mesa onde se distribuíam as cartas é um detalhe sinistro deste brilhante conto de mais um autor russo, que nos deslumbra pela sua capacidade de exercer um ofício tão complicado como é a literatura.

Em “Fausto”, de Tchirikov, o casal pequeno burguês que vive vida vegetativa, ele bancário viciado em jogo de cartas que odeia sua casa, ela a esposa ressentida e frustrada que lamenta a perda da juventude e da beleza. Mas ao quebrarem a rotina e irem ao teatro ver a peça de Charles Gounod sobre o homem que vendeu sua alma, eles recuperam o viço e resgatam a emoção de viver. Descobrem que são invejados pelos amigos e se flagram mais próximos do que nunca.

Em “O Sinal”, de Garshin, autor que morreu cedo demais, com 33 anos, temos a história de um camponês que foi pra a guerra e lá exercia atividade subalterna de servir samovar para os oficiais. Pegou reumatismo nos rigores da campanha e não podia mais lavrar a terra. Saiu pela estrada de ferro afora atrás de emprego e encontrou um veterano a quem servia no front, que lhe deu o emprego de guarda-trilhos. Uma cabana onde poderia plantar e viver com a mulher e enfrentar o inverno e pronto, lá estava ele feliz e orgulhoso com sua lanterna e suas ferramentas. Quis fazer amizade com vizinho, que era muito revoltado e acabou cometendo um crime: arrancou um trilho na iminência da chegada de um trem cheio de famílias pobres.

Nosso herói foi para o meio da estrada e como não tinha jeito de avisar a tempo, cortou profundamente o braço e embebeu um pano de seu sangue e o colocou na ponta de um mastro como bandeira. O maquinista viu e freou. Como saiu muito sangue, ele desmaiou no meio da sua ação, mas a bandeira foi assumida pelo próprio criminoso. “Amarrem-me. Eu arranquei um trilho”, disse o culpado. Grande literatura. Faz chorar as pedras.

Na Rússia do século 19, havia a postura bem pensante dos intelectuais em relação à grande massa de camponeses e marginalizados das cidades. Até que chegou Máximo, o amargo, ou Górki, que veio da Rússia profunda, do povo mesmo e mostrou que a humanidade a qual pertencia nada tinha de cavalheiresco ou nobre ou desprezível. Eram brutos, geniais, soberbos, mesquinhos. Humanos por toda a conta. Texto magistral e enxuto, Górki no conto “O Acidente”, mostra como três rapazes embrutecidos fazem serviços pesados e caem na tentação do roubo e da mentira. E como expressam sua espiritualidade pelo avesso, ao serem contratados pela velha carola que lê a Bíblia enquanto eles pegam no pesado.

O narrador é o próprio Górki, que sofreu horrores até ser aclamado como um gênio literário pelo povo russo. Há ainda o debochado e o ingênuo, ambos vítimas das péssimas condições de sobrevivência. Górki mostra tudo sem fazer firulas. Precisamos desse exemplo para entendermos que fazemos parte do povo e não nos destacamos dele como se fôssemos os eleitos.

Em “O Encontro”, de Tur­guêniev, o narrador é testemunha de uma despedida de um casal no ermo, em meio à natureza. A exuberância do ambiente, descrito com maestria, se contrapõe ao drama entre o conquistador indiferente e bruto e a pobre apaixonada que implora atenção mesmo sabendo que será abandonada.

“Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo mo­mento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia”, nos diz Turguêniev, mostrando o outro lado da sua magnífica nação, que sempre vemos envolta na neve, na chuva, na ventania e no frio. Aqui, temos o esplendor da estação descrito por um mestre, que nos introduz o romance aparentemente bucólico como se houvesse uma traição á natureza, ou talvez, faça parte dela, pois se trata de paixão e crueldade, elementos recorrentes na vida natural. O importante é a força da narrativa, a originalidade do enfoque, que trabalha num território muito explorado, que é a descrição da paisagem.

Não são os temas escolhidos que fazem a diferença, mas sim o que você faz com eles. É a sua pena que conta, seu talento, seu domínio de linguagem. Não se pode é se entregar a soluções batidas por falta de competência ou de conhecimento.

Difícil é achar a legítima manifestação do talento, que é uma soma de sabedoria, um conhecimento acumulado submerso que aflora num poema, conto ou romance. Em outra história do livro em questão, desta vez de autoria de Ko­rolenko, um guarda se apaixona pela estranha prisioneira que ele escolta até os confins da Sibéria. É tocante ver a mulher tossindo nos rigores do inverno russo e aquele amor que penetra o texto como um veneno tardio.

É disso que somos feitos: da transcendência conseguida pela arte da palavra. Glória aos grandes escritores e rigor contra os enganadores.

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