quarta-feira, dezembro 26, 2012

Devaneios ou como se aplica um golpe na consciência II

Na noite de Natal, do dia 24 para 25, como de praxe, eu e a minha esposa fomos a uma reunião de família. Como acontece todos os anos, muitas músicas cristãs alimentam o momento com uma aura rala de felicidade e paz. Logo após as músicas, foi feita uma pregação por um dos pastores da família. Foi lido o texto do evangelho segundo São Lucas: 

"A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta. Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim". (Lucas 1:27-33).

Uma explicação bastante emotiva se consumou após a leitura do excerto. O discurso se fiou pelos caminhos da missão de Jesus. E qual a Sua missão? A resposta surgiu fáicl: livrar o homem do pecado. E o que é o pecado? Tudo aquilo que separa o homem de Cristo. Não deixei de observar que o sermão estava cheio de termos teológicos: queda, pecado original, justificação, redenção, predestinação, graça etc. 

O que é curioso nesse sentido é que Jesus não pronunciou nenhuma dessas palavras. Todas fazem parte da plêiade do universo paulino. O sermão ficou repleto de um discurso afetado pelo "mau humor" do apóstolo. Diferente daquilo que se vê nos evangelhos, linguagem grávida de bondade, de expectativa pelo reino de deus, tornou-se numa sentença condenatória - a típica verve de Paulo

Enquanto ouvia o sermão, fiquei pensando que acontecera a leitura do evangelho, mas o discurso proferido se conciliava com a força agressiva, bárbara e ressentida do corolário de Paulo.

Não é preciso ser um estudioso profundo para perceber a diferença nítida que existe entre os quatro evangelhos - narrativas sobre a vida de Jesus - e as cartas paulinas. Não é necessário fazer um estudo das fontes, das lacunas, do "documento Q"; estudar teologia, filologia, teoria do discurso, hermenêutica, para perceber que existe uma inflexão estilística nos textos paulinos. É como se dobrassêmos a esquina. A teologia de Paulo é uma esquina. Um leitor experiente e acostumado às nuances estilísticas de um bom texto literário, consegue perceber o antogonismo que se perpetra no Novo Testamento a partir da carta aos romanos. 

Por exemplo, um leitor treinado conseguirá perceber o estilo de Machado de Assis, de Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa com muita facilidade. Se lhe vendassem os olhos e lessem os textos de um dos três autores, perceber-se-ia de maneira clara as diferenças - o desenvolvimento de ideias, a muicalidade, a jogo linguístico, as perorações, a fluência verbal etc. Ou seja, cada autor possui elementos idiossincráticos. Peculiares. Com o texto paulino não é diferente.

Dos 27 livros do Novo Testamento, a tradição ("a lenda dos santos", no dizer de Nietzsche) da igreja atribui 13 a Paulo. Existe ainda uma controvérsia em torno da Carta aos Hebreus. Para muitos, esse documento também teria sido escrito por Paulo. Todavia, não é algo assegurado e sustentado por muitos téologos conservadores.

O certo é que mesmo sem a carta aos Hebreus, o efeito do pensamento de Paulo se faz sentir no Novo Testamento  - e, consequentemente, na história do cristianismo. Sem o chamado "apóstolo dos gentios", a configuração do cristianismo não seria a mesma que temos hoje.

Somente um homem como ele, com uma personalidade que conjugava o bairrismo de um rabino e a força, a energia de um soldado romano, poderia ter tido a a criatividade para elaborar um conjunto de pensamento tão atraente e tão bem articulado como o pensamento paulino. Paulo tira o foco dos demais díscipulos em projeta-se como centro do discurso. Vislumbra-se aqui a necessidade de auto-afirmação. 

Mesmo dentro do judaísmo Paulo não era alguém benquisto. Ele mesmo afirma em uma das suas cartas (Galátas) que ficou quatorze anos se preparando para a missão que empreendeu. E daí nos surge um questionamento: não teria sido esse o momento em que Paulo sistematizou o seu pensamento? É possível que tenha ouvido os relatos dos evangelhos; tenha feito consulta a possíveis testetmunhas e tenha coligido o arcabouço daquilo que é a sua teologia. 

Paulo transformou a morte de Cristo num discurso triunfalista. Aqui é importante dizer que os evangelhos também não são narrativas fidedignas da vida de Cristo. Há muito de triunfalismo e a forja de eventos miraculos com a finalidade de transformar a existência de Jesus em algo miraculoso. Assim, no meio da narrativa evangélica é necessário encontrar as verdadeiras palavaras e ensinamentos de Cristo - um mestre por excelência. Os evangelhos não são relatos neutros e objetivos, o que lhes deformam a intenção. Foram escritos pela comunidade de crentes, logo, são viciados e parciais. Mas, nada impede que lá dentro encontremos "algumas" palavras de Jesus. 

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