terça-feira, fevereiro 21, 2023

"Nada de novo no front" - livro e filme

 

Segundo o jornal alemão DW Brasil, o filme "Nada de novo no front" foi o grande ganhador do BAFTA 2023, o principal festival de cinema do Reino Unido. A produção alemã estabeleceu um marco como o filme estrangeiro que mais ganhou estatuetas na história do Festival - sete no total.

Devo afirmar que foi um dos melhores filmes que vi ano passado. "Nada de novo no front" é baseado no sensacional romance homônimo, escrito pelo alemão Erich Maria Remarque. Li o livro em 2020. É uma leitura marcante. Visceral. Daquelas que causam um forte impacto. Fiquei várias dias com as descrições ecoando dentro de mim. Pode-se afirmar que Remarque é o Varlam Chalamov alemão pelo poder de sua escrita, de frieza e crueza com que constrói a memorialística da dor. Quando vi que a adaptação do filme estava disponível, não hesitei, vi-o imediatamente. Assisti a ele, rememorando a crueza da estupidez da guerra explicitada com a lancinante caneta de Remarque. 

Na obra revela-se o niilismo da guerra; o quanto ela abisma e separa; como homens que têm histórias comuns são conduzidos para a morte, deixando para trás suas famílias e muitos sonhos. O próprio Remarque aos dezoito anos, teve de deixar os estudos para se alistar no Exército Alemão a fim de participar da Primeira Guerra Mundial. Havia um ideário fantasista sobre a Guerra. Os jovens ingressavam no conflito sem terem noção de que estavam indo para o meio de um conflito estúpido e sem sentido. Remarque foi ferido três vezes ao longo da batalha. Quando regressou do campo de batalha, exerceu vários ofícios até se estabelecer no jornalismo. Seu país estava destruído material e economicamente. Suas noites eram povoadas por insônias amargas. Lembrava os horrores da peleja. Os amigos mortos. A violência. Os corpos dilacerados. A sujeira. A fome. O medo. Passou a anotar em cadernos as suas memórias. Foi desse material que nasceu "Nada de novo no front". 

Publicado em 1929, o livro tornou-se um êxito literário imediato. Os jovens alemães liam-no sofregamente. A idealização era contrastada por um relato que questionava o fundamento do conflito. Para quê a guerra? Qual a sua utilidade?

Em 1930, o filme foi levado às telas pela primeira vez. Provocou um retumbante sucesso. O grupo nazista que estava em ascensão na Alemanha, irou-se contra o pacifismo manifesto da obra. Muitas sessões de cinema foram sabotadas. Ratos eram soltos nas salas onde o filme estava sendo exibido. 

Em 1933, ano em que Hitler chegou ao poder, o livro foi banido da Alemanha. Ao lado de exemplares de Thomas Mann, Sigmundo Freud e Stefan Zweig, o livro de Remarque ardeu nas muitas fogueiras acesas, no dia 10 de maio, na Alemanha. O objetivo era "purificar", realizar uma "limpeza" literária no Reich; acabar com os elementos 'estranhos que trouxessem fraqueza e alienação à cultura alemã'.  

Tanto o filme quanto o livro (principalmente) merecem ser visitados. 
 
Coloquei o filme "Nada de novo ao lado" de "Vá e veja", do russo Elem Klimov, um dos melhores filmes de guerra de todos os tempos. 

P.S. A trilha sonora do filme é muito boa. Escutei-a hoje cedo no Spotify.

 

segunda-feira, fevereiro 13, 2023

O "homo bolsonaricus" e um comentário do professor Luis Felipe Miguel


Semana passada, li um excelente comentário do professor Luis Felipe Miguel em sua página do Facebook sobre o pendor para a perversão de Jair Bolsonaro. O mestre da Univerdade de Brasília apontava para os aspectos atrozes mais que conhecidos do bolsonarismo e do seu líder. O fator Bolsonaro tem feito cientistas políticos, sociólogos, psicólogos - e todos aqueles que desejem entender o que aconteceu com a sociedade brasileira – estudarem o que leva pessoas comuns – pais de família, pessoas comuns e outros nacos sociais graúdos - a se vincularem a um movimento – aquilo que se convencionou chamar de bolsonarismo - que possui um pacote ético declaradamente nocivo à humanidade e ao Planeta. 

Bolsonaro é daquelas pessoas que possui uma força de atração para piorar o seu semelhante. Não há virtudes; apenas o impulso para a delinquência. Que o sujeito que ocupou presidência do país por quatro anos seja assim, não é de se assustar. Ao longo da história, já houve inúmeros indivíduos cuja mesquinhez e a orientação para maldade eram visíveis. O que estarrece, na verdade, é a força de atração que esses sujeitos possuem. Como alguém em sã consciência pode ser arrastado para seguir as pautas tóxicas de um movimento que visa piorar a sociedade em que se vive? Bolsonaro e o bolsonarismo são indefensáveis. Ao se propor tal reflexão, não estamos aqui realizando a defesa deste ou daquele candidato. O que está em jogo é a orientação para maldade de um sujeito que sempre se utilizou de uma retórica favorável ao ódio e à morte.

Após quatro anos de um dos piores governos da história, Bolsonaro quase foi reeleito com 58 milhões de votos. Esse número espanta. Assusta saber que a população brasileira deu mais votos a eles do que ele teve em sua eleição em 2018. Curiosamente, todas as pessoas que se aproximam de Bolsonaro – ou do bolsonarismo – tornaram-se pessoas mais intolerantes e obtusas. Penso que o bolsonarismo já existia antes de Bolsonaro. O que se chama de “bolsonarismo” hoje é o resultado de um miasma pútrido do cadáver da violência e da intolerância de nossa história. O Brasil é um país que nunca privilegiou os direitos humanos. Nunca houve uma defesa das minorias e dos marginalizados. O Estado brasileiro e suas instituições sempre foram violentos. Some-se a isso a má formação educacional. A ignorância histórica e os níveis baixíssimos de cultura geral. O “homo bolsonaricus” é o resultado dessa fórmula terrível.

Segue o comentário do professor Luis Felipe Miguel:

Leio na imprensa que não foram só as carpas. Bolsonaro também matou as emas, dando a elas alimentação inadequada.

É impossível não pensar em Bolsonaro como uma encarnação do mal. Todos os seus afetos são egoístas e destrutivos. É incapaz de empatia, não há registro de um único gesto de solidariedade. Por onde passa, deixa um rastro de devastação.

Alguém que debocha das pessoas que ele mesmo está deixando morrer por falta de oxigênio. Basta isso para descrevê-lo.

Os filósofos discutem se o mal existe. Bolsonaro é um forte argumento a favor.

E o que dizer de dezenas de milhões de pessoas que o viram tal como ele é, porque ele nunca disfarçou (ou então disfarçava sem qualquer empenho), e votaram nele?

Gente que vê um vilão de desenho animado e pensa: “Opa, esse pode ser nosso presidente!”

Sim, o processo de formação das preferências políticas é complexo, ainda mais num ambiente tão saturado de desinformação e de manipulação. Mas não tem antipetismo ou teoria da conspiração que justifique a opção por algo tão aberrante.

Penso que Bolsonaro apela para o que há de ruim em todos nós. Como se demonstrasse que é possível nos livrarmos do fardo do respeito pelo outro, da compaixão, da reciprocidade, da generosidade, para chafurdar no egoísmo mais descarado e mais mesquinho.

É isso é tão atraente para tanta gente, desperta tanta identidade, que estão dispostos a entronizar alguém que represente esse ideal.

Cada voto em Bolsonaro, cada apoio que ele mantém, é um tapa na cara da nossa fé na humanidade.

Leio na imprensa que não foram só as carpas. Bolsonaro também matou as emas, dando a elas alimentação inadequada.

É impossível não pensar em Bolsonaro como uma encarnação do mal. Todos os seus afetos são egoístas e destrutivos. É incapaz de empatia, não há registro de um único gesto de solidariedade. Por onde passa, deixa um rastro de devastação.

Alguém que debocha das pessoas que ele mesmo está deixando morrer por falta de oxigênio. Basta isso para descrevê-lo.

Os filósofos discutem se o mal existe. Bolsonaro é um forte argumento a favor.

E o que dizer de dezenas de milhões de pessoas que o viram tal como ele é, porque ele nunca disfarçou (ou então disfarçava sem qualquer empenho), e votaram nele?

Gente que vê um vilão de desenho animado e pensa: “Opa, esse pode ser nosso presidente!”

Sim, o processo de formação das preferências políticas é complexo, ainda mais num ambiente tão saturado de desinformação e de manipulação. Mas não tem antipetismo ou teoria da conspiração que justifique a opção por algo tão aberrante.

Penso que Bolsonaro apela para o que há de ruim em todos nós. Como se demonstrasse que é possível nos livrarmos do fardo do respeito pelo outro, da compaixão, da reciprocidade, da generosidade, para chafurdar no egoísmo mais descarado e mais mesquinho.

É isso é tão atraente para tanta gente, desperta tanta identidade, que estão dispostos a entronizar alguém que represente esse ideal.

Cada voto em Bolsonaro, cada apoio que ele mantém, é um tapa na cara da nossa fé na humanidade.

 

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Heráclito - nada permanece

 


                Heráclito de Éfeso é o pensador que cunhou a noção de um movimento incessante em todas as coisas. É atribuído a ele o termo “panta rei” (“tudo flui”), embora essa expressão não seja encontrada nos fragmentos deixados por ele.

                O filósofo teria identificado – em oposição a Parmênides – uma “buliçosa” atividade dos elementos que estruturam a realidade e o cosmos. Nada permanece. Tudo é grande ou faz parte de um grande fluxo. Enquanto para Parmênides a realidade é o ser – e o ser é -, Heráclito estabelece um importante fundamento sobre todas as coisas – a dialética é o elemento central da vida.

                Sofre quem espera que tudo permaneça como pensava Parmênides. Não se está a insinuar que o pensamento de Parmênides conduza à infelicidade. O que se afirma é que, quando se espera que algo permaneça para sempre, o resultado é o sofrimento. Bom seria que as pessoas as quais amamos não morressem, que elas permanecessem ao nosso lado para sempre; que o amor nunca acabasse; que a morte nunca chegasse; que a alegria fosse eterna.

                A noção de Deus para o filósofo também era bastante diferente. Deus não é o criador. Não é o ser capaz de fazer todas as coisas. Não é imanente. Não interfere na vida dos homens. Deus é o fogo que se mistura em pares antagônicos – dia/noite; luz/escuridão; verão/inverno; belo/feio; guerra/paz. O elemento constitutivo da realidade é a contradição. É preciso está preparado para essa oposição.

                O rio que ondula os seus movimentos, não o faz da mesma forma. O rio muda e impele o movimento em todos os momentos do seu curso. A água muda; assume formas variadas incessantemente. Sendo assim, ninguém pode banhar nas mesmas águas duas vezes.

                Todo encontro é desencontro. Todo amor é desamor. Todo nascimento é também morte. Toda chegada é também partida. Todo abraço é também separação. A oposição ao som é o silêncio; mas a oposição ao silêncio é o som. A oposição à ausência é a presença. Resta o instante. Fica o lapso temporal entre aquilo que foi e aquilo que está vindo a ser.

                Para Heráclito o tempo (aion) é o elemento buliçoso que cria o novo. O tempo brinca. É a criança traquinas. É caprichoso. Construtor de eventos. Responsável pelo movimento das águas do rio.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

"Tár", algumas apalavras

 

 "Tár" é um filme, no mínimo, enfeitiçante. É uma aula sobre como atuar, sobre como insinuar certos detalhes. A atuação da excelente atriz australiana Cate Blanchett é mesmerizante. Ela ocupa todos os espaços da obra. Não há vácuos. É um verdadeiro espetáculo de como se encena; de como se leva ao extremo o significado da palavra atuar.

O filme conta a história da bem-sucedida Lydia Tár, que chegou ao cume do sucesso. Respeitada. Incensada pela "mainstream" erudito, Lydia é a materialização do êxito que certas figuras alcançaram ao longo da história da música de orquestra. Um dos casos é o de Leonard Bernstein, citado no filme.

Ela conversa com uma profundidade que impressiona sobre cultura. Possui um raciocínio e um carisma desconcertantes. É uma professora rigorosa, que foge ao radicalismo de uma visão única. Em uma aula, ela profere para um dos seus alunos, quando este informou que não gostava de Bach, pois o compositor alemão era misógino por ter quase duas dezenas de filhos: "O narcisismo das pequenas diferenças leva ao mais enfadonho conformismo". A própria Lydia era uma figura que não se conformava no mundo da música clássica. Todos sabiam do seu relacionamento homoafetivo com a "spala" da orquestra. Ela era uma mulher, em um mundo governado por homens. E, nesse sentido, parece haver uma clara ironia implícita ao padrão do macho alfa, uma referência - talvez - indireta ao regente Herbert von Karajan, que conduziu com mãos de ferro a Filarmônica de Berlim por mais de trinta anos e criou uma noção de modelo autoritário.

Além dessa força, Lydia conseguiu alcançar o posto de regente da já referida e mítica Filarmônica de Berlim, uma das mais emblemáticas orquestras do mundo. E aqui notamos a grandiosidade do trabalho de Blanchett, pois se pode observar que ela, para fazer o filme, aprendeu a reger. No filme, sua personagem após ter gravado o ciclo de sinfonias do compositor austríaco Gustav Mahler, deixou a Quinta Sinfonia por último. A Quinta é a sinfonia mais conhecida e apreciada pelos admiradores da obra do austríaco. Observa-se o trabalho sensacional de Blanchett regendo uma orquestra. A Quinta de Mahler parte de uma premissa filosófica de como a vida é atravessada pela ironia e pela tragédia. Ela subverteu a noção histórica de uma estrutura sinfônica, pois começa por uma marcha fúnebre. Até o final do século XIX, aquilo não era comum. A Quinta é de 1902 e parece fundar o moderno. Nesse sentido, ela é uma ponte de inflexão entre o clássico e o moderno. Mas para além disso, é uma metáfora sobre a existência humana. Ela é marcada filosoficamente pela sentença de que a vida é resultado de um grande devir; de que somos alvo dos fluxos aleatórios da própria vida; que o sublime, o grandioso, pode ser sucedido pelo trágico.

E é justamente isso que acontece com Lydia. Por trás dessa personalidade magmática, observa-se como o poder e a glória podem atrair o caos. Há uma cena no filme que parece ser de alegoria para o que ocorre a personagem. Ela sai à procura da jovem violoncelista Olga e adentra um espaço abandonado e caótico. Após avançar por um vão escuro, ela cai e "quebra a cara". O seu tombo parece prefigurar o que ocorre dali para frente. Seu tombo é grandioso. Ela se isola e sai de cena.

No geral, o filme é excelente. Há referências no filme a Beethoven, Bach, Mahler, Vàrese, Bernstein, Tchaikovsky, Elgar entre outros. O diretor Todd Field conseguiu trabalhar certas nuances, certas intrigas, que, quem já é afeito à música clássica, entende o que está sendo refletido. Mas isso não impede que qualquer pessoa seja capturada pelo drama em forma de tragédia; de como o poder possui uma face mutável.