domingo, fevereiro 24, 2019

"Roma", de Alfonso Cuáron


 Roma (2018) é um filme do diretor mexicano Alfonso Cuáron. Cuáron é um diretor exigente e de películas que imprimem finais inquietantes. Um exemplo é o excelente Gravidade (2013). Em Roma, a história se situa na Cidade do México. O nome Roma é baseado no bairro Colónia Roma, um bairro habitado pelas famílias abonadas, ainda nos efervescentes anos de 1920. No início do século XX, o México passou por uma revolução política e cultural. Houve um amplo incentivo por parte do Estado mexicano para que o analfabetismo fosse erradicado. O povo mexicano foi treinado para se identificar com a sua própria história.

O filme de Cuáron se passa no início dos anos 70, período em que os filhos da Revolução Mexicana cresceram. A obra é auto-referencial. Cuáron viveu a sua infância nessa região. Na obra, ele procura recriar os anos em que viveu por lá. A infância aparece na obra de forma inocente; repleta de potencial; inquieta e convivendo com a dor da separação.

O filme é dedicado a Libo, uma jovem indígena denominada Liboria Rodriguez. Libo chegou à casa de Cuáron, quando este tinha apenas nove meses de idade. A jovem veio da tribo Tepelmeme, do estado de Oaxaca e cuidou das crianças da família, como foi comum a tantos jovens pertencentes a famílias mexicanas. Sendo a empregada da família, Libo está no plano central da trama. À medida que crescia, o jovem Cuáron se dava conta de que ela  não era apenas a empregada. Tratava-se de uma pessoa com necessidades reais; um ser humano com demandas existenciais próprias.

O filme possui muitas referências a momentos vivenciados pelo diretor. Por exemplo, Roma demonstra o quanto o cinema e/foi importante para o diretor. Há pelo menos duas ou três cenas em que o cinema é colocado em evidência, constituindo assim uma metalinguagem. Quando criança, Cuáron costumava ir ao cinema. Cléo também vai ao cinema com o namorado, assim como a sua colega de trabalho.

Um dos momentos mais críticos do filme é a reconstituição do massacre de Corpus Christi. Muitos estudantes saíram às ruas pela liberação de presos políticos e reivindicação pela melhoria na educação. Grupos paramilitares enviados pelo Governo, treinados pela Cia foram enviados armados para coibir os protestos. O covarde massacre deixou as ruas cobertas de sangue. Esse foi um dos eventos mais tristes e carregados de covardia da história do país. Oficialmente, 120 pessoas foram assassinadas. Estima-se que o número tenha sido bem maior.

Roma é uma película feita com muita sensibilidade. Filmado em preto e branco, a experiência estética é rica e poética. Há inúmeras referências sobrepostas. É preciso atentar para os detalhes; para os pontos cintilantes que chispam e podem ser notados pelo observador atento.  Fica-se com sensação de leveza, de fomos visitados por algo muito belo e delicado, quando tudo termina. É um filme para amantes do cinema.

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

“Bohemian Rhapsody”, algumas palavras

Procuro, sempre que posso, assistir a um filme. O cinema para mim é uma experiência de aprendizado.  Cinema não é só entretenimento. Há possibilidades enormes com o cinema. Existe a necessidade dos ritos. Quando vejo um filme, procuro extrair uma lição; fazer uma aplicação; apropriar-me das intenções da produção. Cinema é um importante objeto para reflexão. 

O cinema possui capacidade de gerar efeitos extraordinários. Por isso, seleciono bem aquilo que vejo. Não gosto de perder tempo com películas inconsistentes;  com comédias gratuitas; com a exibição do culto à violência; ou, simplesmente, com o exagerado uso de efeitos especiais tão comuns às produções de Hollywood. 

É por gostar de cinema que tenho reservas com o Oscar. Trata-se de um evento para privilegiar o cinema produzido nos Estados Unidos, principalmente, Hollywood. O que ele possui em excesso? “Marketing”. Todos os anos, os produtos do Oscar (os filmes), são divulgados, comentados, discutidos, especulados. Geralmente, busco assistir àqueles que possuem, pelo menos na essência, um enredo consistente; que não sejam apenas efeitos especiais e explosões bobas. Vale mencionar que há ainda aquelas produções previsivelmente bobas sobre heróis.

Foi munido dessa certeza que decidi assistir a “Bohemian Rhapsody”, a cinebiografia sobre Friedy Mercury. O filme coloca em paralelo a história do Queen, uma das bandas de “rock” mais influentes de todos os tempos e a história do seu vocalista de voz inconfundível.

O filme retrata um período de quinze anos da história da banda. Ou seja, do início dos anos 70 até 1985, na apresentação histórica no festival “Live Aid”. Existem inúmeras cinebiografias de artistas ligadas à música. “Bohemian Rhapsody” não é tão bom quanto “Ray”, por exemplo, que retrata a vida de Ray Charlles, e “Jonny e Juny”, que enfatiza a vida de Jhonny Cash. 

O filme busca alternar momentos de música, com momentos relativos à vida agitada do artista. Acredito que os melhores momentos são aqueles dedicados à música. No que tange à história, o filme está repleto de imprecisões. Um fã atento da banda com informações básicas consegue detectar esses problemas. Menciono apenas dois para exemplificar: o primeiro diz respeito à entrada do baixista na banda. Segundo filme, ele entrou na banda imediatamente após a formação. 

O que não é sustentado pela história da banda. Houve a contratação de vários músicos anteriores a John Deacon. Outro fato é o desmantelamento da banda. Novamente, de acordo com o filme, o grupo acabou após Mercury ter aceitado 5 milhões de dólares para gravar um disco numa efêmera carreira solo. A banda não chegou a experimentar uma crise como a aludida pelo filme. Alguns dos músicos da banda também tinham carreira solo.

Quem é fã da banda deve assistir ao filme fazendo concessões. Os roteiristas relativizaram em excesso a obra que retrata a formação de uma das mais importantes da história e de seu “frontman”. O que enche os olhos são as atuações do ator Rami Malek, que está muito bem no papel de Freddie Mercury. Após terminar de assistir ao filme, dá uma enorme vontade de ouvir o Queen, principalmente a voz poderosa Farrokh Bulsara, nome verdadeiro do vocalista.

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Notas sobre “Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré", de Reza Aslam. III


A leitura de “Zelota” tem permitido a realização de inúmeras reflexões pertinentes. O livro coleciona polêmicas, pois desafia a credulidade de muitas pessoas; abala a veracidade e aquilo que a teologia tradicional chama de “inerrância das escrituras”. Segundo essa doutrina, não há erros na Bíblia por ser toda ela inspirada por Deus. As partes obscuras, as sentenças pouco claras, podem ser explicadas pelo próprio texto. Como se pode questionar algo “sagrado”?

Lendo “Zelota”, do iraniano Reza Aslam, luzes lógicas foram lançadas sobre passagens que o leitor desatento e que desconhece a geografia, a história e o ambiente onde se passa a narrativa, ignora ou, simplesmente, não questiona.  Um exemplo: no evangelho de Lucas, os moradores de Nazaré, após terem escutado os comentários de Jesus, “se encheram de ira” “e o levaram até o cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem” (Lc 4.28-29). De acordo com Aslam, não há montes, cumes ou precipitações elevadas em Nazaré, o que constitui um problema para a doutrina da inerrância. 

Reza Aslam dedica um dos capítulos do livro para falar de Paulo. É importante entender que, passados quase dois anos mil anos, a percepção que se adquire de uma crença consolidada é de não questionamento. Há igrejas; há fiéis que replicam a versão; há uma estrutura psicológica, uma cosmologia ajustada aos interesses daquele que crer. Se existe um grande número de fiéis e, e esses fiéis estão certos sobre aquilo que dizem acreditar, não sobra muito espaço para a dúvida. Outro aspecto é a distância histórica. A cultura do Oriente Médio, os costumes, o modo de produção, a organização era bastante diversa daquela que temos hoje. Havia um número grandioso de analfabetos. Estima-se que nos tempos bíblicos, apenas 3% da população era capaz de ler e produzir textos. A miséria era grassante. A vida estava estruturada na agricultura ou na criação de animais. Havia um pequeno número de afortunados; de servidores públicos e comerciantes.

Outro fato importante é saber quem escreveu os livros e em que ano essas narrativas, cartas ou profecias foram constituídas. Muito daquilo que se encontra coligido no cânon não possui fidelidade com o que é pregado e ensinado. Se alguém tivesse o poder de voltar no tempo ficaria assustado e, certamente, a forma como se processa a fé sofreria uma significativa mudança. 

Um dos personagens mais importantes e emblemáticos é o “autodenominado” apóstolo Paulo. Existem duas fontes a seu respeito – a narrativa de Lucas, em Atos dos apóstolos e aquelas escritas por Paulo - e outras atribuídas a ele. É possível que a escrita do livro de Atos tenha ocorrido uns trinta anos após a morte do apóstolo. Curiosamente, Lucas era um admirador do chamado 13° apóstolo e dedica mais de 70% do livro a ele.

Após a morte de Jesus como um criminoso comum, os seus seguidores experimentaram um dilema – o que deveriam fazer? Deram continuidade à pregação iniciada por Jesus. Um corpo de narrativas e eventos extraordinários começou a ser transmitido. Uma espécie de telefone sem fio foi passado. Os ensinamentos de Cristo estavam mesclados aos ensinamentos do Antigo Testamento. Isso fica evidente, por exemplo, no estranhamento inicial que a pregação de Paulo despertou nos discípulos que estavam em Jerusalém. Tiago, Pedro e João são denominados por Paulo como “colunas”. Em outra ocasião Paulo diz que discutiu com Pedro de forma acalorada.  Pedro não queria desconectar os ensinamentos do judaísmo, no caso a circuncisão, dos ensinamentos da fé cristã. Paulo é chamado a Jerusalém para se entrevistar com Tiago, conforme é explicitado em Atos 21. Logo em seguida, vai fazer uma purificação no templo a pedido de Tiago. Ora, por que ele precisou fazer essa purificação?

É curioso, pois Paulo funda uma nova fé. Não há descrições sobre a vida de Jesus em seus escritos. Enquanto os evangelhos são narrativas calcadas na história, os ensinamentos de Paulo celebram um Jesus cósmico. Com exceção de João, Paulo é o primeiro a denominar Jesus de “Cristo”. A palavra “Cristo” significa “o ungido”, “o Messias”, “o escolhido”, ou seja, percebe-se uma sentença teológica nessa afirmação. Paulo não se preocupa com a historicidade de Jesus. Sua grande preocupação é fundar uma cristologia sobre Jesus. As únicas duas referências a eventos históricos de acordo com a fórmula dos evangelhos e se encontram na carta escrita à igreja que fundara em Corinto. O apóstolo faz referência à eucaristia (santa ceia) e à ressurreição. Todavia, quando Paulo cita esses eventos, cria sentenças teológicas ou litúrgicas.

O fato de se autodenominar apóstolo é outro ponto curioso de sua trajetória. Paulo era um judeu com cidadania romana. Era um fariseu zeloso. Vinha dos estratos médios da cidade portuária, economicamente importante de Tarso. O partido dos fariseus era constituído pela “classe média” da época. Paulo sabia o grego. Por ser oriundo de um importante centro helenístico, certamente conhecia os movimentos filosóficos e religiosos do mundo grego-romano. 

Ele se distanciava da característica dos demais apóstolos. Os outros discípulos eram iletrados. Ele, por sua vez, possuía uma sólida educação. Para ser apóstolo era necessário ter caminhado com Jesus. Os doze apóstolos eram nessa quantidade por uma questão fundamental – dizia respeito ao número das tribos de Israel. Após a morte de Judas, os onze escolheram Matias. Assim, torna-se evidente que o número estava fechado. Paulo reivindica o apostolado. Muitos questionavam a sua autoridade. Ele não se fazia de rogado. Segundo ele próprio, Jesus surgiu para ele. A sua autoridade foi demandada pelo próprio Cristo. Quem o contestaria? Muitos o contestaram. Escrevendo aos cristãos que estavam em Corinto, ele diz: “Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos o sou para vós”. E diz ainda: “Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre vós” (1 Co 9.2; 2 Co 12.12). 

Sendo um grande conhecedor da lei mosaica, dos rudimentos da tradição rabínica e de todo o corpo de doutrinas do judaísmo oficial, Paulo constrói uma sistematização, a partir da relativização daquilo que conhecia na religião judaica para fundar o que conhecemos hoje como fé cristã. O apóstolo universaliza a pessoa de Jesus, criando sentenças dogmáticas; uma teologia assentada em termos ricos em significação – justificação, redenção, graça, predestinação, novo Adão, velho Adão. O Jesus histórico é substituído pelo Jesus cósmico, que cumpriu a lei. O ritual mosaico, na compreensão de Paulo, deixou de ser necessário. O fim da lei é Cristo. A teologia fundada pelo heterodoxo apóstolo dos gentios possui uma forte demanda jurídica. 

O universalismo de Paulo estava de acordo com a compreensão do helenismo. Uma fé circunscrita a um povo pequeno, afastado, como dizia Cícero – “o povo do canto” – não teria impacto. Paulo é o fundador cristianismo. Seu ímpeto, sua energia; sua defesa intransigente de certos pressupostos torna o chamado “apóstolo dos gentios” em um dos maiores patrocinadores de ideia da história da humanidade.

Sem Paulo, a fé cristã teria sucumbido. Seria apenas mais uma seita judaica sem futuro. Jesus teria o seu destino alijado ao de Simão, filho de Kochba; ou Teudas; Judas, o Galileu; ou ainda de Simão de Giora, que foram caudilhos zelosos, capazes de realizar prodígios, mas que acabaram mortos pelos romanos. Como se pode observar, baseado no livro de Reza Aslam, o sucesso de uma ideia  depende da narrativa e do patrocínio que ela recebe. No que tange a isso, o humilde carpinteiro, camponês como os nazarenos, tornou-se uma potência espiritual capaz de julgar a história e salvar os homens.


sexta-feira, fevereiro 08, 2019

"Diário de um homem supérfluo", de Ivan Turguêniev, algumas palavras.


Li o “O diário de um homem supérfluo”, de Ivan Turguêniev, de um fôlego. Livro magro (de espessura), mas cheio de elementos literários de grande riqueza. Trata-se de uma daquelas novelas russas costumeiramente curtas como “A morte de Ivan Ilich” e “Padre Sérgio”, de Tólstoi; ou “O capote”, de Gógol; ou ainda “Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski.  De início é importante dizer que é fascinante. Possui um existencialismo com características niilistas. O sujeito circunscrito pela inércia, observador de si e do tempo histórico que o cerca é “o homem supérfluo”. O homem supérfluo é um tipo literário, um arquétipo  moral do homem russo pertencente à aristocracia. Ele carrega os dramas de uma geração. É a voz que afirma um tipo de criação essencialmente russa.

O personagem central da história do “Diário” é Tchulkatúrin. Ele não pode ser classificado como camponês, como um homem do povo. Possui uma posição privilegiada. Apaixona-se por Liza, filha de um potentado local, que possui um grande número de servos. A história é contada em forma de diário, durante um período de 10 dias (20 de março a 1° de abril). Ou seja, durante o início da primavera. A escolha da primavera não se dá por acaso. A primavera é a estação da vida; do cio; do coito; de uma  febril atividade por todos os recantos da natureza.  

Tchulkatúrin, o herói, é uma contradição insinuante. A personagem corteja a bela moça. Apaixona-se por ela. Imagina que é correspondido. Percebe que estava errado. Ela se apaixona pelo príncipe N*, de São Petersburgo. Vale mencionar que a cidade fora construída pelo czar Pedro, o Grande com a finalidade de ser a mais europeia e cosmopolita cidade da Rússia. Foi construída para ser um reduto de desenvolvimento. As ideias elevadas do continente  passaram a fazer parte da elite que vivia à sombra czar. O francês e o alemão faziam parte da formação desce nicho da sociedade russa. 

O príncipe é um representante desse segmento.  Liza passa a alimentar uma aversão pelo herói.  O príncipe é um nobre. Há uma imanência superior que encanta a todos. Tchulkatúrin percebe-se. Mira-se. Sabe da sua condição. Avalia a paixão de Liza pelo príncipe. Colhe a inimizade da família. Afasta-se. A jovem Lizavieta nutre expectativas. Mas o príncipe volta para São Petersburgo. Com a partida do príncipe, Tchulkatúrin enxerga uma possibilidade de reconciliação. O surpreendente acontece – a família (o pai e a mãe) da jovem o recebe de volta. Todavia, Liza o humilha. Ela nunca estivera interessado por ele. A percepção de Tchulkatúrin era falha, inadequada. 

Turguêniev escreveu o “Diário” por volta de 1850. A censura cortou algumas afirmações da obra. Eram os tempos de Nicolau I. A Rússia não havia se libertado da censura. Apesar das mudanças no âmbito da cultura, havia uma forte vigilância na vida social. Um abismo enorme separava o povo da aristocracia que liderava o país. Uma população camponesa, estava mergulhada na miséria e no servilismo histórico. Uma das áreas em que havia uma relativa liberdade era a literatura. A literatura, desse modo, passou uma área de experimentações, de vocalização, de afirmar um modo de ser.

                O “Diário” é, do ponto de vista político, um importante retrato de uma Rússia inerme, angustiada por causa da camisa de forças que foi colocada sobre ela. O homem supérfluo é o sujeito fraco. Impossibilitado dos grandes feitos. É o astro sem céu para brilhar. É a inteligência afiada sem céu possibilidade de torná-la executável.