A leitura de “Zelota” tem permitido a realização de inúmeras reflexões
pertinentes. O livro coleciona polêmicas, pois desafia a credulidade de muitas
pessoas; abala a veracidade e aquilo que a teologia tradicional chama de
“inerrância das escrituras”. Segundo essa doutrina, não há erros na Bíblia por
ser toda ela inspirada por Deus. As partes obscuras, as sentenças pouco claras,
podem ser explicadas pelo próprio texto. Como se pode questionar algo
“sagrado”?
Lendo “Zelota”, do iraniano Reza Aslam, luzes lógicas foram lançadas
sobre passagens que o leitor desatento e que desconhece a geografia, a história
e o ambiente onde se passa a narrativa, ignora ou, simplesmente, não questiona.
Um exemplo: no evangelho de Lucas, os
moradores de Nazaré, após terem escutado os comentários de Jesus, “se encheram
de ira” “e o levaram até o cume do monte em que a cidade deles estava
edificada, para dali o precipitarem” (Lc 4.28-29). De acordo com Aslam, não há
montes, cumes ou precipitações elevadas em Nazaré, o que constitui um problema
para a doutrina da inerrância.
Reza Aslam dedica um dos capítulos do livro para falar de Paulo. É importante
entender que, passados quase dois anos mil anos, a percepção que se adquire de
uma crença consolidada é de não questionamento. Há igrejas; há fiéis que
replicam a versão; há uma estrutura psicológica, uma cosmologia ajustada aos
interesses daquele que crer. Se existe um grande número de fiéis e, e esses
fiéis estão certos sobre aquilo que dizem acreditar, não sobra muito espaço
para a dúvida. Outro aspecto é a distância histórica. A cultura do Oriente
Médio, os costumes, o modo de produção, a organização era bastante diversa
daquela que temos hoje. Havia um número grandioso de analfabetos. Estima-se que
nos tempos bíblicos, apenas 3% da população era capaz de ler e produzir textos.
A miséria era grassante. A vida estava estruturada na agricultura ou na criação
de animais. Havia um pequeno número de afortunados; de servidores públicos e
comerciantes.
Outro fato importante é saber quem escreveu os livros e em que ano essas
narrativas, cartas ou profecias foram constituídas. Muito daquilo que se
encontra coligido no cânon não possui fidelidade com o que é pregado e
ensinado. Se alguém tivesse o poder de voltar no tempo ficaria assustado e,
certamente, a forma como se processa a fé sofreria uma significativa mudança.
Um dos personagens mais importantes e emblemáticos é o “autodenominado”
apóstolo Paulo. Existem duas fontes a seu respeito – a narrativa de Lucas, em Atos
dos apóstolos e aquelas escritas por Paulo - e outras atribuídas a ele. É
possível que a escrita do livro de Atos tenha ocorrido uns trinta anos após a
morte do apóstolo. Curiosamente, Lucas era um admirador do chamado 13° apóstolo
e dedica mais de 70% do livro a ele.
Após a morte de Jesus como um criminoso comum, os seus seguidores
experimentaram um dilema – o que deveriam fazer? Deram continuidade à pregação
iniciada por Jesus. Um corpo de narrativas e eventos extraordinários começou a
ser transmitido. Uma espécie de telefone sem fio foi passado. Os ensinamentos
de Cristo estavam mesclados aos ensinamentos do Antigo Testamento. Isso fica
evidente, por exemplo, no estranhamento inicial que a pregação de Paulo despertou
nos discípulos que estavam em Jerusalém. Tiago, Pedro e João são denominados
por Paulo como “colunas”. Em outra ocasião Paulo diz que discutiu com Pedro de
forma acalorada. Pedro não queria
desconectar os ensinamentos do judaísmo, no caso a circuncisão, dos
ensinamentos da fé cristã. Paulo é chamado a Jerusalém para se entrevistar com
Tiago, conforme é explicitado em Atos 21. Logo em seguida, vai fazer uma
purificação no templo a pedido de Tiago. Ora, por que ele precisou fazer essa
purificação?
É curioso, pois Paulo funda uma nova fé. Não há descrições sobre a vida
de Jesus em seus escritos. Enquanto os evangelhos são narrativas calcadas na
história, os ensinamentos de Paulo celebram um Jesus cósmico. Com exceção de
João, Paulo é o primeiro a denominar Jesus de “Cristo”. A palavra “Cristo” significa
“o ungido”, “o Messias”, “o escolhido”, ou seja, percebe-se uma sentença
teológica nessa afirmação. Paulo não se preocupa com a historicidade de Jesus.
Sua grande preocupação é fundar uma cristologia sobre Jesus. As únicas duas
referências a eventos históricos de acordo com a fórmula dos evangelhos e se
encontram na carta escrita à igreja que fundara em Corinto. O apóstolo faz
referência à eucaristia (santa ceia) e à ressurreição. Todavia, quando Paulo cita
esses eventos, cria sentenças teológicas ou litúrgicas.
O fato de se autodenominar apóstolo é outro ponto curioso de sua
trajetória. Paulo era um judeu com cidadania romana. Era um fariseu zeloso.
Vinha dos estratos médios da cidade portuária, economicamente importante de
Tarso. O partido dos fariseus era constituído pela “classe média” da época.
Paulo sabia o grego. Por ser oriundo de um importante centro helenístico,
certamente conhecia os movimentos filosóficos e religiosos do mundo
grego-romano.
Ele se distanciava da característica dos demais apóstolos. Os outros
discípulos eram iletrados. Ele, por sua vez, possuía uma sólida educação. Para
ser apóstolo era necessário ter caminhado com Jesus. Os doze apóstolos eram
nessa quantidade por uma questão fundamental – dizia respeito ao número das
tribos de Israel. Após a morte de Judas, os onze escolheram Matias. Assim,
torna-se evidente que o número estava fechado. Paulo reivindica o apostolado.
Muitos questionavam a sua autoridade. Ele não se fazia de rogado. Segundo ele próprio,
Jesus surgiu para ele. A sua autoridade foi demandada pelo próprio Cristo. Quem
o contestaria? Muitos o contestaram. Escrevendo aos cristãos que estavam em
Corinto, ele diz: “Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos o sou para
vós”. E diz ainda: “Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre vós”
(1 Co 9.2; 2 Co 12.12).
Sendo um grande conhecedor da lei mosaica, dos rudimentos da tradição
rabínica e de todo o corpo de doutrinas do judaísmo oficial, Paulo constrói uma
sistematização, a partir da relativização daquilo que conhecia na religião
judaica para fundar o que conhecemos hoje como fé cristã. O apóstolo
universaliza a pessoa de Jesus, criando sentenças dogmáticas; uma teologia
assentada em termos ricos em significação – justificação, redenção, graça,
predestinação, novo Adão, velho Adão. O Jesus histórico é substituído pelo
Jesus cósmico, que cumpriu a lei. O ritual mosaico, na compreensão de Paulo,
deixou de ser necessário. O fim da lei é Cristo. A teologia fundada pelo
heterodoxo apóstolo dos gentios possui uma forte demanda jurídica.
O universalismo de Paulo estava de acordo com a compreensão do helenismo.
Uma fé circunscrita a um povo pequeno, afastado, como dizia Cícero – “o povo do
canto” – não teria impacto. Paulo é o fundador cristianismo. Seu ímpeto, sua
energia; sua defesa intransigente de certos pressupostos torna o chamado
“apóstolo dos gentios” em um dos maiores patrocinadores de ideia da história da
humanidade.
Sem Paulo, a fé cristã teria sucumbido. Seria apenas mais uma seita
judaica sem futuro. Jesus teria o seu destino alijado ao de Simão, filho de
Kochba; ou Teudas; Judas, o Galileu; ou ainda de Simão de Giora, que foram
caudilhos zelosos, capazes de realizar prodígios, mas que acabaram mortos pelos
romanos. Como se pode observar, baseado no livro de Reza Aslam, o sucesso de
uma ideia depende da narrativa e do
patrocínio que ela recebe. No que tange a isso, o humilde carpinteiro, camponês
como os nazarenos, tornou-se uma potência espiritual capaz de julgar a história
e salvar os homens.
Um comentário:
Ei irmão, o que seria os 12 apostolos?
O que seria Adão e Eva?
A fruta ou o fruto proibido, o que seria?
Por que o peixe é dado como sagrado?
Postar um comentário