segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Notas sobre “Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré", de Reza Aslam. III


A leitura de “Zelota” tem permitido a realização de inúmeras reflexões pertinentes. O livro coleciona polêmicas, pois desafia a credulidade de muitas pessoas; abala a veracidade e aquilo que a teologia tradicional chama de “inerrância das escrituras”. Segundo essa doutrina, não há erros na Bíblia por ser toda ela inspirada por Deus. As partes obscuras, as sentenças pouco claras, podem ser explicadas pelo próprio texto. Como se pode questionar algo “sagrado”?

Lendo “Zelota”, do iraniano Reza Aslam, luzes lógicas foram lançadas sobre passagens que o leitor desatento e que desconhece a geografia, a história e o ambiente onde se passa a narrativa, ignora ou, simplesmente, não questiona.  Um exemplo: no evangelho de Lucas, os moradores de Nazaré, após terem escutado os comentários de Jesus, “se encheram de ira” “e o levaram até o cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem” (Lc 4.28-29). De acordo com Aslam, não há montes, cumes ou precipitações elevadas em Nazaré, o que constitui um problema para a doutrina da inerrância. 

Reza Aslam dedica um dos capítulos do livro para falar de Paulo. É importante entender que, passados quase dois anos mil anos, a percepção que se adquire de uma crença consolidada é de não questionamento. Há igrejas; há fiéis que replicam a versão; há uma estrutura psicológica, uma cosmologia ajustada aos interesses daquele que crer. Se existe um grande número de fiéis e, e esses fiéis estão certos sobre aquilo que dizem acreditar, não sobra muito espaço para a dúvida. Outro aspecto é a distância histórica. A cultura do Oriente Médio, os costumes, o modo de produção, a organização era bastante diversa daquela que temos hoje. Havia um número grandioso de analfabetos. Estima-se que nos tempos bíblicos, apenas 3% da população era capaz de ler e produzir textos. A miséria era grassante. A vida estava estruturada na agricultura ou na criação de animais. Havia um pequeno número de afortunados; de servidores públicos e comerciantes.

Outro fato importante é saber quem escreveu os livros e em que ano essas narrativas, cartas ou profecias foram constituídas. Muito daquilo que se encontra coligido no cânon não possui fidelidade com o que é pregado e ensinado. Se alguém tivesse o poder de voltar no tempo ficaria assustado e, certamente, a forma como se processa a fé sofreria uma significativa mudança. 

Um dos personagens mais importantes e emblemáticos é o “autodenominado” apóstolo Paulo. Existem duas fontes a seu respeito – a narrativa de Lucas, em Atos dos apóstolos e aquelas escritas por Paulo - e outras atribuídas a ele. É possível que a escrita do livro de Atos tenha ocorrido uns trinta anos após a morte do apóstolo. Curiosamente, Lucas era um admirador do chamado 13° apóstolo e dedica mais de 70% do livro a ele.

Após a morte de Jesus como um criminoso comum, os seus seguidores experimentaram um dilema – o que deveriam fazer? Deram continuidade à pregação iniciada por Jesus. Um corpo de narrativas e eventos extraordinários começou a ser transmitido. Uma espécie de telefone sem fio foi passado. Os ensinamentos de Cristo estavam mesclados aos ensinamentos do Antigo Testamento. Isso fica evidente, por exemplo, no estranhamento inicial que a pregação de Paulo despertou nos discípulos que estavam em Jerusalém. Tiago, Pedro e João são denominados por Paulo como “colunas”. Em outra ocasião Paulo diz que discutiu com Pedro de forma acalorada.  Pedro não queria desconectar os ensinamentos do judaísmo, no caso a circuncisão, dos ensinamentos da fé cristã. Paulo é chamado a Jerusalém para se entrevistar com Tiago, conforme é explicitado em Atos 21. Logo em seguida, vai fazer uma purificação no templo a pedido de Tiago. Ora, por que ele precisou fazer essa purificação?

É curioso, pois Paulo funda uma nova fé. Não há descrições sobre a vida de Jesus em seus escritos. Enquanto os evangelhos são narrativas calcadas na história, os ensinamentos de Paulo celebram um Jesus cósmico. Com exceção de João, Paulo é o primeiro a denominar Jesus de “Cristo”. A palavra “Cristo” significa “o ungido”, “o Messias”, “o escolhido”, ou seja, percebe-se uma sentença teológica nessa afirmação. Paulo não se preocupa com a historicidade de Jesus. Sua grande preocupação é fundar uma cristologia sobre Jesus. As únicas duas referências a eventos históricos de acordo com a fórmula dos evangelhos e se encontram na carta escrita à igreja que fundara em Corinto. O apóstolo faz referência à eucaristia (santa ceia) e à ressurreição. Todavia, quando Paulo cita esses eventos, cria sentenças teológicas ou litúrgicas.

O fato de se autodenominar apóstolo é outro ponto curioso de sua trajetória. Paulo era um judeu com cidadania romana. Era um fariseu zeloso. Vinha dos estratos médios da cidade portuária, economicamente importante de Tarso. O partido dos fariseus era constituído pela “classe média” da época. Paulo sabia o grego. Por ser oriundo de um importante centro helenístico, certamente conhecia os movimentos filosóficos e religiosos do mundo grego-romano. 

Ele se distanciava da característica dos demais apóstolos. Os outros discípulos eram iletrados. Ele, por sua vez, possuía uma sólida educação. Para ser apóstolo era necessário ter caminhado com Jesus. Os doze apóstolos eram nessa quantidade por uma questão fundamental – dizia respeito ao número das tribos de Israel. Após a morte de Judas, os onze escolheram Matias. Assim, torna-se evidente que o número estava fechado. Paulo reivindica o apostolado. Muitos questionavam a sua autoridade. Ele não se fazia de rogado. Segundo ele próprio, Jesus surgiu para ele. A sua autoridade foi demandada pelo próprio Cristo. Quem o contestaria? Muitos o contestaram. Escrevendo aos cristãos que estavam em Corinto, ele diz: “Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos o sou para vós”. E diz ainda: “Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre vós” (1 Co 9.2; 2 Co 12.12). 

Sendo um grande conhecedor da lei mosaica, dos rudimentos da tradição rabínica e de todo o corpo de doutrinas do judaísmo oficial, Paulo constrói uma sistematização, a partir da relativização daquilo que conhecia na religião judaica para fundar o que conhecemos hoje como fé cristã. O apóstolo universaliza a pessoa de Jesus, criando sentenças dogmáticas; uma teologia assentada em termos ricos em significação – justificação, redenção, graça, predestinação, novo Adão, velho Adão. O Jesus histórico é substituído pelo Jesus cósmico, que cumpriu a lei. O ritual mosaico, na compreensão de Paulo, deixou de ser necessário. O fim da lei é Cristo. A teologia fundada pelo heterodoxo apóstolo dos gentios possui uma forte demanda jurídica. 

O universalismo de Paulo estava de acordo com a compreensão do helenismo. Uma fé circunscrita a um povo pequeno, afastado, como dizia Cícero – “o povo do canto” – não teria impacto. Paulo é o fundador cristianismo. Seu ímpeto, sua energia; sua defesa intransigente de certos pressupostos torna o chamado “apóstolo dos gentios” em um dos maiores patrocinadores de ideia da história da humanidade.

Sem Paulo, a fé cristã teria sucumbido. Seria apenas mais uma seita judaica sem futuro. Jesus teria o seu destino alijado ao de Simão, filho de Kochba; ou Teudas; Judas, o Galileu; ou ainda de Simão de Giora, que foram caudilhos zelosos, capazes de realizar prodígios, mas que acabaram mortos pelos romanos. Como se pode observar, baseado no livro de Reza Aslam, o sucesso de uma ideia  depende da narrativa e do patrocínio que ela recebe. No que tange a isso, o humilde carpinteiro, camponês como os nazarenos, tornou-se uma potência espiritual capaz de julgar a história e salvar os homens.


Um comentário:

Liovânio disse...

Ei irmão, o que seria os 12 apostolos?
O que seria Adão e Eva?
A fruta ou o fruto proibido, o que seria?
Por que o peixe é dado como sagrado?