quarta-feira, dezembro 07, 2016

"O último tango em Paris" - uma pequena reflexão

Muitas pessoas mais gabaritadas do que eu já emitiram suas opiniões sobre este fato. Não será este espaço minúsculo e anônimo que ampliará qualquer entendimento acerca da polêmica. Mas vamos lá! Os amantes do cinema, sempre debateram sobre o aspecto "selvagem" da nudez explicitada no filme O último tango em Paris, de 1972. Para a época em que foi produzido, cenas de nudez, felação, masturbação, sexo anal, palavrões, e a atmosfera niilista vivida pelo personagem de Marlon Brando, talvez criasse caos e um consequente celeuma por onde quer que tenha sido visto. De fato, o filme foi censurado em diversos países - inclusive no Brasil. Esse fato só serviu para alimentar uma "mística" em torno da produção franco-italiana. É um filme erótico? A resposta: Não. 

Na segunda-feira (após duas outras tentativas baldadas), eu vi o filme. Nas vezes em que tentei e não consegui, acabei sendo vencido pelo encadeamento das cenas. Dormi. A sucessão da história é lenta. Aspectos meio que improvisados são desfechados. As falas de Brando, principalmente, quando ele fala da mãe, demonstram um nível profundo de uma simplicidade angustiante. Palavras como "fezes", a "a mãe nua e bêbada", "porco" (e outras coisas que não lembro) estão ali. Vemos quão grande era o ator.  Brando está medonho no filme. "Asqueroso". "Repulsivo". Um anti-homem. Um tipo indomável. Como na cena em que ele pede para que a personagem de Maria Schneider coloque o dedo em seu ânus (do personagem de Brando).

Pois esta semana, uma polêmica veio à tona: a confissão do consagrado diretor italiano Bernardo Bertolucci de que a famosa cena em que Maria Schneider contracena com Marlon Brando ("a famosa cena da manteiga") não tenha sido combinada com a atriz. Bertolucci, que hoje tem 75 anos de idade, confessou em 2013 que o acontecimento foi resultado de um estratagema entre ele e Brando, sem que Schneider soubesse. Palavras do diretor: "Não contei (a Schneider) o que ia acontecer porque queria que a sua reação fosse a de uma garota, não a de uma atriz". À época, Schneider era uma jovem com 19 anos de idade. Alguém que ainda não se firmara no mundo do cinema. Contracenar com Brando (que no mesmo ano faria o primeiro filme de O Poderoso Chefão, sob a direção de Francis Ford Copolla; e que já havia trabalhado em filmes clássicos como Sindicato de Ladrões e Uma Rua chamada pecado, ambos de Elia Kazan) certamente daria a ela uma espécie de senha para que se tornasse conhecida. 

A grande pergunta é: se fosse outra atriz, com um nome mais poderoso do que Schneider como Catherine Deneuve (Repulsa ao Sexo e A bela da tarde) ou  Brigitte Bardot (O desprezo e Masculino-Feminino), a dupla Bertolucci/Brando teria a mesma ousadia que teve com a jovem neófita? Mas isso não explica ou atenua a situação.
A cena funesta 

Analisando a cena, não se tem uma ideia muito precisa para definir se houve ou não penetração. O problema está no cálculo, na gestação da ideia de se passar manteiga no ânus da atriz sem que existisse consentimento. Além da funda problemática de cunho ético, fica subentendido a coisificação do outro. A vulgarização, a falta de respeito para com a jovem atriz. E, por fim, a ideia de "estupro". Aliás, atitudes aparentemente sádicas são comuns a muitos diretores como, por exemplo,  Stanley Kubrick ou Lars von Trier.

A famigerada cena durante muito tempo alimentou o imaginário masculino, pois ali há um acontecimento de clara dominação masculina. O sujeito que se posiciona à força, que subjuga, que não abre espaço para o debate, para a contradição. A cena do coito anal choca pela repulsa que gera - e não se trata de um moralismo barato. Bertolucci quis fazer um filme que chocasse. Queria deixar uma mensagem implícita para os telespectadores - que não havia limites para a arte. Faz lembrar O Anticristo (e a cena da mutilação genital), de Lars von Trier, que causa um impacto pelo aspecto negativo; ou a crítica destrutiva de Saló: ou 120 dias de Sodoma, de Pasolini. 

No livro Feminismo e Política, de Flávia Birolli e Luis Felipe Miguel, encontramos a seguinte a afirmação que serve para fortalecer o que tento afirmar:

Representações das relações de gênero nas quais a mulher é humilhada e objetificada, isto é, tratada como menos que humana porque é definida como instrumento para a satisfação dos desejos de outros, podem contribuir, ainda que de maneira difusa, para a violência contra as mulheres e para a aceitação dessa violência. 

Acredito que à época do filme, não havia esse debate consolidado de maneira tão substantiva como temos hoje. Entretanto, acredito que Bertolucci e Brando foram misóginos em suas intenções. Submeteram a jovem Schneider a uma situação constrangedora, subserviente, pelo fato dela ser ainda desconhecida. Sentiram-se verdadeiros garanhões próximos a uma vítima indefesa. Ajudaram a alimentar a sanha de muitos sujeitos que veem as mulheres como criaturas unicamente "para o coito" - e quanto mais expropriador da dignidade, melhor. 

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Ferreira Gullar (1930-2016)

Buenos Aires, 1975 (no exílio)
(...) Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
de como há dias
no dia
(especialmente nos bairros
onde a luz é pouca)
porque de noite
todos os fatos são pardos (...)
(Trecho de Poema Sujo)

Ontem, morreu José Ribamar Ferreira ou, simplesmente, Ferreira Gullar, um dos grandes mestres da moderna poesia brasileira. Ao lado de Carlos Drummond, Manuel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles e Manoel Bandeira, Gullar constitui, ao meu modo de ver, aquilo que de melhor produzimos em matéria de poesia. Sua carreira foi atravessada por muitos eventos importantes. 

Nascido em São Luis do Maranhão, Gullar foi um intelectual que assumiu posições polêmicas, principalmente a partir dos anos 80. Lendo uma entrevista que ele deu ao jornal espanhol El País, há dois anos atrás, nota-se o nível de "entorpecimento político" do grande poeta. É importante salientar que como cidadão, Gullar poderia emitir as opiniões que bem entendesse. Todavia, o grande problema é defender um político como Aécio Neves e chamá-lo de "bom gestor"; de que ele "atendia às expectativas políticas do momento" por ter feito um bom governo em Minas Gerais, algo bastante dubitável do ponto de vista objetivo. Para alguém como ele que escreveu algo tão denso como o Poema Sujo, um texto que destroça por dentro todo aquele que o ler, tal postura é negar a dialeticidade da própria obra. 

Outra questão é o fato de ter aceitado a nomeação para a Academia Brasileira de Letras, algo que ele sempre negou que faria.  Mas é importante salientar, que os intelectuais são criaturas humanas, por isso, passíveis ao erro. São como as divindades gregas, que possuíam apenas a imortalidade como realidade que as distanciavam dos humanos mortais. Por outro lado, eram acometidas por todo tipo de paixões e intrigas levianas.

Deixando de lado essa "licença poética" dos fatos da vida, Gullar foi um intelectual bastante atraente. É bom escutá-lo. Beber suas palavras, como no vídeo abaixo. É uma entrevista em que ele conta um pouco de sua vida em São Luis; a incursão no Partido Comunista Brasileiro (PCB); o exílio (Argentina, Chile e União Soviética) e as lutas diárias em país que vivenciava uma Ditadura.  Desde ontem que estou lendo o Poema Sujo. Peguei ainda Todo Poesia, lançado pela Civilização Brasileira, e que traz tudo aquilo que ele havia escrito até 1980 - inclusive o Poema Sujo. Abaixo, segue um dos poemas de que mais gosto do poeta: O açúcar. É uma verdadeira do ponto de vista do movimento dialético e da relação do trabalho que não se enxerga, mas que está latente na substância "branca", "pura", "afável ao paladar", "como beijo de moça".

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.  


Um trecho do Poema Sujo pelo próprio Gullar.

domingo, dezembro 04, 2016

8 1/2 de Fellini, algumas palavras

"Você tem razão. O papel não existe. Nem o filme existe".
Guido Anselmi, personagem alter-ego de Fellini em 8 e Meio

 8 e Meio é daqueles filmes marcantes, que se inscrevem definitivamente na memória e no coração de todo admirador do bom cinema. O filme de 1963, prova o gênio de um dos maiores diretores da história, Federico Fellini, autor de uma dezena de obras imortais.  8 e Meio assume uma característica essencialmente metalinguística por falar da dificuldade criativa do próprio Fellini. Aponta para o bloqueio de ideias que artistas e intelectuais, como mortais que são, enfrentam. Imagine você ser contratado para escrever uma peça ou um livro e visualizar tudo sendo preparado, mas sua mente está completamente nua? Não há ideias. As pessoas questionam quais papéis assumirão. Quais falas verbalizarão. Todavia, não há papéis, nem ideias, nem fluxo criativo. Tudo se mostra intransigentemente nulo.

Além do aspecto apontado acima, o filme é divertidíssimo, sabendo dosar muito bem o drama com o humor. Um exemplo é a cena em que Anselmi (Marcello Mastroianni), na parte final do filme, tenta se esconder embaixo da mesa, para fugir do questionamento dos jornalistas e assessores sobre a existência do trabalho. O filme mescla a realidade com os devaneios oníricos de Anselmi. Mas, no fundo, é Fellini que está ali, trazendo à tona toda uma memorialística - os fantasmas da infância, as várias mulheres que teve, a religião, os dilemas angustiantes de uma existência. E, quando ele faz isso, parece falar também com o espectador.

A cena que encerra o filme é de pura genialidade. Sob uma marchinha circense de Nino Rota, Anselmi conduz a gravação do seu (finalmente) filme. E tudo parece terminar numa grande ciranda. Ou seja, as pontas do inconciliável se encontram. As intrigas são desfeitas. E todos dançam e celebram. Até mesmo Anselmi entra na roda celebrante. Uma criança toca um instrumento de sopro (uma referência à infância do diretor?) e é seguida por outros músicos. Todos os outros músicos se retiram. Fica somente a criança, sendo iluminada por um facho de luz. Tal cena talvez aponte para a necessidade de simplicidade, algo tão distantes dos intelectuais. Na vida, é a pureza e a inocência que prevalecem.

8 e Meio é obra imorredoura. Precisa ser vista mais de uma vez. Possui detalhes sutis que devem ser absorvidos com uma paciência ruminante. Gênios como Fellini sabiam transformar até a dificuldade para fecundar a arte, em obra de arte.