segunda-feira, dezembro 05, 2016

Ferreira Gullar (1930-2016)

Buenos Aires, 1975 (no exílio)
(...) Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
de como há dias
no dia
(especialmente nos bairros
onde a luz é pouca)
porque de noite
todos os fatos são pardos (...)
(Trecho de Poema Sujo)

Ontem, morreu José Ribamar Ferreira ou, simplesmente, Ferreira Gullar, um dos grandes mestres da moderna poesia brasileira. Ao lado de Carlos Drummond, Manuel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles e Manoel Bandeira, Gullar constitui, ao meu modo de ver, aquilo que de melhor produzimos em matéria de poesia. Sua carreira foi atravessada por muitos eventos importantes. 

Nascido em São Luis do Maranhão, Gullar foi um intelectual que assumiu posições polêmicas, principalmente a partir dos anos 80. Lendo uma entrevista que ele deu ao jornal espanhol El País, há dois anos atrás, nota-se o nível de "entorpecimento político" do grande poeta. É importante salientar que como cidadão, Gullar poderia emitir as opiniões que bem entendesse. Todavia, o grande problema é defender um político como Aécio Neves e chamá-lo de "bom gestor"; de que ele "atendia às expectativas políticas do momento" por ter feito um bom governo em Minas Gerais, algo bastante dubitável do ponto de vista objetivo. Para alguém como ele que escreveu algo tão denso como o Poema Sujo, um texto que destroça por dentro todo aquele que o ler, tal postura é negar a dialeticidade da própria obra. 

Outra questão é o fato de ter aceitado a nomeação para a Academia Brasileira de Letras, algo que ele sempre negou que faria.  Mas é importante salientar, que os intelectuais são criaturas humanas, por isso, passíveis ao erro. São como as divindades gregas, que possuíam apenas a imortalidade como realidade que as distanciavam dos humanos mortais. Por outro lado, eram acometidas por todo tipo de paixões e intrigas levianas.

Deixando de lado essa "licença poética" dos fatos da vida, Gullar foi um intelectual bastante atraente. É bom escutá-lo. Beber suas palavras, como no vídeo abaixo. É uma entrevista em que ele conta um pouco de sua vida em São Luis; a incursão no Partido Comunista Brasileiro (PCB); o exílio (Argentina, Chile e União Soviética) e as lutas diárias em país que vivenciava uma Ditadura.  Desde ontem que estou lendo o Poema Sujo. Peguei ainda Todo Poesia, lançado pela Civilização Brasileira, e que traz tudo aquilo que ele havia escrito até 1980 - inclusive o Poema Sujo. Abaixo, segue um dos poemas de que mais gosto do poeta: O açúcar. É uma verdadeira do ponto de vista do movimento dialético e da relação do trabalho que não se enxerga, mas que está latente na substância "branca", "pura", "afável ao paladar", "como beijo de moça".

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.  


Um trecho do Poema Sujo pelo próprio Gullar.

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