segunda-feira, maio 31, 2010

Irã: quem atira a primeira pedra?

O presidente Lula empreendeu uma delicada operação diplomática para evitar que o Irã utilize a energia nuclear para fins bélicos. As nações mais poderosas do mundo, capitaneadas pelos EUA, logo expressaram sua indignação e discordância: como um "paiseco" como o Brasil ousa querer ditar regras na política internacional?

Marx, Reich e Erich Fromm já nos haviam prevenido que preconceito de classe costuma ser um tabu arraigado. Como alguém que nasceu na cozinha tem o direito de ocupar a sala de jantar?

Pelo critério de George Bush, lamentavelmente preservado por Obama, o Irã faz parte das nações que integram o "eixo do mal". Não morro de amores pela terra dos aiatolás, considero o governo iraniano uma autocracia fundamentalista e discordo do modo patriarcal que o Irã trata as suas mulheres, como seres de segunda classe. Diga-se de passagem, assim também faz o Vaticano, razão pela qual as mulheres são impedidas de acesso ao sacerdócio.

Mas não custa questionar o cinismo dos senhores do mundo com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU: por que Israel tem o direito de possuir arsenal nuclear e o Irã não? Ele jogaria uma bomba nuclear sobre outras nações? Ora, isso os EUA já fez, em 1945, sacrificando milhares de vidas inocentes em Hiroshima e Nagasaki.

O Irã desencadearia uma guerra mundial? Ora, o Ocidente civilizado já promoveu duas, a segunda vitimando 50 milhões de pessoas. O nazismo e o fascismo surgiram no Oriente? Todos sabemos: foram criações diabólicas de dois países considerados altamente civilizados, Alemanha e Itália.

Os árabes, ao longo de 800 anos, ocuparam a Península Ibérica. Deixaram um lastro de cultura e arte. A Europa ocupou e saqueou a África e a Ásia, e o lastro é de miséria, mortandade e extorsão. O Irã é uma ditadura? Quantas não foram implantadas na América Latina pela Casa Branca? Inclusive a do Brasil, que durou 21 anos (1964-1985). Há pouco, a Casa Branca apoiou o golpe militar que derrubou o governo democrático de Honduras.

Fortalecido belicamente o Irã poderia ocupar países vizinhos? E o que dizer da ocupação usamericana de Porto Rico, desde 1898, e agora do Iraque e do Afeganistão? E com que direito os EUA mantêm uma base naval, transformada em cárcere clandestino de supostos terroristas, em Guantánamo, território cubano?

Respaldado em que lei internacional os EUA implantaram 700 bases militares em países estrangeiros? Só na Itália existem 14. Na Colômbia, 5. E quantas bases militares estrangeiras há nos EUA?

Há que admitir: o Irã não está preparado para se integrar no seio das nações civilizadas... Nações que financiam, pelo consumo, os cartéis das drogas, tratam imigrantes estrangeiros como escória da humanidade; fazem do consumismo o ideal de vida.

E convém lembrar: fundamentalismo não é apenas uma síndrome religiosa. É, sobretudo, uma enfermidade ideológica, que nos induz a acreditar que o capitalismo é eterno, fora do mercado não há salvação e a desigualdade social é tão natural quanto o inverno e o verão.

Lula candidato era discriminado pelo elitismo brasileiro por não dominar idiomas estrangeiros. Surpreendeu a todos por falar a linguagem dos pobres e revelar-se exímio negociador em questões internacionais.

Sem o apoio do Brasil não avançaria essa primavera democrática que, hoje, semeia esperança de tempos melhores em toda a América Latina. Os eleitores dão as costas às velhas oligarquias políticas e escolhem governantes progressistas.

Essa nova geopolítica latino-americana, que oficializará em 2011 a União das Nações Latino-Americanas e Caribenhas, certamente preocupa Washington. A crise financeira bate as portas das nações mais poderosas do mundo e a Europa entra num período de recessão. O livre mercado, o Estado mínimo, a moeda única (euro), a ciranda especulativa, mergulham numa crise sem precedentes.

Tudo indica que, daqui pra frente, o mundo será diferente. Se melhor ou pior, depende do resultado do embate entre duas forças contrárias: os que pensam a partir do próprio umbigo, interessados apenas em obter fortunas, e os que buscam um projeto alternativo de sociedade, menos desigual e mais humano. É a antiética em confronto com a ética.

Por Frei Betto

[Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org

Extraído DAQUI

quinta-feira, maio 27, 2010

Powaqqatsi, a vida enfeitiçada

Tomei conhecimento da trilogia Qatsi (Koyaanisqatsi, Powaqqatsi e Naqoyqatsi) numa aula de sociologia da educação. O professor explicava o que significava micro-sociologias. Para ilustrar a explicação que dava, resolveu mostrar para os alunos cenas do primeiro filme da série Qatsi, Koyaanisqatsi. Quando vi as imagens mescladas, coladas àquela música arrebatadora, senti um frêmito diferente. Fiquei extasiado. Um silêncio admirativo se apoderou de mim. Pura estupefação. Daquele momento em diante resolvi que deveria ter aquela obra enfeitiçada, repleta de poderes mágicos.

Empreendi uma busca. Procurei em vários sites da internet. Até que achei. Mas infelizmente o achado estava incompleto. Somente os dois primeiro estavam disponíveis, a saber, Koyaanisqatsi e Powaqqatsi. Comprei-os sem qualquer titubeio. Assisti por diversas vezes ao primeiro. Passados três anos, somente agora me dediquei a ver o segundo, filmado no ano de 1988. A experiência foi positiva. Não chegou a me impressionar tanto quanto primeiro, mas fiquei com aquela impressão aural, de magicidade, após ver ao filme. Falta-me apenas assistir ao terceiro – Naqoyqatsi – que consegui no final de 2009.

O interessante na temática de Powaqqatsi é o objeto de análise. Godfrey Reggio, o diretor da obra, colocou em foco o Hemisfério Sul. Enquanto o primeiro filme, Koyanisqatsi, focou o Hemisfério Norte dito “civilizado” e o seu modo de vida contradizente, o segundo buscou realçar como está organizado o chamado terceiro mundo. Assim, o filme mostra com bastante realismo como o mundo subdesenvolvido, formado por culturas orais, que produzem instrumentos manuais herdados por transmissões ancestrais, está estruturado. Como a desigualdade avassaladora é resultado de uma causa.

O vocábulo Powaqqatsi é uma junção de termos do idioma Hopi. A tradução aportuguesada ficaria assim: powaqq – “feiticeiro”, “bruxo”; qatsi – “vida”. No ajuste dos termos, fica assim: “uma espécie de entidade que se utiliza de um modo de viver para prolongar sua própria vida”. Powaqqatsi é um filme que trata de “sedução”. Ou seja, de um modo de vida que tem sofrido os efeitos mais violentos do progresso. A obra mostra como essas “culturas sulinas”, têm sido “parasitadas” por um estilo de vida ludibriador. A sedução não se dá com força, com violência, não usa imperativos belicistas. O estilo de vida criado por culturas “civilizadas” é o próprio “bruxo” capaz de tornar os indivíduos em seus escravos. Segundo o próprio Reggio, “o hemisfério sul está sendo consumido pela ordem criada pelo hemisfério norte”.

Os homens criaram uma utopia e essa utopia é a imortalidade virtual. Até então, esses poderes eram somente atribuídos às divindades. Os poderes de conservação e transmissão da imortalidade pertenciam somente aos deuses tidos por soberanos e eternos. Agora, outros deuses foram criados. Um novo panteão de seres e objetos magicizados. O computador está no centro de tudo. Todas as teias comunicativas que geram encantamento se ligam a ele. Os homens para se enxergarem, para se encontrarem, para se medirem, para serem saciados em suas necessidades espirituais vão à teia invisível da virtualidade. O computador tornou-se assim numa espécie de oráculo, o instrumento mais poderoso do mundo. O computador potencializa a criação de avatares, de transfiguração dos desejos e dos seres que se ligam a esses próprios desejos. Nesse sentido, é a maior mágica do mundo. É algo pelo qual todos têm adoração.

Assim, como em Koyaanisqatsi, Powaqqatsi tem a trilha sonora composta por Philip Glass, mestre do minimalismo musical. Sua música produz efeitos impressionantes enquanto vemos às imagens. É impossível “desvencilhar” a sucessão das imagens com a música. A música está encaixada às imagens e, as imagens, à música. O filme é uma forte experiência espiritual e de despertar da consciência.

Amostra de um dos capítulos do filme:



Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: Quinta-feira, 27 de maio de 2010, 19:28:17

sábado, maio 22, 2010

Aceita uma laranja?

Alguém já disse: se torcêssemos um jornal como se faz com uma toalha, pingaria muito sangue. Claro, isso serve para a TV, nesse caso não apenas nos noticiários, como também nos filmes, séries e novelas, que estão se especializando na “estética do tiro”. Muitos afirmam que é a sociedade que está cada vez mais violenta. Isso é uma verdade em partes, pois a violência cresce proporcionalmente ao aumento da população. O homem sempre foi um animal violento. A diferença é que uns controlam esses instintos, enquanto outros não seguram a fera dentro de si.

O que acontecerá no futuro? Os otimistas acreditam que tudo pode melhorar, sonham com um mundo de paz para seus filhos, são utópicos. Os pessimistas, por seu turno, pintam um mundo sombrio, onde cada vez mais as casas terão cercas eletrificadas e proliferarão os condomínios fechados. Quem não tiver dinheiro (a “tia pecúnia”) estará à mercê de gangues, com delinquentes cada vez mais jovens, que praticarão a “ultraviolência”. Esse cenário distópico aparece em muitos livros de ficção científica. Entre eles, Laranja mecânica, de Anthony Burgess (editora Aleph, 224 páginas).

Utopia é um termo que designa, literalmente, um lugar que não existe (do grego, “ou”, negação e “topos”, lugar”). A palavra foi usada pela primeira vez no livro homônimo de Thomas More para nomear uma ilha onde tudo era perfeito, do sistema de governo às atitudes dos cidadãos. Por extensão, passou a significar o sonho de um mundo ideal, o qual muitas vezes seguimos, mesmo sabendo que ele pode nunca acontecer. Miramos o horizonte e nos guiamos por ele, apesar de nunca o alcançarmos. Já a distopia é o contrário. Seriam distópicas as sociedades do futuro em que prevalecessem os regimes totalitários que controlassem os passos e o pensamento do indivíduo (como no livro 1984, de George Orwell, onde surgiu a expressão Big Brother), que manipulassem geneticamente os embriões dos seres humanos para condicioná-los a agirem conforme o sistema (Admirável mundo novo, de Aldous Huxley) ou destruíssem obras intelectuais para que as pessoas não aprendessem a questionar a realidade (Fahreinheit 451, de Ray Bradbury).

No livro de Burgess, publicado em 1962, vemos uma Inglaterra, num futuro não muito distante, tomada por gangues juvenis que praticam a ultraviolência. Quem nos narra a história é um membro de uma dessas gangues, Alex, com uma algaravia de gírias chamada de linguagem “nadsat” (há um glossário no final do livro para compreender as expressões). Seus companheiros são “druguis”, que moram em “flatblocos”, adoram beber “moloko” para depois “itiar” pelas ruas, espancar “vekios”, estuprar “devotchka”, roubar “tia pecúnia, fazer muitas coisas “horrorshow” e depois fugir dos “miliquinhas”. Burgess, estudioso da obra de James Joyce, criou as gírias baseado em línguas do leste europeu. Causa estranhamento em um primeiro momento, mas com o decorrer da leitura acabamos nos acostumando com ela, sem contar que, nessa nova edição no Brasil, a tradução de Fábio Fernandes faz fluir bem mais fácil o texto do que a antiga, feita nos anos 70.

Após todas as atrocidades cometidas, Alex acaba preso e passa por um processo de reabilitação inovador chamado processo Ludovico. Amarrado a uma cadeira e com grampos prendendo suas pálpebras, ele assiste a filmes que mostram as ações cruéis de que o ser humano é capaz de fazer contra seu semelhante, com destaque para o Holocausto. Ao ser obrigado a assistir as cenas que seguem numa sucessão frenética, sem poder fechar os seus olhos, Alex é condicionado a ter repulsa por qualquer situação de violência e, consequentemente, é considerado curado. Na terceira parte, ocorre a tentativa de voltar, a conviver pacificamente dentro da sociedade e com sua família, mas percebe a dificuldade de aceitação de um ex-delinquente, ainda mais por reencontrar aqueles que antes foram suas vítimas.

Laranja mecânica se tornou mais conhecido depois da adaptação cinematográfica feita por Stanley Kubrick, com cenas que entraram para o inconsciente coletivo dos amantes da sétima arte. No filme, porém, os “druguis” são adultos, ao contrário do romance, em que são adolescentes. Recentemente, a adaptação de Alice no país da maravilhas também opta por uma personagem adulta em vez da criança da obra de Lewis Carroll. Será tudo culpa do “politicamente correto”? De qualquer forma, o romance nos instiga a refletir sobre o caráter do ser humano que se forma já na infância e sobre como estamos cada vez mais perdendo o controle dos nossos filhos. Mas também faz uma crítica ao Estado, que faz muito pouco para curar esse mal da sociedade e, quando tenta, utiliza métodos errados ao manipular a mente das pessoas. Como escreveu uma das vítimas dos “druguis”, um escritor, em seu livro que foi rasgado por Alex, e cujo título é o mesmo do romance de Burgess: “A tentativa de impor ao homem (...) leis e condições que são apropriadas a uma criação mecânica, contra isto eu levanto minha caneta-espada”.

Por Cassionei Niches Petry

Extraído DAQUI

quarta-feira, maio 19, 2010

Olho quem me olha

Imagine uma prisão redonda como o estádio do Maracanã. Há vários andares de celas. Nenhuma possui porta, de modo que um único carcereiro, situado na guarita no centro da construção circular, controla sozinho o movimento de centenas de prisioneiros. Este o modelo panótico de Bentham, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Muitas penitenciárias o adotaram. Tive oportunidade de visitar uma delas, na Ilha da Juventude, em Cuba, construída antes de Revolução e, hoje, desativada.

Vivemos agora numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o que veremos. Ligamos a TV motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de opinião. Isso influi inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede, de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura seu olhar no ato criativo.

Todo esse processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em 1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual canibalizador que ocorre no interior da casa. Induzidos por esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano. Outrora havia uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e professores, artistas e escritores.

Agora, a indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais, integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade. Em A doce vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam rumo à areia. O olho olha aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e a interpelasse no fundo da alma.

É este olho crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã - o entretenimento televisivo centrado do estímulo ao consumismo.


Por Frei Betto

Extraído do sítio ADITAL.

* A imagem foi extraída do filme 1984, baseado no livro de George Orwell

segunda-feira, maio 17, 2010

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

Terminei a leitura de o Vermelho e o Negro de Stendhal, obra escrita em 1830. Negligenciei a leitura em dado momento, já que me encontrava ocupado com outras questões, mas nas últimas duas semanas li com bastante avidez até concluir a obra. É um livro de leitura fascinante. O realismo de Stendhal é sóbrio, repleto de imparcialidade. Percebe-se no romance um grau bastante elevado de embates, diálogos e reflexões psicológicas em Julien Sorel, o principal personagem de O Vermelho e o Negro. A princípio a leitura da obra de Stendhal me pareceu enfadonha, mas aos poucos ganhou uma grandiloquência, uma altura e profundidades somente vistos em grandes e imortais obras da literatura universal. Sorel é um homem à frente de seu tempo. É um progressista (admirador de Napoleão Bonaparte), visionário, que está acima da mesquinhez busguesa tão grassante em no período em que vive. O Vermelho e o Negro é uma crítica às aparências, à hiprocrisia burguesa. Julien prefere morrer a apelar para a justiça caprichosa. Abaixo segue um excelente e breve texto sobre a importância do personagem Julien Sorel.

Julien Sorel e a castração coletiva

Julien Sorel (herói de “O vermelho e o negro”, de Stendhal) é o símbolo do grande homem desperdiçado graças ao caráter mofino de sua época. Ambicioso, orgulhoso, determinado, sonha com o tempo no qual, sob o comando de Napoleão – seu modelo de força e saúde – teria feito fortuna, vivido paixões, enfim, gastado todos os excessos de sua energia vital. É homem de constituição escura e antiga, mas que nasceu na década errada: Napoleão foi traído, definha em Santa Helena, os burgueses corruptos foram cooptados, os nobres vivem entre a afeminação e o temor de novas guilhotinas, e Sorel, pobre de nascença, não vê alternativa de ascensão além do seminário, jardim dos animais castrados, entre os quais segue alimentando secretamente desejos de grandeza. Todo o romance conta a saga desse desperdício, e a mestria de Stendhal está em justamente fazer a própria época soar anacrônica em relação ao herói, e não o contrário. Mas sabemos o preço final que Sorel terá de pagar pelo “pecado” de sua força. A tragédia purga o ressentimento dos medíocres mediante o sacrifício da milagrosa exceção. Nesse ponto, digamos assim, higiênico, Stendhal não conseguiu se desvencilhar do modelo clássico. A teoria da evolução afirma que órgãos animais sem uso tendem a atrofiar. Nossos caninos, por exemplo, que hoje só servem para doer. Pode-se dizer que a segura civilização produz cada vez mais atrofias: nossos órgãos de defesa e ataque secam progressivamente, somos cada vez mais dóceis citadinos aparados nas arestas afiadas – nossa cauda transformada em espírito. Somos cultivados de modo que nossa periculosidade definhe: com ela nossa energia vital. Julien Sorel é um monstro diante dos capados poodles do seu tempo. Tem que usar de hipocrisia para viver, o que fere seu orgulho, fazendo-o duvidar de si, desprezar-se. Eis o nascimento da má consciência, a qual não passa de falta de clareza sobre si mesmo. Tal má consciência deve ser reconhecida publicamente, só então o indivíduo pode ser aceito de novo no seio da comunidade. De arestas aparadas, obviamente, e todos os órgãos atrofiados. Se não me engano, Aristóteles disse certa vez que escolher entre suas habilidades aquelas necessárias à sua época é o caráter da vocação. Creio no contrário, e às vezes uma época desperdiça seus melhores espécimes em prol de um declarado programa de castração. Assim sendo, fecho com Nietzsche, que afirmou ser a empatia um tipo de mimetismo atrofiado – herança instintiva da época na qual o animal homem queria se misturar ao ambiente, repetindo em si de modo maquinal o gesto do outro, na tentativa de intuir se este representava ou não perigo. Com a domesticação, colocou-se um felpudo penhoar de dormir sobre esse instinto: que passa a ser visto através da máscara metonímica da piedosa capacidade de “se colocar no lugar do outro”. Porém, a base vital dessa fatuidade permanece sendo a conservação de si mesmo, o que em termos da boa sociedade significa egoísmo – conceito que contradiz o fundamento moderno da própria empatia. Logo, temos uma contradição em termos. Toda a civilização é uma contradição em termos.

Extraído DAQUI

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 17 de maio de 2010, 18:37

quarta-feira, maio 12, 2010

‘Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos’, diz Umberto Eco

Ensaísta e escritor italiano fala em entrevista exclusiva de seu novo trabalho, ‘Não Contem com o Fim do Livro’

MILÃO – O bom humor parece ser a principal característica do semiólogo, ensaísta e escritor italiano Umberto Eco. Se não, é a mais evidente. Ao pasmado visitante, boquiaberto diante de sua coleção de 30 mil volumes guardados em seu escritório/residência em Milão, ele tem duas respostas prontas quando é indagado se leu toda aquela vastidão de papel. “Não. Esses livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que já li estão na universidade” – é a sua preferida. “Não li nenhum”, começa a segunda. “Se não, por que os guardaria?”

Na verdade, a coleção é maior, beira os 50 mil volumes, pois os demais estão em outra casa, no interior da Itália. E é justamente tal paixão pela obra em papel que convenceu Eco a aceitar o convite de um colega francês, Jean-Phillippe de Tonac, para, ao lado de outro incorrigível bibliófilo, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, discutir a perenidade do livro tradicional. Foram esses encontros (“muito informais, à beira da piscina e regados com bons uísques”, informa Umberto Eco) que resultaram em Não Contem Com o Fim do Livro, que a editora Record lança na segunda quinzena de abril.

A conclusão é óbvia: tal qual a roda, o livro é uma invenção consolidada, a ponto de as revoluções tecnológicas, anunciadas ou temidas, não terem como detê-lo. Qualquer dúvida é sanada ao se visitar o recanto milanês de Eco, como fez o Estado na última quarta-feira. Localizado diante do Castelo Sforzesco, o apartamento – naquele dia soprado por temperaturas baixíssimas, a neve pesada insistindo em embranquecer a formidável paisagem que se avista de sua sacada – encontra-se em um andar onde antes fora um pequeno hotel. “Se eram pouco funcionais para os hóspedes, os longos corredores são ótimos para mim pois estendo aí minhas estantes”, comenta o escritor, com indisfarçável prazer, ao apontar uma linha reta de prateleiras repletas que não parecem ter fim. Os antigos quartos? Transformaram-se em escritórios, dormitórios, sala de jantar, etc. O mais desejado, no entanto, é fechado a chave, climatizado e com uma janela que veda a luz solar: lá estão as raridades, obras produzidas há séculos, verdadeiros tesouros. Isso mesmo: tesouros de papel.

Conhecido tanto pela obra acadêmica (é professor aposentado de semiótica, mas ainda permanece na ativa na Faculdade de Bolonha) como pelos romances (O Nome da Rosa, publicado em 1980, tornou-se um best-seller mundial), Eco é um colecionador nato; além de livros, gosta também de selos, cartões-postais, rolhas de champanhe. Na sala de seu apartamento, estantes de vidro expõem tantos os livros raros – que, no momento, lideram sua preferência – como conchas, pedras, pedaços de madeira. As paredes expõem quadros que Eco arrematou nas visitas que fez a vários países ou que simplesmente ganhou de amigos – caso de Mário Schenberg (1914-1990), físico, político e crítico de arte brasileiro, de quem o escritor guarda as melhores recordações.

Aos 78 anos, Eco – que tem relançado no País Arte e Beleza na Estética Medieval (Record, 368 págs., R$ 47,90, tradução de Mario Sabino) – exibe uma impressionante vitalidade. Diverte-se com todo tipo de cinema (ao lado de seu aparelho de DVD repousa uma cópia da animação Ratatouille), mantém contato com seus alunos em Bolonha, escreve artigos para jornais e revistas e aceita convites para organizar exposições, como a que o transformou, no ano passado, em curador, no Museu do Louvre, em Paris. Lá, o autor teve o privilégio de passear sozinho pelos corredores do antigo palácio real francês nos dias em que o museu está fechado. E, como um moleque levado, aproveitou para alisar o bumbum da Vênus de Milo. Foi com esse mesmo espírito bem-humorado que Eco – envergando um elegante terno azul-marinho, que uma revolta gravata da mesma cor tratava de desalinhar; o rosto sem a característica barba grisalha (raspada religiosamente a cada 20 anos e, da última vez, em 2009, também porque o resistente bigode preto o fazia parecer Gengis Khan nas fotos) – conversou com a reportagem do Sabático.

O livro não está condenado, como apregoam os adoradores das novas tecnologias?
O desaparecimento do livro é uma obsessão de jornalistas, que me perguntam isso há 15 anos. Mesmo eu tendo escrito um artigo sobre o tema, continua o questionamento. O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído. O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos. Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos? Conversei recentemente com o diretor da Biblioteca Nacional de Paris, que me disse ter escaneado praticamente todo o seu acervo, mas manteve o original em papel, como medida de segurança.

Qual a diferença entre o conteúdo disponível na internet e o de uma enorme biblioteca?

A diferença básica é que uma biblioteca é como a memória humana, cuja função não é apenas a de conservar, mas também a de filtrar – muito embora Jorge Luis Borges, em seu livro Ficções, tenha criado um personagem, Funes, cuja capacidade de memória era infinita. Já a internet é como esse personagem do escritor argentino, incapaz de selecionar o que interessa – é possível encontrar lá tanto a Bíblia como Mein Kampf, de Hitler. Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a consulta. Sou capaz de distinguir os sites confiáveis de filosofia, mas não os de física. Imagine então um estudante fazendo uma pesquisa sobre a 2.ª Guerra Mundial: será ele capaz de escolher o site correto? É trágico, um problema para o futuro, pois não existe ainda uma ciência para resolver isso. Depende apenas da vivência pessoal. Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos.

Não é possível prever o futuro da internet?

Não para mim. Quando comecei a usá-la, nos anos 1980, eu era obrigado a colocar disquetes, rodar programas. Hoje, basta apertar um botão. Eu não imaginava isso naquela época. Talvez, no futuro, o homem não precise escrever no computador, apenas falar e seu comando de voz será reconhecido. Ou seja, trocará o teclado pela voz. Mas realmente não sei.

Como a crescente velocidade de processar dados de um computador poderá influenciar a forma como absorvemos informação?

O cérebro humano é adaptável às necessidades. Eu me sinto bem em um carro em alta velocidade, mas meu avô ficava apavorado. Já meu neto consegue informações com mais facilidade no computador do que eu. Não podemos prever até que ponto nosso cérebro terá capacidade para entender e absorver novas informações. Até porque uma evolução física também é necessária. Atualmente, poucos conseguem viajar longas distâncias – de Paris a Nova York, por exemplo – sem sentir o desconforto do jet lag. Mas quem sabe meu neto não poderá fazer esse trajeto no futuro em meia hora e se sentir bem?

É possível existir contracultura na internet?

Sim, com certeza, e ela pode se manifestar tanto de forma revolucionária como conservadora. Veja o que acontece na China, onde a internet é um meio pelo qual é possível se manifestar e reagir contra a censura política. Enquanto aqui as pessoas gastam horas batendo papo, na China é a única forma de se manter contato com o restante do mundo.

Em um determinado trecho de ‘Não Contem Com o Fim do Livro’, o senhor e Jean-Claude Carrière discutem a função e preservação da memória – que, como se fosse um músculo, precisa ser exercitada para não atrofiar.

De fato, é importantíssimo esse tipo de exercício, pois estamos perdendo a memória histórica. Minha geração sabia tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20 anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação. Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade, a evolução põe em risco outra, como a memória. Lembro-me de uma maravilhosa história de ficção científica escrita por Isaac Asimov, nos anos 1950. É sobre uma civilização do futuro em que as máquinas fazem tudo, inclusive as mais simples contas de multiplicar. De repente, o mundo entra em guerra, acontece um tremendo blecaute e nenhuma máquina funciona mais. Instala-se o caos até que se descobre um homem do Tennessee que ainda sabe fazer contas de cabeça. Mas, em vez de representar uma salvação, ele se torna uma arma poderosa e é disputado por todos os governos – até ser capturado pelo Pentágono por causa do perigo que representa (risos). Não é maravilhoso?

No livro, o senhor e Carrière comentam sobre como a falta de leitura de alguns líderes influenciou suas errôneas decisões.

Sim, escrevi muito sobre informação cultural, algo que vem marcando a atual cultura americana que parece questionar a validade de se conhecer o passado. Veja um exemplo: se você ler a história sobre as guerras da Rússia contra o Afeganistão no século 19, vai descobrir que já era difícil combater uma civilização que conhece todos os segredos de se esconder nas montanhas. Bem, o presidente George Bush, o pai, provavelmente não leu nenhuma obra dessa natureza antes de iniciar a guerra nos anos 1990. Da mesma forma que Hitler devia desconhecer os relatos de Napoleão sobre a impossibilidade de se viajar para Moscou por terra, vindo da Europa Ocidental, antes da chegada do inverno. Por outro lado, o também presidente americano Roosevelt, durante a 2.ª Guerra, encomendou um detalhado estudo sobre o comportamento dos japoneses para Ruth Benedict, que escreveu um brilhante livro de antropologia cultural, O Crisântemo e a Espada. De uma certa forma, esse livro ajudou os americanos a evitar erros imperdoáveis de conduta com os japoneses, antes e depois da guerra. Conhecer o passado é importante para traçar o futuro.

Diversos historiadores apontam os ataques terroristas contra os americanos em 11 de setembro de 2001 como definidores de um novo curso para a humanidade. O senhor pensa da mesma forma?

Foi algo realmente modificador. Na primeira guerra americana contra o Iraque, sob o governo de Bush pai, havia um confronto direto: a imprensa estava lá e presenciava os combates, as perdas humanas, as conquistas de território. Depois, em setembro de 2001, se percebeu que a guerra perdera a essência de confronto humano direto – o inimigo transformara-se no terrorismo, que podia se personificar em uma nação ou mesmo nos vizinhos do apartamento ao lado. Deixou de ser uma guerra travada por soldados e passou para as mãos dos agentes secretos. Ao mesmo tempo, a guerra globalizou-se; todos podem acompanhá-la pela televisão, pela internet. Há discussões generalizadas sobre o assunto.

Falando agora sobre sua biblioteca, é verdade que ela conta com 50 mil volumes?

Sim, de uma forma geral. Nesse apartamento em Milão, estão apenas 30 mil – o restante está no interior da Itália, onde tenho outra casa. Mas sempre me desfaço de algumas centenas, pois, como disse antes, é preciso fazer uma filtragem.

Por que o senhor impediu sua secretária de catalogá-los?

Porque a forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa. Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios e somente eu, e não uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória, mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em outro, esse livro está perdido para sempre. É melhor comprar outro exemplar (risos).

Um estudioso que também é seu amigo, Marshall Blonsky, escreveu certa vez que existe de um lado Umberto, o famoso romancista, e de outro Eco, professor de semiótica.

E ambos sou eu (risos). Quando escrevo romances, procuro não pensar em minhas pesquisas acadêmicas – por isso, tiro férias. Mesmo assim, leitores e críticos traçam diversas conexões, o que não discuto. Lembro de que, quando escrevia O Pêndulo de Foucault, fiz diversas pesquisas sobre ciência oculta até que, em um determinado momento, elas atingiram tal envergadura que temi uma teorização exagerada no romance. Então, transformei todo o material em um curso sobre ciência oculta, o que foi muito bem-feito.

Por falar em ‘O Pêndulo de Foucault’, comenta-se que o senhor antecipou em muito tempo O Código de Da Vinci, de Dan Brown.

Quem leu meu livro sabe que é verdade. Mas, enquanto são os meus personagens que levam a sério esse ocultismo barato, Dan Brown é quem leva isso a sério e tenta convencer os leitores de que realmente é um assunto a ser considerado. Ou seja, fez uma bela maquiagem. Fomos apresentados neste ano em uma première do Teatro Scala e ele assim se apresentou: “O senhor não me admira, mas eu gosto de seus livros.” Respondi: Não é que eu não goste de você – afinal, eu criei você (risos).

Em seu mais conhecido romance, O Nome da Rosa, há um momento em que se discute se Jesus chegou a sorrir. É possível pensar em senso de humor quando se trata de Deus?

De acordo com Baudelaire, é o Diabo quem tem mais senso de humor (risos). E, se Deus realmente é bem-humorado, é possível entender por que certos homens poderosos agem de determinada maneira. E se ainda a vida é como uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, como Shakespeare apregoa em Macbeth, é preciso ainda mais senso de humor para entender a trajetória da humanidade.

Como foi a exposição no Museu do Louvre, em Paris, da qual o senhor foi curador, no ano passado?

Há quatro anos, o museu reserva um mês para um convidado (Toni Morrison foi escolhida certa vez) organizar o que bem entender. Então, me convidaram e eu respondi que queria fazer algo sobre listas. “Por quê?”, perguntaram. Ora, sempre usei muitas listas em meus romances – até pensei em escrever um ensaio sobre esse hábito. Bem, quando se fala em listas na cultura, normalmente se pensa em literatura. Mas, como se trata de um museu, decidi elaborar uma lista visual e musical, essa sugerida pela direção do Louvre. Assim, tive o privilégio (que não foi oferecido a Dan Brown) de visitar o museu vazio, às terças-feiras, quando está fechado. E pude tocar a bunda da Vênus de Milo (risos) e admirar a Mona Lisa a apenas 20 centímetros de distância.

O senhor esteve duas vezes no Brasil, em 1966 e 1979. Que recordações guarda dessas visitas?

Muitas. A primeira, em São Paulo, onde dei algumas aulas na Faculdade de Arquitetura (da USP), que originaram o livro A Estrutura Ausente. Já na segunda fui acompanhado da família e viajamos de Manaus a Curitiba. Foi maravilhoso. Lembro-me de meu editor na época pedindo para eu ficar para o carnaval e assistir ao desfile das escolas de samba de camarote, o que não pude atender. E também me recordo de imagens fortes, como a da moça que cai em transe em um terreiro (para o qual fui levado por Mario Schenberg) e que reproduzo em O Pêndulo de Foucault.

Ubiratan Brasil, para o Caderno 2 do Estadão. Extraído de DigitalManuscripts

terça-feira, maio 04, 2010

Fragmentos de uma referência nietzscheniana

Fiquei aturdido no dia de hoje com estas palavras (logo abaixo). Elas revelam como nascem “as verdades”. A “verdade” não é algo em si. Apenas o mundo é. O “senso da verdade” nasce com as categorias e explicações que damos ao mundo. O pensamento acorda-nos para a responsabilidade. Para que despertemos de “supostos sonhos metafísicos” e assumamos a nossa integridade. Fantasiar a realidade surge como uma necessidade de acomodação e isso não é viver aquilo que a vida tem de mais autêntico para cada um de nós. Ou seja, ela mesma.

“O mundo é caos. A lógica do mundo está em nós, não no mundo. A forma tem aparência de algo durável, mas a forma é também um acomodamento que inventamos de acordo com a economia de nosso psiquismo. Há uma ilusão em acreditarmos na intransitoriedade da forma ao observarmos a continuidade através das aparências constitucionais. Há pequenas modificações que passam muitas vezes despercebidas. Nós somos constrangidos a formar o conceito de espécie , de forma, de fins e de leis, buscando sempre as identidades pela lei psicológica do menor esforço, como pelo desejo de acomodar o mundo a uma forma adaptável à nossa existência – o mundo que nos seja mais compreensível, em que não sejamos contradição. Este desejo é que explica a nossa ânsia de simplificação, porque temos o instinto de fugir ou de combater o desequilíbrio. Não vamos afirmar daí que o desequilíbrio seja a “causa” das nossas insatisfações, ou pelo menos a “causa” única, e que o desejo de equilíbrio seja o fim humano, embora seja um fim. A luta contra o desequilíbrio, em busca do equilíbrio, quando este é alcançado, gera novo desequilíbrio.

Esse é o aspecto dialético. A razão é uma síntese da atividade dos sentidos, é um acomodamento. (...) Ela e uma simplificação, uma sistematização, uma acentuação, uma interpretação, limitada à perspectiva do momento.

(...)

Possuímos, não há negar, o desejo da verdade. Esse desejo de estabilização é a ânsia de equilíbrio que dá um rumo aos impulsos na luta contra a instabilidade. É ele quem provoca o ímpeto de tornar o mundo verdadeiro, pela supressão do “falso”. A “verdade” não é, portanto, algo que exista, mas algo incriado que desejamos obter, apreender, tomar. É uma direção, um destino de nosso desejo de potencializarão, de realização de nossa vontade
[1]

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: terça-feira, 4 de maio de 2010, 19:10:37.

[1] NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência – parte I. São Paulo: Editora Escala. 2003. pp.30-32

sábado, maio 01, 2010

"Eis o Homem 2"

Ouvi-me! Eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com os outros[1].

Tenho conhecimento do meu destino. Sei que algum dia o meu nome estará relacionado, em recordação, a algo de terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão de consciências, a uma sentença definitiva pronunciada contra tudo aquilo que se acreditava, exigi santificava até então. Eu não sou um homem, sou uma dinamite. E, não obstante tudo isso, não tenho rompantes de fundador de religiões; as religiões são coisas de gentalha; eu sinto a necessidade de lavar as mãos depois de ter tocado as de um homem religioso... Não quero “crentes”; acredito que sou demasiado mau para crer em mim mesmo; eu nunca falo às massas... tenho grande medo de ser, algum dia, santificado; desse modo, compreenderão por que eu publico antes este livro: deve ele evitar que se abuse do meu nome... Não quero ser um santo, prefiro ser um palhaço... Talvez seja eu um palhaço... Todavia, ou talvez não todavia – porque até agora não há nada tão mentiroso quanto os santos – eu falo a verdade[2].

Nietzsche é um dos pensadores mais autênticos que já existiram. É preciso ter nervos de aço para fruí-lo. O imaturo, perder-se-á; o religioso, execrar-lo-á; os desconfiados, abandoná-lo-ão; os sequiosos de poesia e verdade, amá-lo-ão. Ecce Homo parece, antes de tudo, ser um acerto de contas de Nietzsche com Nietzsche. Ousado, nervoso, irônico, original, trêmulo, sóbrio. O livro é uma martelada de um sátiro na catedral das convenções do Mundo Ocidental com todo o seu rigor burguês e de moral decadente. Nietzsche é um visionário. Já previa o que seria o século XX. Não coube em seu tempo. O rio de suas palavras transbordaram na planície da história. Acima de tudo, Ecce Homo é de leitura imensamente agradável. Uma vez começada a leitura, empreendemos uma excursão até o fim da obra sem pestanejar, sem nos cansar, sem nos fatigarmos. Sua energia é uma força propulsora.

Achei uma excelente resenha sobre a obra. Segue:

Nietzsche era um romântico. Mais tarde seria considerado um divisor de águas na filosofia. São várias as classificações à Nietzsche, Martir Heidegger, por sua vez o identificou como o último dos filósofos metafísicos e colocou o divisor de águas em si mesmo, dizendo ter sido ele o primeiro filósofo não-metafísico da história da filosofia ocidental.

Max Weber, de sua parte disse: “O mundo onde nós existimos em termos de pensamento é um mundo cunhado pelas figuras de Marx e Nietzsche.”

É fato que Nietzsche foi um dos mais importantes pensadores alemães de todos os tempos e estendeu a área de suas influências para muito além da filosofia, adentrando a literatura, a poesia, e todos os âmbitos das belas-artes. Influenciou movimentos que vão do naturalismo alemão ao modernismo, e escritores tão diferentes quanto Heinrich e Thomas Mann. Com sua obra quebradiça e aparentemente fragmentária, que no fundo adquire uma vitalidade orgânica que lhe dá unidade através do aforismo. Nietzsche mostrou, desde o início, que todo artista genuíno tem, de uma maneira ou de outra, conspurcar o próprio ninho. E Nietzsche, que nasceu cercado de moral por todos os lados, fez da moral o alvo de seus combates e considerou sua guerra pessoal contra ela sua maior vitória.

Nietzsche viveu sobre a navalha da interpretação. Mal interpretado como filósofo, já em função de seu estilo poético, já devido à exploração de certos aspectos de seu pensamento – mal versados pela irmã e pelo nazismo – Nietzsche foi, na realidade, um dos críticos mais ferozes da religião, da moral e da tradição filosófica do Ocidente.

Mas, sem dúvida, Nietzsche é o maior dos pensadores ocidentais para mim, e muitos fazem coro comigo. Mesmo grandes pensadores e escritores célebres apontam Nietzsche como o maior dos pensadores de todos os tempos.

Extraído DAQUI

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 1 de maio de 2010, 12:15:56


[1] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Sao Paulo: Martin Claret. 2002. p. 31

[2] Idem, p. 117

[3] Acessado em 1 de maio de 2010. Disponível em: http://www.lendo.org/ecce-homo-nietzche-muito-alem-da-filosofia/