
Vivemos agora numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o que veremos. Ligamos a TV motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de opinião. Isso influi inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede, de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura seu olhar no ato criativo.
Todo esse processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em 1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual canibalizador que ocorre no interior da casa. Induzidos por esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano. Outrora havia uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e professores, artistas e escritores.
Agora, a indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais, integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade. Em A doce vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam rumo à areia. O olho olha aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e a interpelasse no fundo da alma.
É este olho crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã - o entretenimento televisivo centrado do estímulo ao consumismo.
Por Frei Betto
Extraído do sítio ADITAL.
* A imagem foi extraída do filme 1984, baseado no livro de George Orwell
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