Hoje cedo, ao acordar por volta de 5:30 hs da manhã, escutei meio descrente determinada jornalista anunciar que Donald Trump havia sido eleito presidente dos Estados Unidos da América. Passada a primeira impressão, voltei à normalidade. Sabia que essa era uma possibilidade, um acontecimento potencializável na atual conjuntura. A vitória de Trump, contrariando as previsões da pesquisas, representa um claro aviso de incêndio. É a demonstração mais exata de uma onda que rola pesadamente, causando impactos antes impensados por onde quer que passe. Há alguns meses atrás, os ingleses, para incredulidade geral, optaram por sair da União Europeia. O mundo ficou perguntando: "O que aconteceu?" Talvez esta não seja a pergunta mais precisa. É preciso mudá-la, redimensioná-la para: "Por que isso acontece?" Uma vez respondida esta pergunta, talvez cheguemos a uma iluminação sobre a vitória do fanfarrão apocalíptico Donald Trump.
Desde o final dos anos oitenta, com o fortalecimento das políticas neoliberais, o mundo entrou em um novo ciclo. O avanço da ofensiva neoliberal permitiu que mudanças contundentes transformassem completamente o tabuleiro geopolítico do planeta. O capitalismo nessa fase, tornou-se ainda mais concentrado, mais especulativo, enriquecendo os grandes oligopólios e massificando a pobreza. Tornando-a cada vez mais presente em vários países. Os países que implantaram o "estado de bem estar social" após a Segunda Guerra Mundial, tiveram que se desmobilizar socialmente. Esse movimento veio como um rolo compressor, gerando crises regionais e redundando no colapso vivenciado nos países centrais em 2008.
Além desse fato, é importante entender que o neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, restrito às questões de mercado. O neoliberalismo é uma força ideológica que criou um abismo entre o espaço público e o privado, fazendo diminuir a importância daquele e recrudescendo a importância deste. O público e o privado passaram a ser realidades que não se encontram, posto que valores como a meritocracia, o individualismo, a falta de solidariedade amplificaram-se e o esvaziamento das autoridades, da ideia de uma verdade objetiva, passaram a ser realidades plenas. O sujeito passou a experimentar a potência incontrolável do consumo e do lazer-coleção a qualquer custo. As questões mais gerais, que apontam para a vida coletiva, deixaram de ter a sua importância.
Esse fenômeno também passou pela ideia de "política". Preso ao mundo das aparências, o sujeito que vive na sociedade neoliberal não debate, não conversa sobre determinados temas. Ele não enxerga mais sentido nisso. Um niilismo globalizante passou a fazer parte do sistema que estrutura o seu mundo. Preso à força das imagens e da massificação das informações, o sujeito médio acha-se bem informado, sem saber que vive preso a uma ditadura uniformizante, que acaba por erigir uma sensação de que está consciente sobre si e sobre o mundo, não necessitando lutar por algo que envolva a coletividade.
Ora, é preciso entender como esse movimento se articula em um país como os Estados Unidos, que ainda não superaram determinados temas. Ainda há bastante paranoia na sociedade estadunidense - medo do resto mundo, como se todos estivessem contra eles; o racismo, a xenofobia etc. Só que agora, a globalização neoliberal trouxe problemas que outrora eram inexistentes. O sujeito médio daquela sociedade percebeu que algumas mudanças se efetivaram. Apesar da administração Obama ter reduzido o número de desempregados, houve um empobrecimento do país. Os Estados Unidos apesar de serem uma potência, já não estão sozinhos. Há outros países importantes no xadrez político. A China é um gigante econômico. A Rússia é uma potência bélica, herdeira do arsenal militar e atômico da União Soviética. Os governos democratas de Obama e Clinton não agradaram a esse sujeito que, geralmente, é religioso, conservador, averso a movimentos de esquerda; à imigração, ao modo de fazer política dos democratas. O lema de Trump ("Fazer a América grande novamente"), não foi escolhido de forma gratuita. Ele apontava justamente para essa fatia insatisfeita da população do país. Trump sabia o que dizia - e como dizia.
O português Boaventura de Sousa Santos afirma algo necessário sobre esse fato:
Na lógica da ideologia neoliberal dominante, a política, enquanto escolha entre opções ideológicas diferentes, tende a desaparecer. Como não há alternativa, os governantes não necessitam do consenso dos cidadãos, basta-lhes a resignação. A democracia de baixíssima intensidade consiste na conversão de diferenças ideológicas em diferenças de qualquer outro tipo que garantam o espetáculo da alternância. Surgem assim novas polarizações que se afirmam como as duas faces do sistema neoliberal: a face do sistema e a face do anti-sistema.
Trump é a materialização do anti-sistema, da desagregação, da implosão do establishment político. Ele encarnou durante a campanha o jocoso, o ridículo, o farsesco, o esdrúxulo e contra a isso não há defesas. Suas afirmações misóginas, xenófobas, racistas, preconceituosas, repletas de falta de bom senso não foram verbalizadas gratuitamente. Para que o neoliberalismo se robusteça ainda mais, como diz Boaventura, é necessário que a ideia anti-sistêmica, anti-política, também cresça como uma contraparte necessária do sistema. O radicalismo é uma arma poderosa e eficaz.
Este é um fenômeno muito comum em tempos de crise. Por isso, a ideia "de aviso de incêndio". A história já mostrou esse fato com ascensão de Hitler. Em momentos de crise, o discurso que eleva o radical, o inusitado, a palavra que aponta para a curva do anti-sistema ganha forte ressonância. O capitalismo global busca se organizar, vive a sua crise, sua agonia. Seu modelo excludente precisa de radicalismos para resolver as crises cíclicas. Seja nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina com suas democracias frágeis ou outro lugar do planeta, nota-se este fenômeno.
Nas eleições municipais ocorridas no mês passado aqui no Brasil, houve também um fortalecimento de candidatos muito parecidos com Trump. É o caso de João Doria, um milionário sem experiência política, em São Paulo. Um político jovem, experiente, com bons antecedentes, com uma inteligência viva como o Hadadd não conseguiu segurar a força do discurso anti-política de Doria. A esquerda tomou uma lavada dos candidatos conservadores com discursos anti-política, mas que representam "a velha política".
Penso que caso a eleição presidenciável fosse hoje no Brasil, uma surpresa também poderia brotar em nosso meio. É necessário observar figuras "perigosas" e esdrúxulas como Bolsonaro. O feitiço que esse tipo de candidato gera deve ser entendido e não desprezado. Afinal, a história já mostrou - e 2016 tem sido uma prova - que quanto mais se encarna um discurso empedernido, anti-minorias, mas mirando determinados temas - elevando alguns e criminalizando outros - maiores são as chances de vitória. Trump soube usar muito bem isso ao seu favor. E aí está posto o resultado para um mundo incrédulo e cínico.
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