sexta-feira, agosto 24, 2007

Pequeno Comentário à Divina Comédia de Dante

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2003, pp. 430.

Li há algum tempo atrás A Divina Comédia de Dante Alighieri. Dante é um escritor fascinante. A Divina Comédia é, simplesmente, inominável. O original é um poema matematicamente harmônico. A versão que li era em prosa. Mesmo assim, não perdi de forma alguma o encanto pelo poder da ficção elevada. Dante descreve com uma beleza singular fatos atinentes a uma experiência que possivelmente vivenciara. Não se tem certeza se tais fatos são concretos, se foram realidades palpáveis ou se são devaneios contemplativos de sua arte poética. Faz-me lembrar da afirmação do apóstolo Paulo: “Se no espírito ou no corpo, não sei” – quando se refere às experiências que tivera. O fato é que Dante nos deixa entender que se trata de um evento real. A sua excursão pelo Inferno, Purgatório e Paraíso traça um caminho – me parece – de auto-reflexão para o escritor. Os três estágios se enunciam com muita vivacidade, o que deixa a entender que se trata de uma jornada catártica.
A Divina Comédia é uma obra de arte que celebra o gênio da humanidade – assim como o é a Monalisa, A Capela Sixtina, as peças de Bach, Beethoven e Mozart, as pinceladas de Monet, de Rembrandt e Van Gogh; o estilo seco de Graciliano Ramos ou a genialidade de Borges. É importante salientar que Dante possui em seu trabalho as concepções imediatas do seu tempo. Ou seja, é o momento histórico se consagrando como universal. As realidades imediatas se manifestando na obra do escritor. Seguindo esta linha argumentativa, pode se verificar que a Divina Comédia funciona como um mapa ideológico do pensamento do homem da Idade Média. Escrito em 14 anos – de 1.307 a 1.321, ano da morte de Dante – o livro traduz as preocupações da concepção cristã medieval. Em alguns momentos é perceptível a filosofia de Aquino, de Aristóteles e as concepções dogmáticas da Igreja Católica que são defendidas com arte. Grandes poetas do mundo greco-romano são citados. Virgílio, seu condutor pelo Inferno e o Purgatório; Catão, Ovídio entre outros e o pensamento de Cícero.
Tal fato traduz a influência básica do pensamento dos antigos na educação do homem da Idade Média. Ou poderíamos afirmar que a Divina Comédia é um livro de Vanguarda na Idade Medieval, pelo fato de os movimentos e mudanças porque passa a Europa iria fazer ruir a catedral de pensamento construída durante 1000 anos. Iria fazer surgir o Renascimento que fez uma forte e sintomática releitura do legado cultural da Grécia Antiga e de Roma, como sucessora do pensamento da Antigüidade.
A obra de Dante foi consagrada como sendo um mapa fiel daquilo que se convenciona como sendo o destino final dos homens. A narração de A Divina Comédia sobre o Inferno, Purgatório e o Paraíso praticamente se inseriram na mentalidade do mundo Ocidental. Tornaram-se modelos – principalmente o Inferno. A referência para todos aqueles que pensam em mundo espiritual numa perspectiva cristã. Suas teses são defendidas por uma espécie de inconsciente coletivo. Mesmo não se sendo cristão e nem afeito aos temas mais gerais da Bíblia, não há como se ter uma noção derivada do pensamento de Alighieri. Suas idéias sobre castigo eterno, demônios e outros seres infernais permearam a cultura do Ocidente.
Do ponto de uma análise pessoal, julgo que dos três livros o que mais me excitou foi o Inferno. Pelo que me consta foi o livro que Dante mais demorou escrever. Dante utiliza-se de um veio descritivo, que faz vibrar e atentar àquele que se impregna com seus conceitos altos. Descendo por meio de degrau se chega ao fundo do Inferno. Cada degrau descreve os castigos que possuem características eminentemente geográficas. É como se no Inferno houvesse uma organização, um nomos que funciona como uma antítese ao que costumeiramente se convenciona. A sua geografia é cônica, espiralada e em cada estágio anuncia um castigo para o castigado. Há originalidade poética em cada página. No Canto III há estas palavras que de início me prendeu e me fez ler e reler diversas vezes:

“Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi Justiça que inspirou o meu Autor; fui feito por Poderes Divinais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu, eterno, produto. Abandonai toda esperança, ó vós que entrais!”
Estas palavras, em letreiro escuro, vi escritas por cima de uma porta. Eu disse: “Mestre, o sentido delas me é obscuro”. (...) Tomando-me a mão [Virgílio] amigavelmente, animando-me com seus gestos, fez-me entrar no misterioso ambiente. Ali soavam queixas e lamentos; enchiam o ar, em meio à escuridão, e meteram-me medo por uns momentos. Diversas línguas, muita murmuração, gemidos, brados de ira e de dor, urros, sons de mãos chocando-se contra o corpo – tudo isso compunha um turbilhão que girava continuamente, como areia revolvida por tufão. Tal horror espicaçava-me a mente (...) Meus olhos fitaram uma bandeira que, tremulando, bem veloz corria, e a sua agitação não cessava. Uma multidão compacta a seguia: difícil crer que a morte arrebataria um dia tanta gente de entre os vivos. Já havia reconhecido alguns vultos. De repente, olhando, distingui a sombra daquele que fez a grande renúncia, torpemente. Logo compreendi se tratava da facção das almas envilecidas, que os mais detestam e que Deus repele. As desgraçadas – sempre estavam nuas, e as torturavam as aguilhoadas de vespas e tavões. As lágrimas regavam seus rostos, misturadas com sangue; e, caindo-lhes aos pés, serviam de alimento a abjetos vermes (pp. 17 e 18).

O Purgatório seria, para mim, em ordem de importância, o segundo livro mais interessante dos três. O Paraíso seria, em termos de significação, o menos interessante para mim. A sua narrativa abstrata se baseia mais em discursos de Beatriz, a musa de Dante, que substitui Virgílio nas portas do Paraíso, por este ser pagão.
De certa forma, A Divina Comédia é um dos livros mais belos e mais excitantes que já li em toda a minha vida. Ele possui uma matéria imperene. Sofisticação clássica. Uma estrutura grandiloquente, pomposa, típico das obras imortais. A sua leitura foi para mim profundamente profícua.

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