quinta-feira, abril 19, 2012

“…su cadáver estava lleno de mundo” - por Rubem Alves

Recordo-me que li este texto nos idos de 2003. A primeira vez que o li, fui pertubado pela reflexão contudente e sensata que ele carrega. Estava em um seminário protestante. Estudava para ser um clérigo e após várias leituras que vinha fazendo, cheguei a algumas reflexões. Fui sendo libertado pelo valor da lógica. "O menor contato com lógica, dissolve os raciocínios falhos" (Victor Hugo).  Mas este texto possui um valor sentimental. Quando o li, as minhas convicções e suspeições mais profundas foram estremecidas. Todas vezes que volto a lê-lo, fico com a impressão que esta é uma reflexão com um corte metaliguístico. Encho-me de um saudosismo existencial. Ele fala de mim. É como se ele explicasse a minha jornada. A minha caminhada de ente apaixonado. Mas não se tratava de uma paixão consequente. Eu, simplesmente, não sabia o porquê de estar apaixonado. O peso desse texto passou por cima dos meus eflúvios sentimentais e me deixou em posição indigesta.

Hoje, olhando para trás, não indigno-me por tudo o que vivi. Muito pelo contrário, penso que aquilo foi necessário para que eu aprendesse alguns valores fundamentais. A história é a maior mestra que existe. Olhemos para ela e encontraremos as respostas mais sensatas para aquilo que fomos, somos e seremos. Como diz Rubem Alves: "Caminhante, não existem caminhos. Os caminhos se fazem ao caminhar".

Abaixo, segue o texto de grande valor sentimetal:

“…su cadáver estava lleno de mundo” 

Por Rubem Alves

Eu era jovem e andava por um caminho plano e seguro. Todos os seus detalhes me haviam sido ensinados. Ele estava todo sinalizado com tabuletas para evitar que alguém se perdesse. Em algumas tabuletas se liam “certezas”. Em outras, “proibições”. Certezas e proibições têm importantes funções psicológicas. As certezas nos dizem que já encontramos a verdade. Quem já encontrou a verdade deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranqüilizante saber-se possuidor da verdade. Eu vivia tranqüilo. As proibições, por sua vez, nos dizem o que não se pode fazer. Sabendo-se o que não se pode fazer somos libertados da terrível necessidade de tomar decisões. As decisões são necessárias quando nos defrontamos com uma encruzilhada, bifurcação, dois caminhos à nossa frente. Posso tomar o caminho da direita, posso tomar o caminho da esquerda. Mas não há nenhuma tabuleta indicando qual deles conduz ao fim desejado. Toda encruzilhada nos coloca numa situação de incerteza. E a incerteza produz ansiedade: é preciso decidir, sem saber ao certo… Mas se existe uma tabuleta num dos caminhos com a palavra “Proibido”, a dúvida se resolve. A proibição decide por mim. Livro-me, assim, da terrível condição de ser um ser moral – que é, precisamente, a condição de tomar decisões sem ter proibições que decidam por mim. Eu não tinha conflitos morais porque as proibições já haviam tomado as decisões por mim. Assim caminhava eu, dezenove anos, pelo caminho das certezas e proibições, tranqüilo, pelo caminho que levava aos céus. Pois os céus não são o destino dos homens? Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições, um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia.

Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar andando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele, e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia, em busca dos céus. Olhando bem vi que naquele mundo não havia caminhos. “Caminhante, não há caminhos! Os caminhos se fazem ao caminhar!” E também não havia nem certezas e nem proibições. O que havia eram horizontes, direções, possibilidades, liberdade. E o mundo muito bonito. Me convidava…

O estranho não disse nada. Mas os seus olhos apontaram. E os meus olhos se abriram. Experimentei então os medos e os risos das dúvidas. Pois não é isso que experimenta o alpinista que escala o Aconcágua? O risco da morte bem vale a emoção dos desafios! Os que não suportam dúvidas jamais escalam picos; eles ficam nas planícies andando pelos caminhos conhecidos e seguros. Experimentei a alegria e o sofrimento de ter de tomar decisões sem que ninguém me desse ordens ou proibições, tendo apenas o meu próprio coração como conselheiro. Troquei o caminho que leva aos céus pelos muitos caminhos que levam ao mundo. E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições… Tudo por causa do olhar daquele homem…

Ele, o estranho com que me encontrei, viveu aqui em Campinas. E posso dizer que a minha vida se divide em dois períodos: antes de conhecê-lo, depois de conhecê-lo. O seu nome era Richard Shaull. Lembro-me perfeitamente bem: encontramo-nos pela primeira vez na avenida Brasil, próximo ao cruzamento com a rua Frei Antônio de Pádua. Era o ano de 1953. As casas eram poucas, os eucaliptos eram muitos. Não falava português; falava espanhol. Havia sido expulso da Colômbia, por ordens da hierarquia católica. Uma igreja construída sobre verdades e proibições não pode suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. Viera então para o Brasil como professor do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, 1.200. Se me perguntarem: “O que foi que você aprendeu com ele?” – a resposta é simples: “Dick Shaull me ensinou a pensar.” Lembro-me de um prova que fiz em uma de suas disciplinas. Eu estava certo de que teria 10, porque a prova tinha sido completa, perfeita. Mas ganhei um 9.0. Fui reclamar. Aleguei que havia escrito precisamente o que ele havia dito nas aulas. Ele me respondeu: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento…”

Profetas não são videntes que anunciam um futuro que vai acontecer. Profetas são poetas que desenham um futuro que pode acontecer. Profetas sugerem um caminho. Richard Shaull falava de futuros com que nós nunca havíamos sonhado. Ele via o que ninguém mais estava vendo. Em seis meses ele já sabia muito mais sobre o Brasil do que eu. Foi ele que me apresentou a um catolicismo inteligente. Sugeriu que eu lesse A Descoberta do Outro e Lições de Abismo, livros dos anos de lucidez de Gustavo Corção. Foi através dele que fiquei sabendo dos movimentos de renovação que silenciosamente fermentavam dentro da Igreja Católica, a renovação bíblica, a renovação litúrgica, movimentos esses que haveriam de influenciar profundamente o Papa João XXIII – de saudosíssima memória! – e o Concílio do Vaticano II.

Pensador profundamente mergulhado na tradição da Reforma Protestante (celebrada no dia 31 de outubro, data em que Lutero afixou suas “95 Teses”, às portas da catedral de Wittenberg), ele nos ensinou a lição fundamental de teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós. Não há nada que tenhamos de fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da terra, que é o nosso destino…”

Shaull tinha visões de um mundo diferente. Foi o primeiro que me falou da responsabilidade social dos cristãos. Se, para a igreja tradicional o mundo era o lugar da perdição do qual os cristãos deveriam fugir – foi isso que os monges fizeram –, para Shaull o mundo era o lugar da nossa vocação. É preciso estar presente no mundo para que ele se renove, ele dizia. Essa palavra, “presença”: como era importante no seu pensamento! E foi assim que ele liderou um projeto impensável: um grupo de seminaristas, durante as férias, trabalhando como operários numa fábrica na Vila Anastácio, em São Paulo. A inspiração para esse projeto veio de um movimento católico, os “padres operários” que, na França, resolveram parar de esperar que os trabalhadores fossem à igreja, e foram, eles mesmos, até onde eles viviam: as fábricas. Sem o saber, Shaull estava lançando as sementes da “teologia da libertação”.

Cerca de 10 anos antes do Concílio do Vaticano II ele já sonhava com o ecumenismo. Ecumenismo: essa palavra era maldita tanto para protestantes quanto católicos. Para os católicos, donos da verdade, maldita porque os protestantes eram apóstatas. Para os protestantes, donos da verdade, maldita porque os católicos eram idólatras. Inimigos irreconciliáveis, como poderiam católicos e protestantes se assentar para partilhar de uma fé comum e do mesmo ritual eucarístico? Pois o Shaull, andando na direção contrária como convém a um profeta, resolveu transgredir o proibido: organizou encontros secretos com os dominicanos de São Paulo e nos convidou, um pequeno grupo de seminaristas, a participar da conspiração. Sabíamos que se a conspiração fosse descoberta a punição seria certa: seríamos expulsos do seminário. E assim, com uma mistura de medo e de alegria, lá íamos nós com o Shaull, para uma experiência com que jamais havíamos sonhado. Foi bom descobrir que os católicos eram pessoas inteligentes, amantes da Bíblia, fraternas… Até então não sabíamos disso!

Não conheço ninguém que em tão curto espaço de tempo tenha semeado tanto. Não é possível contar tudo. Só posso dizer que um homem que anda na direção contrária não o faz impunemente. Os profetas são seres malditos. Nietzsche, um outro que caminhou na direção contrária, sabia o preço que se paga por ver o que os outros não vêem. Dizia ele: “Os fariseus têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”. Aqueles que não vêem odeiam aqueles que vêem. Richard Shaull foi crucificado. As igrejas não o suportaram: expulso da Colômbia, pelos católicos, expulso do Brasil, pelos protestantes…

Agora ele ficou encantado. Partiu. É certo que plantarei uma árvore para ele no meu lugarzinho solitário, no alto de um montanha, à beira de um vulcão, junto com as árvores de outros conspiradores… No silêncio, quando não houver ninguém por perto, as árvores conversarão entre si…

…“Sejamos simples e calmos/ como os regatos e as árvores,/ E Deus amar-nos-á fazendo de nós/ Belos como as árvores e os regatos/ E dar-nos-á verdor na sua primavera,/ E um rio aonde ir ter quando acabemos!” Alberto Caieiro.

* “…su cadáver estava lleno de mundo” . verso de César Vallejo

Um comentário:

Anônimo disse...

o caminante sem caminho é do antonio machado, carlinus! abraço