sexta-feira, junho 05, 2015

Silas Malafaia e as certezas de uma cor só

"Todo homem irrefletido acha que somente a vontade é atuante; que querer é algo simples, puramente dado, não deduzível, em si mesmo inteligível. Está convencido de que quando faz algo, quando desfecha um golpe, por exemplo, é ele que golpeia, e que golpeou porque quis fazê-lo". 

Nietzsche, in A Gaia Ciência, Aforismo 127

Como deixei transparecer em outras postagens incipientes, já engrossei os filões do evangelicalismo. Já fui ao púlpito, lugar da prédica, e enchi os pulmões de ar a fim de publicizar as minhas certezas, tidas como honestas e inolvidáveis por todos os crentes. Dei aula na escola dominical, lugar de formação, de consolidação das premissas absolutas, que não podem ser contraditadas, posto que a verdade não é uma categoria relativa, capaz de ser posta à prova no mundo da religião.

E acabei aprendendo uma coisa: por mais que se tenha uma visão flexível em torno de determinados temas; por mais que se busque uma relação "frouxa" e de desobrigação com os pressupostos do absoluto, uma vez que você o abrace, essas convicções estreitarão a capacidade de entender a complexidade da totalidade que move o universo. O crente não sofre crises filosóficas, pois a verdade não é um problema para ele. Em seu interior mora a certeza, a fé, que é a capacidade de se acreditar em algo que não se ver, mesmo que não se tenha provas acerca disso. Assentado nessa convicção que é confirmada apenas pela sua experiência; pelos fiapos frágeis da experimentação que emanam dos sentidos, o crente contradiz tudo aquilo que não caiba ou que não possua as tonalidades pictóricas de sua linguagem. Para tornar o imaterial, o intangível em algo claro ou que se estribe na sedimentação de algo possível ou visualizável, cria-se o dogma. O dogma é a tentativa de tornar o imaterial, a ausência, em algo factível, que estrutura o absurdo. 

Pensemos a seguinte situação hipotética, para entendermos como o mundo do religioso é sedimentado. Imaginemos que em um determinado dia, uma força impensável, contrariando as leis naturais surja para algumas pessoas e segrede: "Essa é a minha luz, a minha glória azulácea. De hoje em diante, vestirás o azul. E todo aquele que não vestir azul me negará. E todo aquele me negar estará do lado do mal e não terás relação com ele". Ao que os seres privilegiados e estupefatos pela visão, poderiam indagar: "E o que faremos a partir de agora?" A criatura sobrenatural diria em voz cavernosa do meio da fumaça: "Vai e prega que pelo azul se viverá e qualquer outra cor não será tolerada". 

Claro, criei uma ficção absurda para ilustrar o quanto as religiões são estreitas em suas certezas dicotômicas. Para o religioso, o mundo está dividido entre o mundo dele ( o caminho certo, da vida, reto) e o caminho dos outros (o caminho da perdição, do pecado). Assim como na historieta que criei o  azul seria o absoluto e tudo aquilo que não tivesse essa cor (o vermelho, o amarelo, o branco, o roxo, o marrom, o preto) seria visto como a anti-cor, da mesma forma acontece com o mundo encerrado nos preconceitos da religião. 

O direito a ter uma religião é sustentado pela Constituição. Isso é inegável. Todos os sujeitos têm o direito a professar uma fé, desde que esta não ultrapasse os limites do bom senso e seja posta como aquela está acima de todas as demais - o que quase sempre acontece em nosso país. Outra coisa é a sensibilidade oriunda de uma espiritualidade salutar. Isso independe da religião. Para ser espiritual, uma prática saudável que pode ser cultivada por todo ser humano, não é necessário ser religioso. Ser espiritual é ser capaz de notar a beleza posta nas pequenas coisas. Ser espiritual é enxergar no ser humano um outro como a si mesmo. Acredito que verdadeiramente esteja aí o sentido do religare (religião), ideia que nos "conecta" ao numinoso,  ao halo misterioso que envolve todas as coisas. 

Ora, escrevo essas palavras por causa da propaganda de O Boticário que suscitou tanto ódio esta semana nos religiosos empedernidos de plantão, defensores de que "o azul" é a única cor que existe no mundo. E que qualquer outra tentativa de colorir a realidade com outra cor seja nocivo e pecaminoso. Para Silas Malafaia, um bravateiro de plantão, sujeito que "arrota" as suas convicções dubitáveis e cegas, obrigando-nos a sentir o mal-cheiro do jorro de suas ideias conservadoras, só existe uma forma de se relacionar no mundo. Segundo ele, a família é milenar. Talvez ele precisasse ler uma pouco de sociologia ou antropologia para perceber que a ideia de família é construída socialmente. Que há tribos na África, na Oceania ou mesmo em meio aos índios brasileiros, que a ideia de "papai" e "mamãe" (uma concepção burguesa) é subvertida. Mas, quando ele diz que "a família é milenar", sei, está apontando para a bíblia, pois lá, segundo ele, estão os verdadeiros modelos a serem seguidos. Ou seja, esquece ele que a bíblia foi escrita em um contexto social e histórico em que determinada cultura, a dos judeus, possuía as suas especificidades. Com isso, o caricato polemista (não somente ele) quando leva em conta o modelo preconizado pelos judeus, acaba por absolutizar o modus operandis de uma cultura em detrimento de outras. E, assim, confirma-se a nossa tese. 

A fossilização da história é o grande problema do religioso. Ele olha para determinados aspectos. Perscruta, avalia, tira conclusões e afirma, relegando a multiplicidade de forma do mundo: "Tudo agora será roxo, cinza ou azul", como quer nos fazer crer o senhor Silas Mala-faia e sua trupe acostumada a enxergar o mundo de forma monocromática. Triste! 

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