
Terminei há alguns dias a leitura de Recordação da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. Certamente esse livro se inscreveu como uma das coisas mais fantásticas que já li. O livro retrata o período em que o escritor ficou preso na fortaleza de Omsk, Sibéria, de 1849 a 1854. O escritor teve a sua pena comutada após ter sido condenado à morte por causa de atividades políticas suspeitas. No momento da execução, as forças imperiais mudaram os intentos. Mandaram-no para a distante e inóspita Sibéria, uma das regiões mais terríveis para se sobreviver no planeta. Curiosa são as palavras das páginas iniciais proferidas pelo escritor: "A melhor definição que posso dar de um homem é a de que se trata de um ser que se habitua a tudo".
É partindo da observação, dessa adaptabilidade ao funesto, que Dostoiévski faz a sua análise quase clínica. Ele cria uma narrativa que funde realismo e ficção. Esculpe uma personagem estranha chamada Alieksandr Pietróvitch. Descreve com enorme imparcialidade a rotina da cadeia. Fala sobre os animais. Dos oficiais. De como os presos eram dados a extravagâncias, mesmo vivendo em um ambiente de privações e severidades. De como aconteciam as punições, ou seja, as penas de até 4 mil chibatadas. As humilhações a que os prisioneiros eram submetidas. A comida terrível, coalhada de barata. A vocação artística de muito dos prisioneiros. A maldade de um certo major que acaba na bancarrota. O trabalho forçado. As planícies imensas da Sibéria. O frio fulminante. O banho na sauna coletiva. As palavras de Dostoiévski no que tange a esse evento são fantásticas:

E é justamente nesse cenário de "caldeiras do inferno" que estão aglutinados os "mortos". Quem era condenado a viver naquele espaço experimentava a não-vida; a inapetência completa pelas coisas do existir. Os prisioneiros eram levados para aquele lugar para serem humilhados. A menor falta de estabilidade psicológica, destroçava o indivíduo. Voltava-se dali com a impressão de que se esteve Hades.
Dostoiévski tece a partir desse quadro melancólico uma das mais belas narrativas de todos os tempos. Ele traceja os perfis psicológicos de certos sujeitos que lhe chamaram a atenção de forma destacada. Costura ações. Descreve aquilo que a cadeia fez com cada um daqueles homens. É ali que ele encontra um combustível denso para a literatura. Suas personagens são tipos escuros, que ora vivem nas sombras, ora querem vir à luz. Talvez tenha sido ali que ele tenha encontrado uma matéria densa para os seus romances posteriores.
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Sibéria. O que tem de linda, tem de terrível |
Isso me faz lembrar do filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, livro este tão brilhante e genial quanto o do Dostoiévski - também revelador da experiência infausta da masmorra do presídio. Nas cenas finais do filme, Carlos Vereza, que fazia o papel diz Graciliano, diz quando estava para sair da cadeia: "Obrigado! Os senhores me deram uma matéria formidável para um livro!" O burocrata da Casa de Correção, aturdido, diz em desespero: "A culpa é desses cavalos que mandam gente que sabe ler para cá!"
Dostoiévski fez anotações escrupulosas e em 1861, publicou esse livro que é um divisor de águas em sua obra. Recordação da Casa dos mortos do ponto onde estar é uma fundamental para se entender os livros da fase madura do escritor russo - O idiota, Os demônios, Crime e Castigo e Os irmãos Karamazovi. O livro possui um estilo leve, corrediço, mas de uma densidade provocante, com a montagem de quadros psicológicos grandiosos. Na prisão de Omsk, estava um substrato, uma representação, um quadro amostral da escória da Rússia. E daí surge a frase inicial que coloquei como epígrafe desses devaneios: em meio à selvageria e à barbárie é preciso ter esperança, ter uma planície luminosa de esperança dentro de si para não submergir ante o caos contingente. Dostoiévski esteve na casa dos mortos e saiu de lá com uma matéria humana formidável para escrever grandes livros.
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