quarta-feira, fevereiro 13, 2013

A recordação inevitável da casa dos mortos

"O homem que não tiver um anseio ou uma esperança acaba, no desespero, virando um monstro...".

Terminei há alguns dias a leitura de Recordação da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. Certamente esse livro se inscreveu como uma das coisas mais fantásticas que já li. O livro retrata o período em que o escritor ficou preso na fortaleza de Omsk, Sibéria, de 1849 a 1854. O escritor teve a sua pena comutada após ter sido condenado à morte por causa de atividades políticas suspeitas. No momento da execução, as forças imperiais mudaram os intentos. Mandaram-no para a distante e inóspita Sibéria, uma das regiões mais terríveis para se sobreviver no planeta. Curiosa são as palavras das páginas iniciais proferidas pelo escritor: "A melhor definição que posso dar de um homem é a de que se trata de um ser que se habitua a tudo".

É partindo da observação, dessa adaptabilidade ao funesto, que Dostoiévski faz a sua análise quase clínica. Ele cria uma narrativa que funde realismo e ficção. Esculpe uma personagem estranha chamada Alieksandr Pietróvitch. Descreve com enorme imparcialidade a rotina da cadeia. Fala sobre os animais. Dos oficiais. De como os presos eram dados a extravagâncias, mesmo vivendo em um ambiente de privações e severidades. De como aconteciam as punições, ou seja, as penas de até 4 mil chibatadas. As humilhações a que os prisioneiros eram submetidas. A comida terrível, coalhada de barata. A vocação artística de muito dos prisioneiros. A maldade de um certo major que acaba na bancarrota. O trabalho forçado. As planícies imensas da Sibéria. O frio fulminante. O banho na sauna coletiva. As palavras de Dostoiévski no que tange a esse evento são fantásticas:

"Ao transpormos a entrada, puxando a porta que dava para o banheiro, até pensei que estava entrando nas caldeiras do inferno. Imagine-se uma sala com doze metros de largura e outros tantos de comprimento onde se acham no mínimo oitenta pessoas reunidas, pois ali estava pouco menos da metade do presídio, que contava com duzentos detentos. Um vapor espesso, gafeira, lama, e um tal aperto que uma pessoa nem arranjava lugar para pôr o pé" (p. 134).

E é justamente nesse cenário de "caldeiras do inferno" que estão aglutinados os "mortos". Quem era condenado a viver naquele espaço experimentava a não-vida; a inapetência completa pelas coisas do existir. Os prisioneiros eram levados para aquele lugar para serem humilhados. A menor falta de estabilidade psicológica, destroçava o indivíduo. Voltava-se dali com a impressão de que se esteve Hades. 

Dostoiévski tece a partir desse quadro melancólico uma das mais belas narrativas de todos os tempos. Ele traceja os perfis psicológicos de certos sujeitos que lhe chamaram a atenção de forma destacada. Costura ações. Descreve aquilo que a cadeia fez com cada um daqueles homens. É ali que ele encontra um combustível denso para a literatura. Suas personagens são tipos escuros, que ora vivem nas sombras, ora querem vir à luz. Talvez tenha sido ali que ele tenha encontrado uma matéria densa para os seus romances posteriores.
Sibéria. O que tem de linda, tem de terrível

Isso me faz lembrar do filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, livro este tão brilhante e genial quanto o do Dostoiévski - também revelador da experiência infausta da masmorra do presídio. Nas cenas finais do filme, Carlos Vereza, que fazia o papel diz Graciliano, diz quando estava para sair da cadeia: "Obrigado! Os senhores me deram uma matéria formidável para um livro!" O burocrata da Casa de Correção, aturdido, diz em desespero: "A culpa é desses cavalos que mandam gente que sabe ler para cá!"

Dostoiévski fez anotações escrupulosas e em 1861, publicou esse livro que é um divisor de águas em sua obra. Recordação da Casa dos mortos do ponto onde estar é uma fundamental para se entender os livros da fase madura do escritor russo - O idiota, Os demônios, Crime e Castigo e Os irmãos Karamazovi. O livro possui um estilo leve, corrediço, mas de uma densidade provocante, com a montagem de quadros psicológicos grandiosos. Na prisão de Omsk, estava um substrato, uma representação, um quadro amostral da escória da Rússia. E  daí surge a frase inicial que coloquei como epígrafe desses devaneios: em meio à selvageria e à barbárie é preciso ter esperança, ter uma planície luminosa de esperança dentro de si para não submergir ante o caos contingente. Dostoiévski esteve na casa dos mortos e saiu de lá com uma matéria humana formidável para escrever grandes livros. 



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