quarta-feira, abril 17, 2019

"A vida que ninguém vê", de Eliane Brum

“Cada Zé é um Ulisses”.

“Seja generoso. Arrisque. Ouse. Olhe”.

            Eliane Brum é uma das mais humanas e sensíveis jornalistas brasileiras. Ao lermos os seus textos, insinua-se uma teimosa esperança de que o jornalismo brasileiro seja honesto e baseado em critérios profissionais. O que vigora nas redações é o mecanicismo textual, a falta de um traço humanizante. O que impera mesmo é a prevalência dos interesses dos donos das grandes corporações de notícias.
            A leitura de A vida que ninguém vê ajudou a solidificar a minha admiração pela jornalista gaúcha de Ijuí - ainda mais. Eliane é dona de um dos textos mais sensíveis do jornalismo brasileiro. Com uma trajetória iniciada no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e, mais tarde, na Revista Época, Eliane sempre chamou a atenção pela sua perspicácia; por dominar a gramática da língua e, como num serviço de carpintaria, arrematar suas denúncias e reflexões com a palavra certa. Nada é supérfluo no seu texto. Às vezes questionamos o rumo que a prosa toma. Questiono: “Será que ela não se perdeu?” “Essa digressão vai levar o texto para qual direção?” Mas, como num movimento mágico e leve, saído do balé, retoma a linha de raciocínio, reata os pontos aparentemente perdidos. 
Ela consegue revelar aquilo que está escondido nas mais despretensiosas situações; ou, simplesmente, com seu jornalismo poético, escancara percepções; torna claro aquilo que as pessoas comuns não conseguem enxergar. Eliane reverte a perspectiva do olhar. Decompõe a realidade. Somos sempre atingidos por uma provocação. Em muitos momentos, à medida que lemos, fechamos os olhos, respiramos fundo e seguimos com o exercício de apreciação dos seus textos. Não há textos da jornalista que não exijam um respirar fundo que nos arranca do lugar de conforto.
            Segundo ela, “olhar é um exercício cotidiano de resistência”. É preciso (re)aprender a olhar. Olhar as ruas, o movimento da calçada, o sol do meio da manhã ou do meio da tarde; a criança que brinca; os pedaços de sobras que vão ficando pelo caminho; olhar os olhos dos outros; olhar o ser humano em sua singularidade e complexidade. O afã, o caos cotidiano, o emaranhado de eventos vão criando espessas camadas para que não consigamos olhar mais a vida. Acostumamo-nos com a passagem cinzenta do comodismo de uma vida que se adaptou à miséria, às desigualdades, à indiferença. A sociedade perdeu a capacidade de olhar. Está impedida de olhar por causa de uma questão:  olhar dá medo, pois é sempre risco. Ao olhar, eu posso me ver refletido no outro. É evitando o olhar que eu evito me descobrir, pois olhar é sempre um ato de revelação do outro, do mundo e de mim mesmo. “Olhar é um ato de silêncio”. 
            Além da inabilidade para olhar, existe uma inabilidade para ouvir. Ela indaga: “Qual é a ameaça contida no silêncio?” Vive-se, atualmente, a ditadura das vozes. Vivemos expostos o tempo todo a algum barulho. Somos treinados produzirmos sons. As músicas de maior sucesso são aquelas que possuem uma sonoridade agressiva. Para os jovens, quanto mais barulho melhor. Os carros são barulhentos, os bares são barulhentos; os encontros são barulhentos. Quando não ouvimos algum som, produzimos vozes para que a nossa fala prevaleça – ou para que abafe a nossa voz interior. Vivemos, assim, na época da prevalência das vozes. Para evocar Renato Russo: ‘falamos demais por não ter nada a dizer”. Mais do que um paradoxo ou simples jogo de palavras, encontramos o retrato da modernidade nessas palavras. Ouvir é, também, um gesto de resistência, um ato revolucionário.
            Eliane busca ajustar o olhar e a voz para narrar as histórias encontradas no livro. A velocidade e o automatismo permitem que determinadas questões, pessoas e acontecimentos sejam ignorados. O automatismo impede a sensitividade; a capacidade de se emocionar.
            O livro traz vinte e duas histórias. Vinte e duas formas de olhar para a singularidade que cada pessoa possui. Vai do sujeito que, paradoxalmente, trabalha no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, mas nunca viajou de avião. Há ainda a história de um pedinte que fica deitado nas calçadas do centro da capital gaúcha e observa o mundo de baixo. Sem as pernas, arrasta-se e pede para os transeuntes. Seu nome é Sapo. Eliana diz: “Minha cabeça no alto, a dele nos rés do chão. Eu mirando o seu rosto. Ele, os meus pés”. A figura de sintaxe usada, o zeugma, na última frase, cria um efeito dramático. Estabelece uma ênfase sobre ‘o lugar de fala’ de Sapo. Alverindo, seu nome, ‘lambe com a barriga as pedras da rua’.  É alguém que enxerga o mar de pernas que se movimenta em ondas irregulares, apressadas. Sapo estabelece o contato de baixo para cima. Há uma verticalidade impositiva.
            Uma das histórias mais tristes chama-se “Depois da filha, Antonio sepultou a mulher”. À medida que vamos lendo a história, notamos o quanto essa história triste é a história de tantos brasileiros pobres – “pobres de tão pobres”.      A morte de um dos filhos e, logo em seguida, a morte da esposa, Antonio Santos, 37 anos, com uma vida miserável, experimenta as condicionantes da pobreza. Percebemos que a pobreza cria muros, impedimentos, que sempre atuam para que os fatos sejam sempre negativos. Sem esposa, sem dois dos filhos, Antonio procura reordenar os cacos de sua vida enlutada. Continua a descascar eucalipto; continua no mesmo barraco sem cor e sem conforto, comendo o arroz com lingüiça ao lado dos três filhos pequenos (que crescerão sem mãe e sem as referências necessárias para que cresçam de forma saudável). Os garotos buscarão se virar sozinhos e ficarão em situação de risco. 
            Não é possível contar todas as histórias aqui, pois ficaria imensamente cansativo. Mas, é possível apontar certos detalhes que engrandecem as qualidades da jornalistas. Atualmente, ela escreve quinzenalmente para o jornal espanhol El Pais. A cada novo texto que aparece, lemos embevecidos, pois sabemos que há um trato cuidadoso com as palavras. Ela escova cada palavra. Nada é desnecessário. Há bom senso. Há uma reflexão acertada. Há muito profissionalismo. 

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