“Seja generoso. Arrisque.
Ouse. Olhe”.
Eliane Brum
é uma das mais humanas e sensíveis jornalistas brasileiras. Ao lermos os seus
textos, insinua-se uma teimosa esperança de que o jornalismo brasileiro seja
honesto e baseado em critérios profissionais. O que vigora nas redações é o
mecanicismo textual, a falta de um traço humanizante. O que impera mesmo é a
prevalência dos interesses dos donos das grandes corporações de notícias.
A leitura de
A vida que ninguém vê ajudou a
solidificar a minha admiração pela jornalista gaúcha de Ijuí - ainda mais. Eliane é dona de
um dos textos mais sensíveis do jornalismo brasileiro. Com uma trajetória
iniciada no Jornal Zero Hora, de
Porto Alegre, e, mais tarde, na Revista
Época, Eliane sempre chamou a atenção pela sua perspicácia; por dominar a
gramática da língua e, como num serviço de carpintaria, arrematar suas
denúncias e reflexões com a palavra certa. Nada é supérfluo no seu texto. Às
vezes questionamos o rumo que a prosa toma. Questiono: “Será que ela não se
perdeu?” “Essa digressão vai levar o texto para qual direção?” Mas, como num
movimento mágico e leve, saído do balé, retoma a linha de raciocínio, reata os
pontos aparentemente perdidos.
Ela consegue revelar aquilo que está
escondido nas mais despretensiosas situações; ou, simplesmente, com seu
jornalismo poético, escancara percepções; torna claro aquilo que as pessoas
comuns não conseguem enxergar. Eliane reverte a perspectiva do olhar. Decompõe
a realidade. Somos sempre atingidos por uma provocação. Em muitos momentos, à
medida que lemos, fechamos os olhos, respiramos fundo e seguimos com o
exercício de apreciação dos seus textos. Não há textos da jornalista que não
exijam um respirar fundo que nos arranca do lugar de conforto.
Segundo ela,
“olhar é um exercício cotidiano de resistência”. É preciso (re)aprender a
olhar. Olhar as ruas, o movimento da calçada, o sol do meio da manhã ou do meio
da tarde; a criança que brinca; os pedaços de sobras que vão ficando pelo
caminho; olhar os olhos dos outros; olhar o ser humano em sua singularidade e
complexidade. O afã, o caos cotidiano, o emaranhado de eventos vão criando
espessas camadas para que não consigamos olhar mais a vida. Acostumamo-nos com
a passagem cinzenta do comodismo de uma vida que se adaptou à miséria, às
desigualdades, à indiferença. A sociedade perdeu a capacidade de olhar. Está
impedida de olhar por causa de uma questão:
olhar dá medo, pois é sempre risco. Ao olhar, eu posso me ver refletido
no outro. É evitando o olhar que eu evito me descobrir, pois olhar é sempre um
ato de revelação do outro, do mundo e de mim mesmo. “Olhar é um ato de
silêncio”.
Além da
inabilidade para olhar, existe uma inabilidade para ouvir. Ela indaga: “Qual é
a ameaça contida no silêncio?” Vive-se, atualmente, a ditadura das vozes.
Vivemos expostos o tempo todo a algum barulho. Somos treinados produzirmos
sons. As músicas de maior sucesso são aquelas que possuem uma sonoridade
agressiva. Para os jovens, quanto mais barulho melhor. Os carros são
barulhentos, os bares são barulhentos; os encontros são barulhentos. Quando não
ouvimos algum som, produzimos vozes para que a nossa fala prevaleça – ou para
que abafe a nossa voz interior. Vivemos, assim, na época da prevalência das
vozes. Para evocar Renato Russo: ‘falamos demais por não ter nada a dizer”. Mais
do que um paradoxo ou simples jogo de palavras, encontramos o retrato da
modernidade nessas palavras. Ouvir é, também, um gesto de resistência, um ato
revolucionário.
Eliane busca
ajustar o olhar e a voz para narrar as histórias encontradas no livro. A
velocidade e o automatismo permitem que determinadas questões, pessoas e acontecimentos
sejam ignorados. O automatismo impede a sensitividade; a capacidade de se
emocionar.
O livro traz
vinte e duas histórias. Vinte e duas formas de olhar para a singularidade que
cada pessoa possui. Vai do sujeito que, paradoxalmente, trabalha no Aeroporto
Salgado Filho, em Porto Alegre, mas nunca viajou de avião. Há ainda a história
de um pedinte que fica deitado nas calçadas do centro da capital gaúcha e
observa o mundo de baixo. Sem as pernas, arrasta-se e pede para os transeuntes.
Seu nome é Sapo. Eliana diz: “Minha cabeça no alto, a dele nos rés do chão. Eu
mirando o seu rosto. Ele, os meus pés”. A figura de sintaxe usada, o zeugma, na
última frase, cria um efeito dramático. Estabelece uma ênfase sobre ‘o lugar de
fala’ de Sapo. Alverindo, seu nome, ‘lambe com a barriga as pedras da rua’. É alguém que enxerga o mar de pernas que se
movimenta em ondas irregulares, apressadas. Sapo estabelece o contato de baixo
para cima. Há uma verticalidade impositiva.
Uma das
histórias mais tristes chama-se “Depois da filha, Antonio sepultou a mulher”. À
medida que vamos lendo a história, notamos o quanto essa história triste é a
história de tantos brasileiros pobres – “pobres de tão pobres”. A morte de um dos filhos e, logo em
seguida, a morte da esposa, Antonio Santos, 37 anos, com uma vida miserável,
experimenta as condicionantes da pobreza. Percebemos que a pobreza cria muros,
impedimentos, que sempre atuam para que os fatos sejam sempre negativos. Sem
esposa, sem dois dos filhos, Antonio procura reordenar os cacos de sua vida
enlutada. Continua a descascar eucalipto; continua no mesmo barraco sem cor e
sem conforto, comendo o arroz com lingüiça ao lado dos três filhos pequenos
(que crescerão sem mãe e sem as referências necessárias para que cresçam de
forma saudável). Os garotos buscarão se virar sozinhos e ficarão em situação de
risco.
Não é
possível contar todas as histórias aqui, pois ficaria imensamente cansativo.
Mas, é possível apontar certos detalhes que engrandecem as qualidades da
jornalistas. Atualmente, ela escreve quinzenalmente para o jornal espanhol El Pais. A cada novo texto que aparece,
lemos embevecidos, pois sabemos que há um trato cuidadoso com as palavras. Ela
escova cada palavra. Nada é desnecessário. Há bom senso. Há uma reflexão
acertada. Há muito profissionalismo.
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