sábado, agosto 09, 2014

Uma reflexão de aniversário

João Pessoa - PB - janeiro de 2013
"E, ao final de nossa longa exploração, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". T.S. Eliot.

Há alguns dias, vi pela décima vez, o filme Sociedade dos poetas mortos, uma das produções mais encantadoras que conheço sobre o verdadeiro sentido da vida. E existe aquela cena em que o professor leva os alunos até o pátio da escola e mostra aqueles que haviam estudado em tempos passados. O professor pede para que os alunos olhem aquelas fisionomias cristalizadas pelo tempo. Aqueles sorrisos despreocupados e saudáveis como se a vida seguisse um fluxo contínuo e que nunca teria fim; como se nunca fôssemos deixar de viver esse ritmo, essa energia luminosa. Ao dar continuidade à sua lição, ele pede para que os alunos se aproximem da fotografia para ouvir o cada um daqueles seres que "fermentavam narcisos", naquele momento, estariam a dizer. Eles obedecem e escutam um sussurro sendo pronunciado pelo professor: "Carpe diem, meninos! Tornem as suas vidas extraordinárias!"

E é pensando justamente nessa afirmação que completo mais um ano de vida. Chego aos trinta e cinco anos e analiso a longa trilha por onde caminhei. As marcas da poeira ainda estão em meus pés. Tantas paisagens já ficaram presas na memória; e tantas outras já se descolaram, sendo abandonadas pelo artifício falho da mente. Carpe diem é um termo latino que significa "colha o fruto". Ou seja, colha as coisas que estão maduras. Não desperdice aquilo que se mostra. E diante de afirmação tão bela e trágica, surge a indagação: "O que é essencial?" Sim! O que é essencial na vida? Com qual matéria ou assunto eu devo gastar o meu tempo? Quais frutos eu devo colher? 

Nada como o dia do aniversário para pensar nessas coisas. Não tenho todo o tempo do mundo. É curiosa a percepção de que tudo passou muito rapidamente. Recordo-me de que ontem eu era uma criança, que corria descalça; que jogava bola com os colegas; que tomava banho em riachos; que subia em pés de manga e quando achava um fruto maduro, devorava as carnes amarelas até que o caldo escorresse pelos cotovelos; era uma criança que tentava jogar com as ordens e comandos dados pela minha mãe. E com a minha carapinha e roupas ordinárias seguia para a escola, com os livros debaixo do braço. Tudo passou tão rápido! E é como se houvesse uma fumaça se mexendo lá no fundo dos cômodos do tempo.

Não tenho todo o tempo, pois não poderei visitar todos os lugares que quero. Não poderei abraçar a todas as pessoas. Beber todos os vinhos. Experimentar todas as culinárias. Ouvir todas as músicas. Ler todos os livros. Acumular tudo o quero. Ter o tempo que quero. É essa angústia diante do finito, que acometeu Fausto, alongado pela reflexão de Goethe. Vendo-se incapaz de aprender, de conhecer, de aprofundar-se além dos limites daquilo que é capaz o ser humano, Fausto resolve fazer um pacto com o demônio. Essa metáfora representa justamente a inquietação que gravita no interior do homem. Somos pequenos, mas dentro de nós existe a consciência da eternidade e isso nos aniquila. A poetisa Adélia Prado diz assim: "Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande...". Queremos viver, pois existe um gesto de grandiosidade, uma vontade de continuidade, uma força impulsiva que nos lança de encontro aos nossos limites. 

Num dia como esse eu paro para pensar, para refletir, para ficar em silêncio, para ficar sozinho. E "a solidão", como diz o Henri Nouwen, "é a fornalha da transformação". Sei que daqui para frente o meu corpo passará por mudanças profundas. Mas é justamente nesse "instrumento" que a minha consciência e a minha percepção do mundo permanecerão vivas. Por isso, nesta data, quero fazer um pacto comigo mesmo: quero ser mais humano. Quero ler mais poesia. Quero viajar mais. Quero repelir o tédio e rir das responsabilidades. Quero ouvir mais MPB e continuar a amar a música clássica. Ouvir mais as missas de Bach e Palestrina; as sonatas de Beethoven e Brahms; os concertos para piano de Mozart. Quero conversar mais com a minha esposa, fazendo ecoar aquela frase de Nietzsche: "todos os casais que pretendem casar deveriam fazer a seguinte pergunta: 'terei eu prazer em conversar com essa pessoa o resto de minha vida?'" 

Quero ver mais filmes; observar mais os pequenos detalhes das mudanças perpetradas na natureza. Rir a cada nova manhã e agradecer a cada pôr-do-sol. Brincar com o "Jesus menino", como o fez Fernando Pessoa. O Jesus que se cansou da seriedade da eternidade; que veio morar com os homens; brincar nas poças de água; que dorme dentro da minha alma e, às vezes, acorda de noite e brinca com os meus sonhos. Quero todos os dias ouvir a voz da minha mãe e dos meus parentes. Quero visitar sempre que puder o meu lugar de nascimento. Perceber as árvores; o vento com suas fragrâncias curtidas e trazidas de longe; embriagar-me com o cheiro de terra molhada quando das primeiras chuvas. Gastar tempo com as coisas "inúteis", que como diz o Manuel de Barros têm o poder de fazer "milagrar violetas". Quero fazer de cada reencontro uma primeira vez e cada despedida um réquiem de beleza. Quero ouvir mais e falar menos. Fugir da ditadura que diz que para que eu vença é necessário calar o outro "no grito". Quero serenar diante do caos e ouvir o som das cachoeiras nos dias de tempestade. Quero me entusiasmar com o silêncio e fazer da solidão uma poesia que ensina. Quero ver o mar mais vezes. Quero caminhar mais vezes só por caminhar - com as mãos no bolso. Quero correr mais vezes. Correr como o Forrest Gump, que quando quis correr, correu; e quando quis parar, parou. Quero fugir das agendas fixas; dos almoços contabilizados; do amor com hora marcada; do encontro com agendamento e cadastro para ser analisado. Em suma: quero ser singelo como aquele lírio que nem mesmo Salomão foi capaz de se vestir como ele (Mt. 6. 28,29)

Vi uma das últimas entrevistas feitas pelo Ariano Suassuna, que faleceu mês passado. Uma das afirmações feitas por ele me deixou gravitando por dias em cima de mares de reflexões. Disse ele: "É muito bom viver! É um privilégio ter passado por esse universo". É e assim que devo olhar sempre, mesmo não sabendo quais são as trilhas, as planícies e montanhas que encontrarei em minha caminhada finita. Mas o quanto eu puder, quero levar comigo a lembrança daquilo que fui e vivi; e o agradecimento por aquilo que terei tempo de ser. As nossas buscas sempre terminam no lugar onde começamos a procurar.

4 comentários:

charlles campos disse...

Gravei esse seu post aqui no meu computador para ler mais vezes, meu caro. Muito belo este seu texto!

P.S.: e você está um gato nesta foto.

P.S.2: agora mesmo, enquanto escrevo isso, começa no som da sala a faixa Hoe-down, do magnífico álbum "the blues and abstract truth" do Oliver Nelson, e minha filha sentada ao meu lado e entusiasmadíssima com a graça da música, me diz: "Isso é jazz não é papai? Jazz é bagunçado, não é papai? Bagunçado é muito bonito."

Dessas coisas.

Feliz aniversário e um forte abraço.

Carlinus disse...

Obrigado, Charlles! Fico feliz com as palavras - e obrigado pelo "gato" (risos!). Sua filha é sábia; já entendeu o espírito do jazz. É uma "bagunça" que faz bem ao corpo. Precisamos de bagunça para que organizemos.

Quero te falar uma coisa! Outro dia estive em Pirenópolis com minha esposa e até pensei em esticar até a tua cidade, somente para conversamos um pouco. Esse negócio de virtualidade é por demais estranho. A vida acontece no encontro. Sei lá! Estou ficando velho e besta. E olha que eu ainda nem sou pai para ouvir jazz com o meu filho(a). Rrsss...

charlles campos disse...

Sou um cara bem besta que fica tímido com primeiros encontros, Carlinus. Talvez te assuste ver que minha interação com o mundo real nada tem a ver com o cara que escreve meus textos. Avisando isso de antemão, renovo o que te disse há tempos: quando quiser vir aqui, verá sempre as portas abertas. Eu ficaria muito feliz. Só avise antes para eu vestir uma roupa, decorar algumas frases inteligentes de impacto, e fazer uma compras no mercado para uma boa refeição.

Carlinus disse...

Vou entender isso como uma autorização ou convite. Quando tiver a oportunidade de me aproximar por aí, vou deixar um aviso.

Abração!