quarta-feira, outubro 05, 2022

Algumas palavras sobre "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis

 

                Maria Firmina dos Reis é um nome importante da literatura brasileira. Nasceu no Maranhão, no ano de 1822. Ou seja, há duzentos anos. Como se pode observar, Maria veio ao mundo no ano em que o Brasil se tornou um país politicamente independente. Sua história é típica das pessoas negras deste país. Ela, uma mulher culta, professora, tem sido negligenciada, não recebendo uma fortuna crítica à altura de sua obra.

                Seu principal texto – “Úrsula” – só se tornou efetivamente conhecido nacionalmente nos anos 60 do século XX – mais de cem anos após a sua publicação. Três fatores, talvez, expliquem a “invizibilização” de sua obra:

(1) o fato de ser uma mulher. O número de mulheres que fizeram literatura no século XIX é inexpressivo. Citam-se os casos de Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Emília Freitas entre outras; números que podem ser contados nos dedos. A maior parte das obras era constituída por folhetins inocentes. O Brasil era um país rigidamente patriarcal. Às mulheres cabia um papel subalterno.  Uma das principais preocupações era para que as mulheres se mostrassem discretas e não aparecessem em público, pois assim não envergonhariam o pai ou o marido. A instrução entre o sexo feminino era quase inexistente. A maior preocupação de uma mulher dizia respeito à capacidade que ela teria de arranjar um casamento e ser uma boa esposa. Maria Firmina é predecessora de outros comportamentos. Um exemplo é o fato de ela ser a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público para professor no estado do Maranhão. Mais tarde, ela fundaria uma classe híbrida com meninos e meninas, algo impensado para a época.

(2) Maria Firmina era uma mulher negra em uma sociedade patriarcal e provinciana. Filha de uma mulher branca com um homem negro, Firmina tornou-se órfã ainda muito jovem. Por conta desse fato, foi morar com uma tia. Nesse novo ambiente, ela entrou em contato com os livros e com uma educação mais refinada. A escritora em um espaço como esse, certamente, viveu uma amarga solidão. Pesava ainda o fato de que era negra. O texto escrito, o manejo da palavra, era um privilégio de pessoas brancas.

(3) O Maranhão ficava distante da Capital do país. Anos mais tarde, o Maranhão teria importantes figuras da literatura nacional. Vale mencionar os nomes dos irmãos Azevedo – Arthur e Aluízio. Este, por exemplo, será um dos principais nomes ligados à escola naturalista. Livros como “O Cortiço”, “O mulato” e “Casa de pensão” são marcos importantes da literatura brasileira, produzidos por um grande escritor maranhense. Mesmo diante de um fenômeno com essas características, o Rio de Janeiro era considerado o centro das produções literárias brasileiras. José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Joaquim de Macedo entre outros estavam por lá. O que uma mulher – negra – de um espaço provinciano poderia produzir? Muita gente deve ter torcido o nariz para esse fato. E, analisando sobre esse ponto de vista, Maria Firmina é um grande fenômeno.

                Esse ponto é corroborado pelo fato de que, mesmo tendo vivido quase cem anos, não se sabe ao certo como era a feição de Maria Firmina dos Reis. Desconhece-se como era o formato do seu rosto; a cor do seu cabelo. Chega-se a essa conclusão por causa da origem de seus pais. Esse episódio ilustra como Maria Firmina desperta interesse pela grandiosidade e originalidade de sua obra. “Úrsula” é um caso muito significativo da literatura brasileira, que desperta um grande interesse.

                A história é simples. Possui um enredo e estética românticos. O texto não se diferencia de qualquer dos escritos de José de Alencar. A estética de Maria Firmina é singela. Sentimos todo aquele “afetamento” na linguagem, criando uma experiência, às vezes, capaz de criando um enfado na leitura. Mas, vale mencionar que apesar de ter os pés fincados na tradição romântica, Maria Firmina procura revestir as suas personagens com uma nobreza de caráter distinta daquela feita pelos demais escritores da época. É importante salientar que o texto de Maria Firmina fornece um outro olhar para o papel da mulher e do negro numa sociedade marcadamente patriarcal, desigual e escravista. Um exemplo são os textos do já mencionado escritor cearense José de Alencar.

                Quando se verificam textos como Iracema e o Guarani, é patente o esforço de Alencar de construir um mito de fundação, um conceito de nacionalidade. Todavia, observa-se que o material usado pelo escritor cearense para realizar esse feito é a conformação, o idílio, a subalternidade em relação à história contada pelos europeus. Alencar procura por em evidência construção do Brasil como se aqui fosse um paraíso, estruturado a partir do encontro dos brancos desenvolvidos e civilizados europeus com o índio bravo e heroico. O Brasil seria, portanto, o encontro do bravio e do indômito com a civilização branca e cristã vinda do Norte. O negro é colocado à margem. Sua importância não é mencionada. O tratamento e a importância do negro são deixados de lado.

                A importância de Úrsula reside nesse quesito, pois a perspectiva apresentada sobre o negro e sobre a mulher é modificada. O negro deixa de ser um ente doce, passivo, resignado à sua condição e passa a ter uma história – e muita dignidade. Os dois personagens Túlio e a negra Suzana são descritos de tal forma a evidenciar o quanto são nobres e infelizes por serem submetidos a uma estrutura injusta e anticristã. O narrador de “Úrsula” (narrador em terceira pessoa), preocupa-se em apresentar a violência sofrida pela velha escrava, que fora arrancada da África – da sua história, do seu povo, das suas crenças, de suas tradições – e trazida para viver em uma terra distante sob o rude manto da escravidão. Nesse sentido, Maria Firmina ressalta a importância e a dignidade do escravo.

Túlio é outro importante elemento na obra, pois sua personalidade é quase rousseauniana.  O jovem negro é apresentado como uma pessoa boa, apesar de toda o meio em que vive. Túlio é generoso. Bondoso. A forma como ele acolhe e cuida de Tancredo evidencia a sua personalidade. Maria Firmina afirma: “Era infeliz; mas era virtuoso”. Ao encontrar um homem branco caído em local ermo, Túlio poderia se aproveitar e saborear a vingança por toda a sua raça. Não. O jovem escravo leva aquele que seria o amor de “Úrsula” para a casa de sua senhora. E aqui é importante estabelecer uma conexão com a história bíblica do bom samaritano encontrada em Lucas 15.11-32. Essa nobreza de caráter fornece uma leitura diferente daquela ditada pelas relações materiais existentes no Brasil. “Úrsula” é considerado o primeiro romance genuinamente abolicionista da história da literatura brasileira.

Outro importante personagem é o Comendador, o tio de Úrsula. Sua postura é de controle completo sobre tudo. Sua vontade é assassina. Seus impulsos são de morte. A única linguagem que utiliza é a da aniquilação. O Comendador representa a figura do patriarcado e da aristocracia que dominava o país. É a figura do macho com apetite e hábitos irrefreáveis; capaz de perpetrar maldades extremas.

A obra é essencialmente romântica. A parte final é pessimista. Apesar de haver em seu enredo uma profunda perspectiva cristã – a prevalência do bem, da generosidade, da verdade, do sofrimento que é suportado com resignação e nobreza de caráter -, o final da história é marcado pelo pessimismo. Em “Úrsula” o bem se faz presente, representado na personalidade de personagens que são acossados pela crueldade dos fatos e do destino, todavia o desfecho dessas personagens é melancólico, com cintilações pálidas. Um livro importantíssimo de uma brasileira negra que muito disse e ainda tem muito a dizer sobre o Brasil.

 

               

 

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