segunda-feira, dezembro 13, 2021

"Guerra dentro do beco", de Jorge de Lima


 “Como dói existir”.  

Jorge de Lima, In “A guerra dentro do beco” p. 95

 

            Em 2018, enquanto dirigia de João Pessoa, a bela capital da Paraíba, e me encaminhava para Maceió, outra singular cidade que repousa dentro de minha admiração, testemunhei algo que elevou as minhas ideias. Eu continuei a conversar com a minha esposa e a minha cunhada que estavam comigo no carro, mas os pensamentos se descolaram, alcançando as montanhas que levam ao passado. Logo após ter saído do estado de Pernambuco, cheguei ao estado de Alagoas. Foi quando tive a oportunidade de ver uma placa que conduzia à cidade de União dos Palmares, enquanto seguia pela BR 101. Pensei imediatamente no Quilombo dos Palmares e na figura mítica de Zumbi. Naquela porção do estado, encontra-se a Serra da Barriga, que abriga lendas, histórias e que parece fazer ecoar ainda os gritos dos escravos que resistiram à violência do estado colonial.

            Imaginei que, um dia, poderia visitar a cidade. A região abrigou um dos símbolos da resistência dos escravos no Brasil colonial. Mesmo após a morte de Zumbi, os negros que não foram mortos pelos carrascos portugueses, tentaram levar à frente o projeto de liberdade.

            Além disso, lembrei do nome do escritor alagoano Jorge de Lima. Esses pensamentos me passaram pela cabeça rapidamente; numa espécie de lampejo. Sobre o Jorge de Lima não havia muitas informações. Apenas que era dele “A guerra dentro do beco”. O escritor mais proeminente de Alagoas é Graciliano Ramos. Jorge fica restrito a círculo mais secundário. Os dois foram contemporâneos. Graciliano nasceu em Quebrangulo, em 1892; Jorge nasceu um ano mais tarde, na já mencionada cidade de União, mais tarde sendo nomeada da forma como a conhecemos.

            Jorge de Lima é uma figura magnificente da prosa e da poesia nacionais.  É mais conhecido pela sua poesia com requintes místicos e simbolistas. O poema “A invenção de Orfeu” é uma pérola da Língua Portuguesa, podendo ser colocado ao lado de “Os Lusíadas” ou, numa esfera mais universal, ao lado de textos épicos como “A Divina Comédia”, de Dante ou “O Paraíso Perdido”, do poeta inglês John Milton.

            O escritor era uma figura que “experimentava”. Vivia à cata de novos projetos e possibilidades. Ao longo da vida, foi médico, escultor, poeta, político, professor, pintor, romancista, escritor. Vivia se reinventando. “Estreando-se”. Na prosa, Jorge escreveu algumas importantes obras, sendo a mais conhecida e relevante o romance idealista “Calunga”, que comprei recentemente e tenho por intenção começar a leitura assim que o tiver em mãos. “A guerra dentro do beco” começou a ser escrito ainda no final dos anos 30 e concluído nos primeiros anos da década de 40. Todavia, só foi publicado três anos antes de sua morte. É um livro denso, assim como eram densos os demais trabalhos do alagoano. A percepção inicial que se obtém, à medida em que se vai lendo o seu texto, é que somos colocados em uma prensa e, aos poucos, cordas vão nos apertando, sujeitando-nos lentamente em um abraço de serpente.

            O texto possui um arrojo, uma estrutura barroca. É religioso em sua essência. Jorge sabia disso. Era parte de seu projeto enunciar um mundo místico. Como numa sinfonia de Gustav Mahler havia estágios pelos quais os humanos com os seus conflitos passavam: havia a vida, as contradições, a angústia, o questionamento da própria vida, a resolução do conflito e a possibilidade de redenção. 

            Em “Guerra dentro do beco” há uma força pungente na linguagem. Jorge sabia manusear como ninguém a palavra. Elas surgem caudalosas. Essa força que brota da narrativa parece ser usada para criar paroxismos existenciais nas personagens. Viver é está diante de esferas de sofrimento. Onde encontrar a luz?

            Em meio à sociedade burguesa, o homem moderno é refém de percepções fugidias e de forças intestinas que geram confusão e opressão, para que as aparências sejam mais fortes do aquilo que temos na essência. O “beco” é esse lugar fundamental onde guerras e conflitos acontecem. E isso fica provado na vida de Bruna e Júlio Aguiar, as duas personagens principais do livro. Aos poucos eles são levados pelos fatos para dentro do beco. Nesse espaço íntimo repleto de vozes, sujeitos molestados pelas aparências sucumbem ante o desespero. Uma vida em que se foge do divino é uma vida sem sentido.

            É na guerra que o indivíduo aniquila sua finitude e suas limitações. A partir desse fato, ele está disposto a viver. Como diz a frase de Santa Teresa d’Ávila, encontrada por Bruna enquanto estava no hospital: “Morro para não morrer”. Para a alma atribulada, a morte é uma companheira capaz de gerar libertação.

            “Guerra dentro do beco” é um desafio. Sua leitura provoca incômodo. Sentimos as angústias das personagens; sentimos o próprio questionamento da vida. O tempo é uma força que potencializa dores e chagas, mas também pode gerar purificação, redenção.  

          Vamos ao décimo livro de literatura nacional - "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Aquele tipo de leitura desafiadora, que prova se chegamos a um nível de maturidade leitora.

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