“Lembro de ter pensado, em que
momento ele começou a ter tesão? Mas ele tem tesão em quê, exatamente? Em me
ver perdida, com medo nauseada, ansiosa? ”
“Vista chinesa”, da jovem e talentosa Tatiana Salem Levy, é uma leitura dolorosa, que nos mantem num estado de máxima atenção, com os sentidos atentos. É um daqueles dramas que nos empurram para que sintamos a dor da personagem. De algo que incomoda. No final do livro, descobrimos que a história é baseada em fatos reais; que a vítima, uma pessoa influente do meio cultural, corajosamente, permitiu que o fato ocorrido quatro anos antes, fosse narrado em forma de romance.
O Brasil é um país que
possui um número altíssimo de estupros todos os anos. De acordo com o Mapa da
Violência, divulgado em 2019, em 2018, houve quase 70 mil estupros no país. Um
fato que estarrece é que esses são os casos oficialmente conhecidos pelo
Estado. Há inúmeros casos que permanecem no anonimato. É um tipo de crime que
possui baixa notificação à polícia. De acordo com a Pesquisa, todos os dias
ocorrem algo próximo de duzentos estupros que são oficialmente notificados. Os agressores são, em sua maioria,
homens – quase 94%.
O livro de Tatiana Salem
Levy nos conta a história de infortúnio de Lúcia. Acostumada a correr quase
todos os dias, a profissional que estava realizando um importante trabalho para
a organização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, em um dia qualquer,
decidiu correr em um horário diferente daquele que estava acostumada a correr. O trajeto
era tranquilo. Distava seis quilômetros e levava, no máximo, quarenta minutos
para ser percorrido. Enquanto corria até à Vista Chinesa, um importante ponto
turístico do Rio de Janeiro, localizada na Floresta da Tijuca, foi abordada por
um sujeito armado. Arrancada para dentro da floresta, acabou sendo estuprada de
forma violenta por um sujeito o qual ela procura, durante o livro, identificar,
o que faz com que ela sofra bastante; pois ela é obrigada a acordar o trauma adormecido, capaz de gerar pesadelos. As fragrâncias fazem-na lembrar de fragmentos do acontecimento nauseante.
Tatiana Salem Levy |
A vítima de estupro
geralmente não costuma falar com tranquilidade sobre o ocorrido. Mas o livro é
resultado de uma subversão, pois a vítima realizou inúmeras entrevistas com a
escritora, contando os detalhes do evento. Analisando por essa perspectiva,
poder-se-ia achar de que se trata de um livro problemático. Entretanto, Tatiana
consegue orquestrar a narrativa romanesca de forma hábil. A escritora coloca
nas mãos da narradora, a possibilidade de descrever o fatídico acontecimento
por meio de uma carta escrita para as filhas. O gênero carta permite um tipo de
escrita versátil. É assim que ela consegue contar a história, divagando por
experiências que, num primeiro momento, parecem não ter ligação com o evento da
Floresta da Tijuca. Para conseguir isso, ela explora com tenacidade o tempo
cronológico. Alguns capítulos são curtos e parecem independentes, relatando
detalhes de uma outra história. Todavia, está tudo ali; faz parte de um liame. O
aspecto aleatório da narrativa é apenas aparente. No fundo, ela pretende
descrever os aspectos caóticos que passaram a existir na vida da personagem.
O livro é um relato corajoso.
Uma leitura necessária. Coloca-nos na pele de uma pessoa que sofreu um dos
piores tipos de violência que existem, a violação do corpo de forma não
consentida, e as consequências psíquicas e físicas desse tipo de experiência
traumática. Vale a leitura!
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