terça-feira, dezembro 28, 2021

"Vista Chinesa", de Tatiana Salem Levy

 


                “Lembro de ter pensado, em que momento ele começou a ter tesão? Mas ele tem tesão em quê, exatamente? Em me ver perdida, com medo nauseada, ansiosa? ”

           “Vista chinesa”, da jovem e talentosa Tatiana Salem Levy, é uma leitura dolorosa, que nos mantem num estado de máxima atenção, com os sentidos atentos. É um daqueles dramas que nos empurram para que sintamos a dor da personagem. De algo que incomoda. No final do livro, descobrimos que a história é baseada em fatos reais; que a vítima, uma pessoa influente do meio cultural, corajosamente, permitiu que o fato ocorrido quatro anos antes, fosse narrado em forma de romance.

O Brasil é um país que possui um número altíssimo de estupros todos os anos. De acordo com o Mapa da Violência, divulgado em 2019, em 2018, houve quase 70 mil estupros no país. Um fato que estarrece é que esses são os casos oficialmente conhecidos pelo Estado. Há inúmeros casos que permanecem no anonimato. É um tipo de crime que possui baixa notificação à polícia. De acordo com a Pesquisa, todos os dias ocorrem algo próximo de duzentos estupros que são oficialmente notificados. Os agressores são, em sua maioria, homens – quase 94%.

O livro de Tatiana Salem Levy nos conta a história de infortúnio de Lúcia. Acostumada a correr quase todos os dias, a profissional que estava realizando um importante trabalho para a organização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, em um dia qualquer, decidiu correr em um horário diferente daquele que estava acostumada a correr. O trajeto era tranquilo. Distava seis quilômetros e levava, no máximo, quarenta minutos para ser percorrido. Enquanto corria até à Vista Chinesa, um importante ponto turístico do Rio de Janeiro, localizada na Floresta da Tijuca, foi abordada por um sujeito armado. Arrancada para dentro da floresta, acabou sendo estuprada de forma violenta por um sujeito o qual ela procura, durante o livro, identificar, o que faz com que ela sofra bastante; pois ela é obrigada a acordar o trauma adormecido, capaz de gerar pesadelos. As fragrâncias fazem-na lembrar de fragmentos do acontecimento nauseante. 

Tatiana Salem Levy

A vítima de estupro geralmente não costuma falar com tranquilidade sobre o ocorrido. Mas o livro é resultado de uma subversão, pois a vítima realizou inúmeras entrevistas com a escritora, contando os detalhes do evento. Analisando por essa perspectiva, poder-se-ia achar de que se trata de um livro problemático. Entretanto, Tatiana consegue orquestrar a narrativa romanesca de forma hábil. A escritora coloca nas mãos da narradora, a possibilidade de descrever o fatídico acontecimento por meio de uma carta escrita para as filhas. O gênero carta permite um tipo de escrita versátil. É assim que ela consegue contar a história, divagando por experiências que, num primeiro momento, parecem não ter ligação com o evento da Floresta da Tijuca. Para conseguir isso, ela explora com tenacidade o tempo cronológico. Alguns capítulos são curtos e parecem independentes, relatando detalhes de uma outra história. Todavia, está tudo ali; faz parte de um liame. O aspecto aleatório da narrativa é apenas aparente. No fundo, ela pretende descrever os aspectos caóticos que passaram a existir na vida da personagem.

O livro é um relato corajoso. Uma leitura necessária. Coloca-nos na pele de uma pessoa que sofreu um dos piores tipos de violência que existem, a violação do corpo de forma não consentida, e as consequências psíquicas e físicas desse tipo de experiência traumática. Vale a leitura!

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