segunda-feira, dezembro 20, 2021

"O avesso da pele", de Jeferson Tenório. Algumas palavras

 

“No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”. Jeferson Tenório

                 Li “O avesso da pele” boquiaberto. Estou com uma quantidade enorme de livros para ler. Há listas. Projetos. Planilhas. Uma tentativa de organizar de forma disciplinada uma sequência com o pouco tempo de que disponho. Mesmo diante desse metodismo, resolvi iniciar a leitura do romance de Jeferson Tenório, quebrando a lógica e colocando para trás minhas estratégias. Confesso que foi uma das leituras mais profícuas e reveladoras do ano. Li no primeiro semestre “Torto Arado”, apesar de ser uma história bastante diferente, confesso que o livro de Itamar Vieira Junior não me marcou tanto quanto o livro de Jeferson Tenório.

                “O avesso da pele” gravita no mundo da ficção, mas possui a força de tratado sociológico sobre aquilo que está encoberto por camadas históricas – o racismo de uma sociedade desigual e preconceituosa. Tenório que nasceu no Rio de Janeiro e se radicou em Porto Alegre, põe no primeiro plano a capital gaúcha, mas os eventos da narrativa poderiam acontecer em qualquer cidade brasileira. Os problemas apontados por ele no livro são onipresentes em uma sociedade como a nossa, que conviveu de maneira umbilical por mais de três séculos com a escravidão. Uma sociedade que invisibiliza certas pessoas, notadamente por causa da cor da pele, e os tornam alvos fáceis do racismo e da violência.

                É bom saber que pessoas como o escritor tragam isso para o centro do nosso debate. Esse tipo de preocupação não é original, mas atualiza a discussão sobre o tema. Lima Barreto, há cem anos, já havia esboçado essa preocupação. O romance “Clara dos Anjos” aponta para isso, enunciando nossas desigualdades; uma certa identidade nacional, forjada a partir da discriminação.  

                A frase que pincei do livro e que encabeça esse texto escancara o problema do racismo no Brasil. Não é um problema do Sul do país. Certamente, Jeferson Tenório tenha elaborado tal sentença baseado em suas observações, já que o Sul do país é conhecido por, majoritariamente, ter um contingente populacional branco. Outro fato é a memória da presença dos europeus na região, o que potencializa ainda mais a noção de branquitude. Todavia, os corpos negros são alvos em risco em qualquer lugar do país.

                O que impressiona em “O avesso da pele” é a clareza do texto. Tenório conduz o texto com uma habilidade que impressiona. Ele sabe levar o leitor para labirintos, para encurralamentos. Em alguns momentos, a respiração fica suspensa. Alguns fatos estão eivados de um realismo típico da sociabilidade brasileira. O texto assusta pelo grau de verossimilhança. A boa literatura possui essa capacidade. Ela nos tira do chão. Apresenta-nos um mundo que é mais autêntico do que aquele em que vivemos.  

                A história é contada por Pedro, um jovem negro, que descreve a dolorosa trajetória de sua família. Ele fala sobre a difícil história da sua mãe; e as dificuldades as quais seu pai enfrenta. Além desses fatos, Pedro vai costurando situações que ocorrem com ele – relacionamentos, descobertas, vida acadêmica; o seu lugar na cidade de Porto Alegre. A cidade é apresentada como um espaço segmentado. Há certos locais próprios para quem é negro, uma realidade que não é só da cidade.

                Não pretendo expor mais detalhes da história. Desejo apenas refletir sobre os aspectos que tornam o texto poderoso, pois a sensibilidade do escritor pode ser notada em cada frase, em cada capítulo. Alguns capítulos são terminados de forma brilhante. Há sempre um acontecimento muito bem contado. Apesar de lidar com fatos caros e complexos, o livro não soa artificial. Não se pode dizer que o autor não teve fôlego para levar até o fim aquilo que pretendeu.   

                Após a leitura, ficamos com a certeza de que o Brasil é uma país cuja estrutura de desigualdade possui na figura das pessoas negras um dos seus principais alvos. Em quinhentos anos de história, os negros sempre foram vitimados por uma estrutura perversa. Até 1888, oficialmente os negros eram mercadorias, propriedades. Eram comprados em feiras. Tratados como animais. A lei os categorizava como “semoventes”. Certas atividades braçais não eram realizadas, pois eram consideradas atividades de escravos. Apesar do abolicionismo ter ocorrido há aproximadamente 124 anos, a memória cruel da escravidão ainda está preservada. Os negros continuam sendo aqueles colocados à margem do nosso processo social – vivem menos, ganham os piores salários; moram pior; são alvos de abordagens “desastradas” da polícia; lotam os presídios; não ocupam os melhores postos de destaque (há quantos políticos negros, quantos jornalistas negros, quantos executivos negros, quantos escritores negros?), apesar de o número das pessoas que se declaram negras ser maior do que o número daqueles que são brancos.

                Excelente leitura.

               

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