quinta-feira, julho 26, 2018

Algumas apalavras sobre "A elite do atraso - da escravidão à Lava Jato" - Jessé Souza

"O imbecil perfeito é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal". pp. 12 e 13

Jessé Souza é um intelectual provocador. Suas ideias fluem com bastante clareza, firmeza. O que o diferencia de outros intelectuais que se preocupam em interpretar ou entender o Brasil é a sua forma singular de perceber os movimentos da história. É possível perceber Max Weber, Norbert Elias, Karl Marx na estrutura do seu pensamento. Sociólogo de formação, Jessé é professor universitário e esteve à frente do IPEA durante o governo Dilma. Atualmente, tem produzido uma série de livros com forte teor crítico, buscando entender os principais atores que fazem a vida política e social brasileira. 

Nos últimos três anos, Jessé deve ter lançado uns quatro livros - A tolice da inteligência brasileira, A radiografia do golpe, A elite do atraso e A subcidadania brasileira. É sobre A elite do atraso que pretendo fazer algumas considerações limitadas pelo meu olhar.

É importante ressaltar que muitas das ideias pensadas por Jessé se encontram nos quatro livros. Fica impressão de que eles foram escritos com certa velocidade. Determinadas abordagens se replicam. No caso de A elite do atraso, o subtítulo é bastante pretensioso - da escravidão a Lava Jato. Quem estiver à procura de informações históricas, remontando um quadro de evolução dos acontecimentos históricos, não encontrará esse tipo de abordagem. Ora, então, qual é a bordagem de Jessé?

O autor procura analisar as ideias dos intelectuais fundadores ou dos chamados intérpretes do "jeitinho brasileiro" - Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e, em outros momentos, Darcy Ribeiro. Para Jessé, esses intelectuais foram responsáveis por criar uma interpretação mistificadora do Brasil. Esse olhar chega/chegou a um nível de sofisticação tão demasiado, que fez/faz com que esquerda e direita defendam esses pressupostos. A interpretação sugerida por esses intelectuais do mundo tropical é limitada por não levar em conta eventos que são próprios da história do Brasil.

A crítica mais contundente nesse sentido é dirigida a Raymundo Faoro, um intelectual e erudito, que com sua habilidade, cria uma tese completamente equivocada e, mesmo assim, tem o respeito de muitos sofisticados estudiosos. Faoro cunhou o termo patrimonialismo para tentar explicar a corrupção da sociedade brasileira. Segundo essa tese, mais tarde robustecida pela ideia do "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, a corrupção brasileira é resultado da herança portuguesa. Faoro realiza um movimento histórico que o leva até a Idade Média para tentar mostrar que os vícios que existem na sociedade brasileira vêm de longe; remontam a confusão entre aquilo que era do rei e aquilo que pertencia ao Estado. 

O que é interessante nesse sentido, segundo Jessé Souza, é que essa tese passa a ser um curinga utilizado no Brasil para demonizar a coisa pública. O brasileiro médio, principalmente, originário da classe média, possui um ódio, uma ojeriza profunda a tudo que diz respeito ao público. Isso não nasceu de forma gratuita, sem conexões com essa interpretação. Há um convencimento coletivo invisível tentando mostrar que tudo que se refere ao Estado não vale a pena. Esse olhar enviesado, inamistoso para com a coisa pública, deriva dessas teses controversas sobre o público. 

Segundo um viés já apresentado por Marx, as ideias da classe dominante são ideias que comandam o mundo. Ou seja, a elite do dinheiro é minoritária. Ele possui dinheiro, mas não possui o quantitativo suficiente para conquistar a sociedade. O que esse setor privilegiado da sociedade faz? Trabalha as ideias, mobilizando interesses e criando consensos. Melhor do que dominar alguém pela força, é dominar pelas ideias. Dominar pelas ideias significa que o dominado fará tudo o que o outro quer e ainda terá uma sensação virtual de que está livre. É aí que entra o sujeito imbecilizado de classe média. 

Para Jessé, a classe média tem uma importância fundamental para que os consensos da sociedade sejam formados. Ela lida com dois supostos necessários: (1) a superioridade moral; (2) e o capital cultural. A superioridade moral dá a noção de que ela não é rica, mas é honesta. De que ela é pura. De que tudo que ela possui é resultado de seus esforços. De que o governo é ladrão e, ela, pura, acanalhada. De que somente ela trabalha para sustentar o país. De que os pobres são violentos por natureza. Já o conceito de capital cultural, pois, é desse conceito, que torna possível à classe média, o continuísmo dos "seus méritos". Mérito (daí vem a ideia de meritocracia) é uma palavra cara à classe média. Para ela, tudo que ela consegue o faz por que lutou, esforçou-se, empreendeu. Sem conseguir perceber que na hora da largada, ela já possuía determinados privilégios que os indivíduos das classes inferiores não possuíam. 

A invibilização dessas questões torna o debate público uma verdadeira quimera. O verdadeiro motor da corrupção não é o patrimonialismo. O patrimonialismo é uma consequência. Segundo Jessé, há o esquecimento de dois fatores fundamentais para entendermos o Brasil: (1) a escravidão; e (2) o mercado e suas hostes de rapina, capazes de saquear "oficialmente" as riquezas produzidas pela sociedade. As deformações existentes na sociedade não são resultado de uma suposta herança portuguesa; essa herança vinda de Portugal não é o motor principal. Essa noção culturalista da herança portuguesa esconde os três séculos em que seres humanos foram tratados como bichos, como objetos, criando uma estrutura psicológica no país. A noção de cidadania é deformada em decorrência desse violência herdada historicamente. Logo em seguida, é importante dizer que nunca se expõe a corrupção praticada pelos agentes do mercado, como se a corrupção fosse um atributo subjetivo do setor público; como se ela estivesse reservado aos agentes políticos na sua relação com o Estado. A verdadeira corrupção é praticada pelo mercado que consegue "parasitar" por meio dos juros da dívida e dos juros praticados no Brasil uma das maiores fraudes orçamentárias do mundo, que é a disputa do fundo público para o bolso de alguns privilegiados do setor financeiro. 

As pessoas condenam os espantalhos que são erguidos por determinados intelectuais - a corrupção; condenar determinados atores - principalmente os políticos de esquerda. E, assim, não percebem que são feitas de imbecis, pois estão olhando para os agentes errados. 

Na parte final do livro, Jessé faz uma rápida abordagem sobre a mídia (principalmente a Rede Globo) e a sua associação com a operação Lava Jato. Para Jessé, a Rede Globo possui uma das organizações midiáticas responsáveis por impedir os avanços democráticos do país. A Globo é um agente político bastante poderoso. Ela possui um poder incomensurável, que é a intangibilidade da imagem. Desde a sua fundação, esteve associada com o poder. Foi uma da porta-vozes dos governos militares e até os nossos dias continua a encenar um "teatrinho" patético para sociedade. Ou seja, de que possui um comprometimento imparcial com a produção de um jornalismo profissional, quando, no fundo, suas intenções são pró-mercado e anti-trabalhador. A função da Globo é "distorcer sistematicamente a realidade brasileira". 

A Lava Jato é uma das operações que foram mais bem urdidas que, põe no centro do debate, a questão da corrupção. É importante salientar que é graças a isso, que passou a haver um casamento entre a Globo e a Lava Jato. A Lava Jato criou no imaginário do brasileiro médio a noção de que ela tem um alvo: o corrupto, seja ele de que natureza ou origem for. Ela atacou o consórcio do Estado corrupto com determinadas empresas do setor privado. Entra também a noção de que o público deve ser privatizado - o caso da Petrobrás - pois nós não temos vocação para termos empresas assim. 

Todavia, a Lava Jato tornou-se um importante mecanismo político para atacar principalmente os movimentos populares, corroborando com a tese do surgimento do populismo, outra importante palavra trabalhada no livro. Chama-se de populismo todo movimento que busque representar a soberania popular, como se as classes populares não tivessem discernimento e fossem facilmente enredadas por líderes oportunistas. Populismo é um conceito que busca desprestigiar os movimentos populares; trabalhar a noção de que as massas são facilmente enganadas, o que é um verdadeiro logro. As elites são isentas de manipulação? Elas não enganam ou desviam a atenção do povo? Sim. Fazem isso o tempo todo.

O livro de Jessé é um importante elemento para se entender a conjuntura política do Brasil e conectá-la com a história. Jessé mostra-se com a percepção afiada. Estabelece um debate importante. Faz-nos pensar sobre os lances estratégicos da chamada elite do atraso, que vive às expensas do povo. Fiquei com uma impressão de que o livro foi escrito de maneira rápida. Senti a falta de relação entre o poder das elites e a sua relação com a Lava Jato, como é prometido no título do livro - ou, talvez, eu não tenha percebido por conta de minhas limitações.

Excelente leitura! Vamos à Subcidadania brasileira

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