sexta-feira, dezembro 10, 2010

A teia frágil da vida

Fato curioso se deu, o que me permitiu uma reflexão afetada, excessivamente magra. Na verdade, um fato levou ao entendimento de outro fato. Foram quase complementares. Emendaram-se. O conúbio dos acontecimentos e as impressões suscitadas me deixaram satisfeito.

Estava numa fila de mercado. Os produtos da mercancia para o almoço estavam nas mãos. A enorme fila movia-se preguiçosamente como uma serpente cansada. Olhava as mercadorias. Os salgados, os doces, as revistas, as bugigangas miúdas a formarem paredes no corredor minúsculo. São colocados como que para despertar o desejo de crianças desatentas. São verdadeiras redes, arapucas. Ao longe eu avistei uma pequena planta, uma espécie de bonsai. Fiquei impressionado com a delicadeza do pequeno arbusto. As folhas pareciam de uma pitangueira. Ali, estática, a beleza miniaturizada, fez-me pensar na vida. Como poderia existir algo assim? Como a natureza é encantadora! O silêncio de eras a fecundar processos. A vida teimosa que brota e se estabelecesse em todos os locais. Ofereça as condições e ela instala-se. A fragilidade da planta me impressionou. Ela não era bela por ser grande e ter características extraordinárias. Simplesmente, ela era bela por ser pequena, cândida, delicada, cheia de silêncios poéticos.

A plantinha me fez pensar num episódio que se dera lá em casa. Uma borboleta entrou em nossa casa. As portas e janelas estavam abertas. A criatura voadora introduziu-se e por lá ficou. Minha mãe ficou feliz com a visita. Segundo ela, aquela novidade era mensageira de presságios positivos. Enxergou augúrios faustosos no simples vôo de uma borboleta. Crédula em demasia, minha mãe é uma criatura incrível. Aquiesci consternado, enxergando absurdos naquela situação.

A borboleta era enorme. As asas eram negras, com desenhos curiosos – pequenas curvas nas extremidades das asas; uma espécie de olho em cada uma das excrescências que lhe saíam do corpo exíguo. Voava por todos os lados. Pousava no teto. Embrenhava-se em ocos escuros. Outro sujeito a teria fulminado nos primeiros momentos da aparição inusitada.

Mas comecei a perceber após três ou quatro dias, que os seus saracoteios aéreos estavam cada vez mais cansados. Voava com dificuldades. Seus vôos passaram a ser rasteiros. Não pousava mais no teto. A mudança era clara. As acrobacias áreas dos primeiros dias transmudara-se em desconexas ações irregulares. Certamente a criatura alada estava envelhecendo, cumprindo o seu ciclo vital.

Num certo dia, percebi que ela não mais voava. Debatia-se em arremessos inúteis. Estrebuchava. Produzia apenas barulho. O corpo pequeno não conseguia articular as grandes asas. Parecia ter esquecido a capacidade que antes possuíra. Ficava observando aquele fato. Minha mãe, sentimental, dizia:

- Tadinha da bichinha!

Em dada ocasião resolvi minorar-lhe o sofrimento e aplicar a eutanásia. Não há uma ética para determinados bichos. Estava sentado e notei que, no descontrole da tentativa de voar, o bicho vinha para cima de mim. Todos dormiam em casa. Era quase meia-noite. Eu lia no sofá. Decidi borrifar uma pequena dose de veneno. O efeito foi imediato. O bate-bate de asas. O ruflar descompassado. A tentativa de desgrudar do solo para, talvez, um último vôo. Eu era um indivíduo cruel e frio. Suscetibilizei-me com aquele pensamento. Aos poucos as asas começaram a subir e a descer num gesto lento, brando. Coloquei-a do lado de fora de casa.

No outro dia, minha mãe ao acordar, viu a borboleta que ainda arfava no quintal.

- Quem quem... a bichinha morreu! – disse cheia de pesares. Contei o acontecido e como ministrara o remédio letal.

- Por que tu fez isso? – inquiriu.

- Ela tem um ciclo vital, mãe. Já estava chegando a hora dela morrer. – respondi discreteando. Certamente ela não entendia aquilo.

- Farei um enterro digno – disse eu. Era desarrazoado enterrar uma borboleta. Somente os homens enterram os seus mortos. Existem fortes elementos religiosos e culturais envolvidos nisso. Enterrar uma borboleta era, simplesmente, medonho. Percebi que a questão ganhara contornos filosóficos.

Há um relógio vital a regular os organismos. Os seres vivos ao ascenderem à vida, as areias do tempo iniciam um processo incontrastável de contagem. A borboleta voara. Cumprira o desígnio da natureza. A plantinha também estava com o seu tempo contado. A beleza, o viço; o silêncio da planta a vesti-la de encantos. Mas, no invisível, a ampulheta da existência a contar-lhe os minutos de forma irrecusável. Olhei os homens e mulheres que formavam a fila; outros que caminhavam apressados nas entranhas do centro cheio de víveres. Olhei mais detidamente e verifiquei que eles não possuíam mais cabeça. No lugar do crânio, ampulhetas. A entropia a roer-lhes a estrutura orgânica, a envelhecer tecidos, órgãos, sistemas. Minha visão era absurda. Puro devaneio.

A planta era uma metáfora. A borboleta era um símbolo. A beleza silenciosa e delicada das folhas verdes dava encantos singulares à planta. Entendi que a vida tem encantos. O vôo da borboleta afirmava que enquanto vivemos podemos voar. A natureza nos dá aptidões e depois nos toma. Terrível é receber essas aptidões e não usá-la. É passar pela vida e não viver. Certamente aquilo que me sensibilizou. Fui para casa pensando como poderia voar e como poderia me vestir com o silêncio delicado das plantas.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque Data:

09 de dezembro de 2010, quinta-feira.

2 comentários:

Anônimo disse...

Porque viver é um nascer a cada dia. Nossas atitudes perante a vida é o que farão nossas asas baterem mais fortes e nos levar mais longe ...

Abraço

Carlinus disse...

Verdade, Carla.

Abraços!