quinta-feira, janeiro 06, 2011

Mais que sentidos

Escrito há mais de 2 anos.

Os sentidos nos permitem apreender o mundo. Com o paladar podemos experimentar sabores vários – o prato suculento, o beijo. O tato nos revela a superfície, a temperatura das coisas. A visão nos permite ver, contemplar o mundo com suas cores variadas. O olfato nos faz sentir as fragrâncias e odores mais variados e complexos. A audição é uma porta por onde permitimos que os sons entrem em nossa dimensão interior. À medida que os ciclos evolutivos foram se dando, essas habilidades foram sendo desenvolvidas.

Esse fato é tão marcante que, na natureza, há animais que possuem um sentido mais aguçado que o outro. Um exemplo claro são os cães. Esses animais possuem uma audição e um olfato densamente desenvolvidos. As águias enxergam uma presa a quilômetros de altura. Isso permite a elas, mesmo estando voando muito alto, capturarem os animais que lhes servirão de refeição. Os tubarões percebem a presença de sangue a muitos metros de distância. As serpentes percebem a presença de outros seres pela língua bifurcada. As baratas, pelas antenas. Isso me faz lembrar um conto extraordinário de Guy de Maupassant. O escritor cria a figura de um personagem que escreve para o seu médico contado como os sentidos são a única ponte que liga o homem ao mundo. “Nossos órgãos seriam os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós”. Esse exterior nos escaparia por suas proporções, suas propriedades infinitas e impenetráveis, suas origens, seu porvir ou seus fins, suas formas longínquas e suas manifestações infinitas. Nossos sentidos e órgãos determinam e limitam as propriedades aparentes da matéria. Por possuirmos apenas cinco sentidos, a nossa capacidade de apreensão do mundo é profundamente restrita.

O personagem do conto de Maupassant diz ainda que o que o fez acordar foram as palavras de Montesquieu: “Uma órgão a mais ou a menos em nossa máquina teria feito de nós uma outra inteligência”. E em outra parte é dito assim: “Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a menos ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns órgãos a mais, descobriríamos em torno de nos uma infinidade de outras coisas de que suspeitaremos por falta de meios de constatá-las”. O que gosto nesse conto de Maupassant é justamente a exatificação científica com uma carga fictícia da importância dos sentidos para a apropriação do mundo.

Percebe-se com muita clareza que os sentidos humanos são a porta que estabelece relação entre o homem e o mundo exterior. Se enxergássemos mais do que enxergamos possivelmente nossa relação com a matéria seria diferente. Se ouvíssemos mais do que ouvimos atualmente possivelmente arrumaríamos mais encrencas. Ouviríamos aquilo que não podemos ouvir e isso aumentaria o nível de desarranjos nos relacionamentos. Em compensação também desenvolveríamos a prudência e aprenderíamos a falar de forma mais sábia.

Todavia, no que diz respeito aos sentidos humanos, fiquei pensando naquelas pessoas que perderam a funcionalidade de um ou alguns deles. Essa reflexão me veio na noite de ontem quando fui à aula de libras – minha primeira aula. Meu professor é surdo e mudo. Contando por meio de sinais que perdera a audição e a capacidade de falar, disse em certa momento que agradecia a Deus por ter perdido a audição. Aquela afirmação me aturdiu. Fiquei pensando nessa afirmação paradoxal. Numa época como a nossa em que se preza pela perfeição, pelas formas, o não ouvir não é desejado por ninguém. Em outras sociedades, ele simplesmente teria sido morto. Os gregos espartanos o teriam lançado de um precipício. Para eles não eram toleradas deficiências congênitas. Havia uma valorização exacerbada da perfeição aparente.

Fiquei pensando como deve ser viver sem ouvir. Conta-nos a história que as melhores composições de Beethoven surgiram quando da perda da audição. A Nona Sinfonia, estrondosa, estrepitosa, um hino composto à alegria foi um projeto realizado na surdez do maestro. Parece uma contradição que alguém tenha composta uma peça da magnitude da Nona Sinfonia com um poema intitulado Ode a alegria; e o coral no quarto movimento da obra retumbe poderosamente elevando a voz a um quase inalcançável esforço. No dia em que a peça foi apresentada pela primeira vez, Beethoven por está de costas, nem ouviu os aplausos do público entusiasmado. Beethoven ouvia a sinfonia interiormente. As peças mais complexas do compositor alemão – os quartetos de cordas – também foram compostos nesse período. A capacidade perdida fez desenvolver outras percepções e habilidades.

No filme Ray Charles de 2004, do diretor Taylor Hackford, há um cena fantástica em que Ray conversava num restaurante com uma moça - aquela que viria a ser sua esposa. De repente, ele, que era completamente cego, pergunta a ela mais ou menos assim: “Você está ouvindo o som do beija-flor lá fora batendo as asas?”. Ouvir o som de um beija flor batendo as asas parece ser uma atividade extraordinária para pessoas comuns, acostumados a ignorar as percepções sensíveis. Não para alguém como Ray Charles. O fato é que uma capacidade perdida nos possibilita o desenvolvimento de outras habilidades incomuns. É mais ou menos aquilo que conta Herman Hesse no livro Sidarta. É dito que Sidarta tendo a capacidade de ouvir, havia começado a ouvir diferentemente dos outros homens. Ele podia ouvir o som rumoroso do rio, das garças que voavam alto, dos bambus que brotavam nos campos. Uma espécie de sensibilidade que somente é apreendida quando somos capazes de valorizar aquilo que sabemos perder. É como conta ainda o escritor cristão Philip Yancey que uma certa amiga estava perdendo a visão e em pouco tempo não enxergaria mais nada. Ela resolveu, antes que as trevas completas chegassem, visitar os vales e bosques do Colorado nos Estados Unidos, a fim de que aquelas paisagens se apaziguassem, fossem encaixadas e vivessem em sua memória.

Fico pensando como seria viver sem poder ouvir uma sonata de Brahms, uma sinfonia de Mahler ou um concerto de Mozart – da música que segundo Maupassant é “vaga como um sonho e exata como a álgebra”; o rumorejar das águas de um ribeiro; o som dos pássaros cantarolando; o som do vento envergando um canavial ou um bambuzal; o som afastado de um final de tarde; a voz daqueles ou daquela (e) a quem amamos. Assenta em mim a impressão que devo valorizar mais os meus sentidos, valorizar as potencialidades comunicativas e relacionais que eles me conferem. Saber sentir além dos sentidos é uma habilidade a ser desenvolvida. Ouvir com a quietude de monge é algo a ser buscado.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Quinta-feira, 7 de agosto de 2008, 10:49:12.

4 comentários:

Clédson Miranda disse...

Cara, o que é isso?! Em meio a tanta mediocridade que povoa esses espaços internáuticos, eis que encontro um bolg realmente interessante!

Ganhou um leitor assíduo e exigente, rapaz! Pedido: configure o seu blog para que possamos nos inserir como seus acompanhantes no Blogspot.

Abraço e obrigado pelo conteúdo do seu blog,

Clédson Miranda

Carlinus disse...

Clédson, que bom que tenha gostado do blogg. É realmente complexo ter pessoas para acompanhar aquilo que fazemos. A maioria das daqueles que frequentam a net está atrás de mediocridade e supercialidade. Tentamos contribuir de alguma forma com um material que seja plausível, necessário; tentamos fazer do mundo um lugar melhor, mas como é árdua essa tarefa. Verifiquei que você também tem um blogg muito bom. Passarei a acompanhar o seu espaço!

Saudações!

Clédson Miranda disse...

Olá, Carlos, que bom que tenha lhe agradado o Transcendência!

É nele que exponho minhas impressões sobre o mundo. Lá, aparecem temas ligados à Psicologia, Psicanálise, Filosofia Existencial, Cinema, Literatura, Poesia... mas não tenho compromisso nenhum com teorias... o Transcendência é meu bolo de chocolate recheado de coco servido com suco de graviola, que degusto com os meus amigos na soleira da minha casa!

Como nas casas dos amigos, ao passar por lá, sinta-se à vontade para revirar todas as postagens, todos os links, todos os comentários... nada lá é secreto!

Ah, deixe também o registro das suas impressões sobre as minhas impressões (adoro os jogos de espelho!). O banquete está servido... espero que lhe seja um deleite degustá-lo... e que o faça demoradamente!

Abraços,
Clédson

Clédson Miranda disse...

P. D 1.: Se tiver interesse em conhecer alguns textos que postei, inclusive algumas pequenas crônicas minhas, acesse estes links abaixo:

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2007/08/fugacidade-e-impermanncia.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/08/em-meio-tudo-onde-est-sua-verdade.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/07/quando-o-amor-no-suporta-as-diferenas.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/07/olhar.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/07/eis-vida-eterno-devir.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/01/de-filosofices-e-inutilidades.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/01/curriculum-vitae-ou-do-manifesto.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2007/11/eis-por-que-amo-o-fernando-pessoa.html

http://cledsonmiranda.blogspot.com/2008/04/meu-fanatismo-por-florbela-no-se.html


P. D 2.: Se quiser postar algo de sua autoria no Transcendência, sinta-se à vontade para fazê-lo. Basta que entre em contato comigo por e-mail.