Por Alexandre Busko Valim
Um dos primeiros signatários do manifesto denominado
“Dogma 95” surgido em Copenhague em 1995, foi Lars Von Trier. O
manifesto procurava contrariar algumas tendências do “cinema comercial” e
recuperar um cinema que consideravam estar morto. O Dogma 95 opunha-se ao conceito de autor, de cinema individual e efeitos especiais. Segundo tal manifesto “A
tarefa ‘suprema’ dos realizadores decadentes é enganar a audiência. É
disso que estão tão orgulhosos? Foi isso que ‘100 anos’ nos deram?
Ilusões a partir das quais as emoções podem ser comunicadas? (…) Uma
ilusão da dor e uma ilusão do amor”. Se observarmos as regras do “voto de castidade”[1] contido no manifesto assinado por Von Trier, veremos que Dogville não pode ser considerado como uma produção tardia do Dogma 95. No entanto, o radicalismo formal e de conteúdo em Dogville lembra, ao menos, as ousadas experiências feitas pelo movimento dinamarquês.
Dogville é uma pequena cidade, com pouco mais
de uma dezena de residentes, situada em algum lugar entre as montanhas
do meio-oeste estadunidense. A história se passa durante a Grande
Recessão Americana na década de 1930 e gira em torno de Grace (Nicole
Kidman), uma jovem que, fugindo de perigosos gangsteres, acaba
encontrando refúgio em Dogville. Encantado com a moça, o
introspectivo Tom (Paul Bettany) propõe que a cidade ofereça abrigo a
Grace que, em troca, faria pequenos serviços para seus moradores. Aos
poucos, porém, os aparentemente amáveis habitantes de Dogville,
ao descobrirem que ela está sendo procurada pela polícia, vão exibindo
um lado sombrio e passam a explorar a garota, a impedindo de abandonar o
lugar.
Von Trier criou um espaço cinematográfico simples e
despojado incorporando elementos teatrais e literários; utilizando
vários elementos do teatro de Bertolt Brecht. Minimalista, o diretor
utilizou alguns objetos de cena mas nenhum cenário; apenas linhas
pintadas no chão demarcando duas ou três ruas e algumas casas. O cenário
invisível (sem paredes, janelas ou portas) permite que o espectador
veja os coadjuvantes em seus afazeres longe do foco principal da ação.
Além de servir como metáfora do filme, não desviando a atenção do
espectador para nada além da narrativa, o artifício ressalta a
dramaticidade através da encenação. Desse modo, Von Trier consegue
estender a profundidade de campo e sublinhar as conseqüências de cada
ação individual em relação à comunidade como, por exemplo, nas
seqüências em que Grace é estuprada.
Ao abdicar dos cenários e dos adereços, o diretor
procurou valorizar o âmago de cada personagem para que o espectador,
despojado do “supérfluo” e do “superficial”, pudesse olhar apenas para o
que verdadeiramente interessa em seu filme: a desumanidade que “emana”
da humanidade.
Embora o filme seja composto por um prólogo, que
apresenta os personagens, e nove capítulos, sua argumentação pode ser
divida em três partes: 1 – Grace é aceita na cidade ao se tornar útil a
cada um dos moradores – oferecendo sua companhia a um homem cego que não
admite a cegueira (Ben Gazzara), colhendo maçãs para um sitiante
(Stellan Skaarsgard) ou cuidando do pomar de Ma Ginger (Lauren Bacall). 2
– Quando a polícia e os gangsteres intensificam a procura por Grace e
os moradores tornam-se cruéis. 3 – O desfecho da trama, com uma mudança
de atitude de Grace.
Dentre as leituras possíveis de Dogville, a que trata o filme como uma parábola moral me parece ser a mais interessante. Nessa perspectiva, Dogville
é uma “novela exemplar” sobre o comportamento humano, a vida em
comunidade e a tensão que se estabelece entre a escolha individual e a
norma coletiva. Na segunda parte do filme, de maneira completamente
oposta à primeira impressão que Grace tem quando conhece os residentes
da pequena cidade, os moradores revelam a sua vilania, representada
através de pecados da natureza humana como: a vaidade (Chloe Sevigny), o
orgulho (Ben Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc
Barr), a avareza (Lauren Bacall) e a inveja (Stellan Skarsgard). Desse
modo, por trás do gesto de tolerância e compreensão coletiva, só haveria
torpes interesses individuais.
Em algumas seqüências existem motivos que estão
relacionados a uma crítica do diretor à sociedade estadunidense como,
por exemplo, no escritor pragmático que tenta transformar o vilarejo em
um laboratório para testar suas teorias moralistas e obter material para
um “grande livro”; o hábito de discutir as questões da comunidade em
assembléias paroquiais – uma atividade coletiva, mas que no filme é uma
máscara que esconde um individualismo conservador e possessivo, além do
ódio ao forasteiro; quando Grace ensina o estoicismo aos filhos de Vera
(Patricia Clarkson) lhes mostrando como suportar a pobreza e as
frustrações sem revoltas. Entretanto, apesar destes pontos, talvez o
filme seja mais uma crítica à sociedade de classes do que à sociedade
estadunidense.
De maneira bastante moralista o filme afirma
repetidamente, e de forma agressiva, que todos somos responsáveis pelos
nossos atos, e se temos problemas é porque não fazemos o suficiente para
resolvê-los. Assim, nossa ignorância e ausência de um verdadeiro
interesse pelo coletivo, ilustrado em várias passagens, é a alavanca que
causa dor e sofrimento a nós mesmos; como, por exemplo, na seqüência em
que um morador é reprimido verbalmente pelos outros dentro da igreja,
ao lembrar que eles nunca se ajudam.
Após oito kafkianas e angustiantes partes, Grace[2] se encontra com o pai gangster (James Caan) dentro do carro e iniciam uma conversa sobre o destino de Dogville.
O gangster, na perspectiva que apontamos anteriormente, é um Deus
severo e vingativo assim como no Antigo Testamento. Nesse momento, ela e
o pai dialogam sobre a soberbia: Ela quer o perdão para os habitantes
da cidade, como se dissesse “eles não sabem o que fazem”. Deus a acusa
de soberbia por fazer a concessão de perdoar quem lhe é inferior e lhe
impingiu tanto sofrimento. Grace diz que o pai é soberbo devido à sua
vontade de vingança e pede poder, que lhe é concedido, para salvar Dogville.
Entretanto, ao sair do carro, e ouvir Tom “o intelectual” dizer que
escreveria sobre o que se passou, que aquilo seria passível de análise,
ela se desilude com a humanidade e purga Dogville com o aniquilamento – houve aplausos entusiásticos na sessão em que eu o assisti.
Uma leitura possível do personagem Tom é que ele
representa tão somente a parte da sociedade intelectualizada que, no
filme, sempre repete as mesmas coisas, confunde os outros com seus
discursos vagos; mente para dar coerência às suas teorias e tem medo de
uma inserção mais incisiva nos problemas sociais; os exemplos estão
presentes em várias seqüências, como por exemplo, quando ela é estuprada
próximo dele. A esperança que Grace tinha na humanidade se perde quando
os que realmente poderiam fazer algo, o titubeante Tom, não fazem e
reafirmam sua hesitação e passividade; uma crítica ao papel dos
intelectuais como operadores sociais, que reforça a opinião do diretor: a
humanidade não tem salvação.
A mensagem na seqüência final, quando Grace ouve os
latidos do cachorro chamado “Moisés”, é que o animal tinha um motivo
para não gostar dela, afinal ela havia roubado seu osso. Ela permite que
o cachorro fique vivo pois nele há algo que não havia nos habitantes de
Dogville, o que era? Nesse momento, o narrador em off diz:
“será que alguém terá coragem de perguntar? e se isso for feito, será
que alguém terá coragem de responder?”. A resposta soa um tanto quanto
óbvia e reafirma Grace como uma mártir destinada a limpar tais impurezas
como um Cristo redivivo e altivo; No entanto, no encontro imaginado por
Lars Von Trier ante a desumanidade de Dogville, a divina Grace, sem nenhum desejo de conceder o perdão, desencadeia o “Dia do Juízo Final”.
As quase três horas de filme terminam com fotografias
tiradas nos EUA na década de 1930 e com um fundo musical de “Young
Americans”, de David Bowie, reafirmando a crítica do diretor à política
estadunidense. Juntamente com Dogville, foi produzido um documentário com os relatos – em forma de confessionário – dos participantes do filme, intitulado “Dogville Confessions”. Dogville será o primeiro de uma trilogia centrada nos Estados Unidos e chamada USA: The land of opportunities. O segundo filme, que começa a ser rodado em março de 2004, chama-se Manderlay – sobre a escravidão no sul dos Estados Unidos – e o terceiro Washington.
Em Dogville, Lars von Trier apresenta uma
percepção pessimista da humanidade, onde impera o cinismo, a hipocrisia,
a chantagem, a vingança, a mentira, e uma visão dogmática que, além de
rejeitar qualquer alternativa, simplifica e naturaliza a maldade.
Ficha técnica
Dogville
Dinamarca / Suécia / França /Noruega / Holanda / Finlândia / Alemanha / Itália / Japão / Estados Unidos / Inglaterra. 2003.
Duração 177 min.
Direção: Lars Von Trier.
Roteiro: Lars Von Trier.
Distribuição: Imovision.
Elenco: Nicole Kidman – Grace; Harriet Andersson – Gloria; Lauren Bacall – Ma Ginger; Paul Bettany – Tom Edison, filho; Blair Brown – Sr. Henson; James Caan – O pai; Patricia Clarkson – Vera; Jeremy Davies – Bill Henson; Ben Gazzara – Jack McKay; Philip Baker Hall – Tom Edison, pai; John Hurt: Narrador off; Zeljko Ivanek: Ben
Dinamarca / Suécia / França /Noruega / Holanda / Finlândia / Alemanha / Itália / Japão / Estados Unidos / Inglaterra. 2003.
Duração 177 min.
Direção: Lars Von Trier.
Roteiro: Lars Von Trier.
Distribuição: Imovision.
Elenco: Nicole Kidman – Grace; Harriet Andersson – Gloria; Lauren Bacall – Ma Ginger; Paul Bettany – Tom Edison, filho; Blair Brown – Sr. Henson; James Caan – O pai; Patricia Clarkson – Vera; Jeremy Davies – Bill Henson; Ben Gazzara – Jack McKay; Philip Baker Hall – Tom Edison, pai; John Hurt: Narrador off; Zeljko Ivanek: Ben
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