terça-feira, maio 05, 2009

Comentário ao filme "Desmundo"

O filme “Desmundo”, do diretor Alain Fresnot, é um trabalho de competência. Esta encenação cinematográfica foi inspirada na obra homônima da escritora brasileira Ana Miranda. Não existe diretamente uma harmonia entre a obra de Miranda e o filme do diretor Fresnot. O filme se passa no século XVI, mais precisamente 1.570. Trata-se de um período singular da história nacional. Faziam-se apenas 70 anos da chegada de Cabral às terras brasileiras. É digno de se afirmar que há um hiato de 30 anos entre a chegada de Cabral – 1.500 a 1.530. Ou seja, 1.570 representa em termos cronológicos apenas 40 anos de exploração da terra brasileira.
Nesse sentido, o filme busca mostrar a rusticidade de como se encontrava a terra “brasis”. Não havia grandes instalações; construções sobejas; pavimentações necessárias. A colônia não passava de um vilarejo habitado por tipos estranhos. Portugal buscava naquele presente histórico povoar a terra. Há no filme uma pretensã, uma fidedignidade sociológica, histórica e antropológica. Pode-se aduzir, tocando neste aspecto, que a reprodução da contingência histórica é primorosa, esteticamente feliz.
A temática circunda em torno da história de Oribela, moça da metrópole enviada com outras donzelas pela rainha de Portugal para gerar homens com sangue português. Assim, há como que uma intenção da metrópole em fazer com que o sangue “puro” do colonizador esteja presente no Novo Mundo. A protagonista do filme possui trejeitos adolescentizados. As cenas se desenvolvem em torno da sua dor, da sua luta pessoal. A epicidade do filme se secundariza para lançar em primeiro plano o mundo de Oribela. A sua tarefa parece ser se dês-vestir da dor que a persegue como uma sombra negra. Ela é a mulher indômita, de vontade aflita, de nobreza de mártir, que sofre por causa de um desejo ardente de voltar a um Portugal distante como uma promessa divina, paradisíaca de liberdade. A sua dor acaba atingindo àqueles que assistem ao filme. Brota como que um sentimento de comiseração mesclado de indignação.
A moça acaba casando forçada pelas circunstâncias com Francisco Albuquerque, um colono rústico. De feições brutas. Cabelos longos, barba espessa. Homem imponderado, ganancioso, despido de sensibilidades; sequioso amante da luxúria, que acaba possuindo a donzela à força. Francisco é um homem do sexo. Ele possui Oribela com gestos animalizados. É de se ressaltar que o filme deixa transparecer com muita limpidez a situação da mulher do século XVI. O sexo feminino estava submetido ao desejo masculino. A vontade da esposa era para o “seu senhor”, que a subjugava com força – e às vezes com violência impudica. O filme é um retrato intencional dessa realidade.
Outro aspecto abordado e presente no filme é o poder da Igreja, que regia as mentalidades de forma absoluta. Não se discute com o padre. Ele representa a instituição com tentáculos virtuais enormes. Ela é uma espécie de Leviatã, um ente mitológico. Os sacerdotes são os embaixadores, os soldados que levam à frente as promessas e o poder real e ideal da igreja. A religião, assim, está incrustada na mente do povo de forma poderosa.
O filme possui assim por dizer uma carga universalizante, pois aparece a figura de um sarraceno, chamando em uma cena de “marrano”. Vale mencionar que identificar alguém como marrano naqueles dias era atribuir a “designação injuriosa dada outrora aos mouros e judeus; ou indivíduo excomungado, sujo, imundo, porco”. O dono dessa alcunha é Ximeno, “um cristão novo”.
Não se sabe se existe um caráter intencional da parte do diretor por expor no filme uma diversidade de línguas. Inicialmente, vale afirmar que o filme respeita a história que está escondida naquele emaranhado de fala portuguesa quinhentista reproduzida ficcionalmente. Trata-se de um português arcaico, antigo, quase uma mescla do espanhol com o galego. Em alguns moments, os sons soam como castelhano. Há ainda no filme a presença da língua hebraica e árabe, atribuída a Ximeno; do latim, usado na reza ds crentes e na proclamação dos rituais católicos; da língua indýgena, representando a ação primária dos homens que habitavam a terra quando da chegada dos portugueses; a presença de dialetos africanos, na figura de um escravo de Ximeno.
Num dado sentido, podemos inferir que essa babel globalizante de línguas pode possuir uma impressão simbólico-profética. É como se essas línguas constituíssem o tronco que faria surgir um português que é resultado de um processo progressivo de intensas manifestações sociais, de cruzamento étnico. Essas características forjam uma percepção naquele que assiste esta encenação cinematográfica.
A língua é um fato social. É o resultado da cultura imediata. Entendendo-se, assim, é de se salientar que o filme contribui para identificar a ampla gama de elementos lingüísticos que atuaram diretamente na formaçóo do português do Brasil. A língua portuguesa brasileira possui características somente inerentes a ela. A dogmatização de entendimento, conforme procedem os gramáticos, não permite que se perceba o processo de flexibilização da língua. Surge, assim, um devenir, um vir a ser da língua. Toda língua falada por um povo passa por este processo de “tornar-se”. Estes são os aspectos mais imediatos e identificáveis no filme do diretor Alain Fresnot.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: Terça-feira, 3 de abril de 2007, 20:37

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