quarta-feira, agosto 29, 2018

A nova razão do mundo

“Nunca fomos tão livres. Nunca nos sentimos tão incapacitados.” Zygmunt Bauman 

Tenho acompanhado à distância algumas entrevistas dos postulantes à eleição para presidente da República, que ocorrerá em outubro próximo. Semana passada, a Globo News promoveu uma série de debates com os economistas de cada um dos candidatos. Observe: a conversa não se estabeleceu com o suposto ministro da educação ou da saúde. O escolhido foi o chefe da economia. 

Existe uma preocupação profunda sobre como a equipe do novo presidente da República vai conduzir os destinos da economia do país. Até esse ponto tudo parece está muito bem. Na mesma entrevista promovida pelo canal do Grupo Globo, Miriam Leitão, a empregada mais comprometida com a riqueza dos patrões, esforçava-se em uma das entrevistas para tentar entender como o mercado não seria afetado por determinadas intervenções. 

Os jornais têm noticiado o frenesi em torno da alta do dólar. A explicação: a indefinição do cenário eleitoral. Lula estando preso e, mesmo assim, ainda na liderança das pesquisas é algo inaceitável para essa entidade sem rosto, imaterial, chamada mercado.

As empresas que fazem jornalismo no Brasil pertencem às famílias mais ricas do país. Portanto, defendem determinados temas por conveniência própria. São defensores de inclinações econômicas que não comprometam o status quo político. O termo mercado ganhou ares de sacralidade. Destoar de sua atuação é cometer um sacrilégio. Mercado é uma entidade invisível. Ninguém o ver, mas ele comanda tudo. Ele pertence a seis famílias, que monopolizam serviços, ganhos, aplicações; desmantelam economias quando é necessário; apropriam-se dos resultados do trabalho coletivo; subordinam governos; e compram a política. 

O mercado possui uma ideologia e ela se chama neoliberalismo. Sua força está justamente no anonimato. Ela não é visível. Poucos sabem o seu significado. Alguns até ignoram que ela ainda prevaleça ou tenha força no mundo atual. Todavia, o neoliberalismo não pertence apenas ao primado da economia. Ele é uma razão, uma força invisível e coercitiva. O colapso humano que talvez estejamos enfrentando; a crise de valores; o individualismo desumanizante do nosso tempo tem a sua origem no neoliberalismo. Para o neoliberalismo o individualismo é uma força necessária. 

A doutrina é a razão que governa o mundo. Ela é o resultado da astúcia dos ricos para se apropriar das riquezas do mundo. Ela depaupera o mundo física e espiritualmente. Enxerga na competição o elemento definidor das relações humanas. Permite que os ricos se tornem mais ricos; e, os pobres, mais pobres. Toda regulação é vista como uma violência contra a liberdade. Mas não se deve entender a liberdade como um elemento isento, desgarrado de condicionamentos. Lembrando a brincadeira que George Orwell realiza em "A revolução dos bichos": "Alguns são livres, mas alguns são mais livres que os outros". 

Estados, governos, sindicatos ou qualquer organização que ofereça um sistema de regulação é visto com máxima desconfiança. Todavia, neste ponto o indivíduo acaba caindo em um abismo perigoso. Já que o neoliberalismo é a ideologia a serviço das elites, quem poderia defender o interesse dos trabalhadores, daqueles que não são ricos? O curioso é o neoliberalismo subverteu a consciência do sujeito. Somos convencidos diariamente de que existe uma regra que determina a naturalização do mundo. Entendemos que o mundo sempre foi assim. Que aqueles que alcançaram a riqueza, conquistaram pelos próprios méritos - ignoramos o primado da herança, da melhor educação, de uma melhor preparação para iniciar a competição. 

O neoliberalismo atua no plano econômico para depois gerar efeitos sociais. Os ricos serão mais ricos. Mas você, se não conseguir ter o sucesso que o empreendimento neoliberal exige, ficará com toda a culpa. Os governos não devem se ocupar na construção de planos econômicos que diminuam a desigualdade. A desigualdade é um primado natural das relações entre os homens, entende o neoliberalismo. Para quê gastar dinheiro com políticas compensatórias? Para quê cotas? O triste é quando vemos um pobre defendendo esse tipo de coisa. Muitos candidatos já deixaram explícito que estão sendo conduzidos por sentenças neoliberais. É o caso de Alckmim que deixou nas entrelinhas que pretende privatizar a educação superior. Para o neoliberalismo, se você não tem condições de cursar o ensino superior público, a culpa é toda sua. Não se questiona a ausência da prestação pelo Estado. O questionamento fica retido no sujeito. Ou seja, quem conseguiu é vitorioso; quem não conseguiu, é fracassado. 

O fracasso passa a ser uma força operante em determinados grupos sociais, principalmente os mais pobres. Os defensores dessa ideologia não verbalizam ainda para manter as aparências. Se pudessem, diriam: "Ora, que cada um viva com o que tem. Se alguns não conseguiram nada é por que são incompetentes. Logo, que morram, que sumam". Cria-se, assim, uma elite, uma nobreza, uma oligarquia, uma casta de poderosos que manipula a maioria. A suposta liberdade defendida pelo neoliberalismo é para que os ricos continuem mais ricos; para que não surjam freios para suas especulações. 

* Para entender mais sobre este tema, ler o excelente texto de George Monbiot
** A Boitempo lançou recentemente o sensacional "A nova razão do mundo - ensaio sobre a sociedade neoliberal", de Christian Laval e Pierre Dardot.

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