Baita texto! Sintetiza a finalidade e a dignidade da literatura como construtora que exatifica a experiência humana.
Em feiras de livros ou mesmo livrarias,
frequentemente alguém se aproxima pedindo-me autógrafo. “É para minha
mulher, filha ou mãe”, explica. “Ela adora ler!” De pronto pergunto: “E o
senhor? Não gosta de ler?” E a resposta é quase sempre a mesma: “Gosto,
mas sou muito ocupado.”
Já ouvi essa
explicação dezenas de vezes. Esse homem – e milhares outros como ele –
tem tantos afazeres importantes, tantas obrigações e responsabilidades,
que não pode perder seu precioso tempo mergulhado num romance.
Segundo
esse raciocínio, a literatura seria uma atividade dispensável, uma
diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam se permitir.
Gostaria
de apresentar alguns argumentos contra a ideia da literatura como
passatempo e em prol de considerá-la, além de uma das ocupações mais
estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, uma atividade
insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e
democrática. Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a
infância e fazer parte de todos os programas educacionais.
Vivemos
numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento
da ciência e da tecnologia, e da conseqüente fragmentação do
conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos.
A
especialização traz benefícios. Possibilita pesquisa e experimentos, e é
a força motriz do progresso. Mas também destrói os denominadores comuns
culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade.
E leva à separação dos seres humanos em guetos culturais de
especialistas, confinados – pela linguagem, por códigos de conduta e
pelo conhecimento particularizado – a uma especificidade contra a qual
um antigo provérbio já nos advertia: não se concentre tanto na folha, a
ponto de esquecer que ela é parte da árvore e esta, da floresta.
Em
grande medida, a noção da existência dessa floresta depende do senso de
conjunto que une a sociedade e não a deixa se desintegrar numa centena
de especificidades. A ciência e a tecnologia, portanto, já não podem
desempenhar esse papel unificador da cultura.
A
literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um
denominador comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram
Cervantes, Shakespeare, Dante ou Tolstoi entendem uns aos outros e se
sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas obras desses escritores,
aprenderam o que partilhamos com seres humanos, independentemente de
posição social, geografia, situação financeira e período histórico.
Nada
nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da
xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo
excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura:
todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons
romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado
humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade
humana.
Ler boa literatura é ainda
aprender o que e como somos – em toda a nossa humanidade, com nossas
ações, nossos sonhos e nossos fantasmas -, tanto no espaço público como
na privacidade de nossa consciência. Esse conhecimento se encontra
apenas na literatura. Nem mesmo os outros ramos das ciências humanas – a
filosofia, a história ou as artes – conseguiram preservar essa visão
integradora e um discurso acessível ao leigo, pois também eles
sucumbiram ao domínio da especialização.
O
elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos
transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da
experiência coletiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da
cultura, e nada contribui mais para renová-la a cada geração do que a
literatura.
O que a literatura deu à humanidade, então?
Um
de seus primeiros efeitos benéficos ocorre no plano da linguagem. Uma
sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza
de nuances, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os
textos literários.
Uma humanidade sem
romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos.
Isso também vale para o indivíduo. As pessoas que nunca lê, lê pouco ou
lê apenas lixo pode falar muito, mas vai sem dizer pouco, porque dispõe
de um repertório mínimo de palavras para se expressar.
Não
se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma
indigência de idéias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais
assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que nossa
consciência usa para reconhecê-los e defini-los.
Nenhuma
disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. O
conhecimento transmitido por manuais técnicos e tratados científicos é
fundamental, mas eles não nos ensinam a nos exprimir corretamente. Ao
contrário, com freqüência são mal escritos porque os autores, às vezes
expoentes indiscutíveis em sua profissão, não sabem transmitir seus
tesouros conceituais.
Outro motivo
para se conferir à literatura um lugar de destaque na vida das nações é
que, sem ela, a mente crítica – verdadeiro motor das mudanças históricas
e melhor escudo da liberdade – sofreria uma perda irreparável. Porque
toda boa literatura é um questionamento radical do mundo em que vivemos.
Qualquer texto literário de valor transpira uma atitude rebelde,
insubmissa, provocadora e inconformista.
A
literatura apazígua essa insatisfação existencial apenas por um
momento, mas nesse instante milagroso, nessa suspensão temporária da
vida, somos diferentes: mais ricos, mais felizes, mais intensos, mais
complexos e mais lúcidos. A literatura nos permite viver num mundo onde
as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde nos
libertamos do cárcere do tempo e do espaço, onde podemos cometer
excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites. Como não
nos sentirmos enganados depois de ler “Guerra e Paz” ou “Em Busca do
Tempo Perdido” e voltar a este mundo de detalhes insignificantes,
obstáculos, limitações, barreiras e proibições que nos espreitam de todo
canto e em cada esquina corrompem nossas ilusões?
Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.
Quer
dizer, a vida imaginada dos romances é melhor: mais bonita e diversa,
mais compreensível e perfeita. Talvez seja esta a maior contribuição da
literatura ao progresso: lembrar que o mundo é malfeito, e que poderia
ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar.
A
sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos,
independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência
espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em
que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de
viver.
Sem insatisfação e rebeldia,
ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o
indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado vôo, os direitos
humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria. Tudo
isso nasce dos atos de desafio a uma vida que se mostra insuficiente ou
intolerável. Para esse espírito que despreza a vida como ela é – e, com a
insensatez de Dom Quixote, tenta tornar o sonho realidade -, a
literatura serve de magnífica espora. A verdade é que o desenvolvimento
da mídia audiovisual – que ao mesmo tempo que revoluciona as
comunicações monopoliza cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer,
relegando a leitura a segundo plano – permite-nos imaginar para um
futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores,
telas e microfones, mas sem livros.
Temo que esse mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático – uma resignada humanidade de robôs.
Evidentemente
, é muito improvável que essa terrível perspectiva venha algum dia a se
concretizar. Não existe um destino que decida por nós o que vamos ser.
Depende de nosso discernimento e de nossa vontade que essa utopia
macabra se realize ou se apague.
Se
queremos evitar o desaparecimento dos romances – ou sua restrição ao
sótão dos objetos inúteis – e com isso o desaparecimento da própria
fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina nossa
sensibilidade e nos ensina a falar com eloquência e precisão, que nos
torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos
agir. Precisamos ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois
de nós.
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