terça-feira, dezembro 06, 2011

Fausto, uma metáfora do humano

"Quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda... Todo o trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite".

Eclesiastes 5.10; 6.7


O Fausto
de Goethe me causou uma impressão atordoante. Li-o sofregamente. Cada palavra proferida; cada sentença explanada, deixou-me com os cabelos arrepiados. Nunca havia lido algo tão direto, com tanta "felicidade metafórica". Impossível não enxergar nele possibilidades simbólicas; interpretações literárias vastas; intertextualidades extravagantes.

As cenas iniciais aturdem. O herói está angustiado. Profere palavras incensadas de agonia. Deseja o grande. Procura respostas para o desatino de sua existência. Um intelectual completamente perdido no niilismo da vida, na qual a filosofia, a ciência, a teologia (metafísica) e os saberes perderam completamente o sentido. Fausto utiliza palavras embriagadas de paixão. Nem mesmo um deus seria capaz de consolá-lo. Impossível não enxergar nisso uma metáfora da modernidade. Do homem que se perdeu em meio aos saberes. Às possibilidades científicas. Que mesmo tendo desenvolvido tecnologias inovadoras, parece não ter achado a resposta necessária para o aspecto nodal da vida.

Mefistófeles ou Mefisto, personificação do demônio, acaba fazendo um pacto com Fausto. O herói recebe a promessa de que teria as respostas necessárias e a sua existência seria coroada por uma torrente insufladora de peixão, técnica e um desejo extravagante pelo progresso. A promessa do diabo: "Nos dias que hão de vir posso logo mostrar-te/ O que homem nenhum no mundo pode ver". E mais: "Sentes sempre que és homem entre seres humanos./ Não penses que desejo, à força, te envolver/ Com a canalha vil que vive ao desabrigo; / Não sou tão importante, e não tenho poder;/ Se quiseres, porém, andar a sós comigo/ Teus passos vou guiar por mil trilhas da vida./ E essa é, para mim, tarefa apetecida./ Dar-te-ei assistência amistosa e agradável,/ Serei teu companheiro humilde e inseparável,/ Cumprirei meu dever com justo e extremo zelo,/ Serei teu servo enfim com máximo desvelo".

O que nos fascina no texto goethiano, resultado de mais de 60 anos de labor, é a pertinência arquetípica. A promessa de Mefisto é uma possibilidade para o arrojo, para o prazer, para o conforto. Fausto veria galáxias. Luzes. Colocar-se-ia acima dos demais homens. Caminharia por entre multidões e estaria nele a marca da distinção - o diabo seria o seu servo. Mas, o preço de tudo isso seria alto - a saber, a própria alma do herói. Fausto seria um homem oco. O seu ser não lhe pertenceria. O verniz (suas faculdades físicas) experimentaria o prazer, todavia em seu interior haveria o caos, a confluência do trágico infernal.

Sua relação com Margarida é fadada ao fracasso. A sua musa não foi capaz de dar, também, o que ele queria. Nota-se que ao fim da relação, Margarida também está esgotada. A moça pura, gentil, pobre, porém, honrada, é maculada pela maldição que persegue Fausto. A dor do herói se agudiza. Torna-se maior do que no princípio de suas inquirições. Fausto é arrastado para o inferno. A cena final é de uma tragicidade aterradora. Mefisto volta-se para Fausto e diz em tom senhorial: "Vem comigo!" E Goethe conclui: "[Mefistófeles] desaparece com Fausto".

Ao ler isso, não pude deixar de perceber o quanto Goethe refletiu sobre o ser humano nesta obra. Fausto é metáfora do homem fáustico. De uma maldição que orbita sobre o homem - a maldição do desejo, da ganância, do desejo de poder. Como nas palavras escritas por Marshall Berman, no excelente ensaio do livro Tudo que é sólido desmancha no ar: "A inquietação fáustica do homem na história mostra que o ser humano não se satisfaz com a simples satisfação de seus desejos conscientes" (BERMAN, 2007, p.99).

O homem moderno é a representação mais fidedigna do desejo fáustico. Ele fez um pacto com o progresso, com o capital, com um estilo de vida que o levará à tragédia. A cada dia que passa a sua Margarida, a Terra (natureza), sofre com as agressões, com a vilania, com a ganância expropriadora que mata. Os notíciários, os documentários dos canais especializados, as revistas científicas, jornalistas, intelectuais, organismos não governamentais e os próprios cientistas afinam o discurso quando o objetivo é apontar a falência do estilo de vida do homem moderno. A Terra chegou a um nível de esgotamento que não comporta mais o desejo pelo lucro, pelo poder, pelo acúmulo de capitais. A tecnologia, as viagens, o turismo, a possibilidade do consumo não trará a redenção ao homem. Muito pelo contrário, tem gerado uma coisificação, um embrutecimento da humana raça.

Assim como se deu com Fausto, o destino humano está fadado ao obscuro. Sua caminhada é trágica e, o destino, incerto. Um futuro abismal parece espreitar. O pacto com o progresso, com a ciência e com a tecnologia custará caro. Em menos de cem anos o resultado se mostrará fulminante e aterrador. O estilo de vida ("o Mefistófeles do homem moderno") cobrará sua conta e então será tarde demais. Pessimismo de minha parte? Não. Penso que não há outro destino para o homem, assim como não houve para Fausto.

Livros consultados:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Companhia de Bolso: São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

GOETHE, W. Fausto. Editora Nova Cultural. São Paulo, 2003.


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