quinta-feira, setembro 04, 2008

Tempo de delicadeza

Li o livro tremendamente delicado de Affonso Romano Sant’Anna Tempo de Delicadeza. Impossível ler tal livro e não ser acometido por uma frescura delicada. Affonso é mineiro, da terra de Drummond, Guimarães Rosa e Rubem Alves, homens excessivamente delicados com o trato verbal. Há muito tempo eu vinha intentando colocar um texto de Affonso neste espaço e essa manhã eu fui acometido por um ímpeto de delicadeza. Decidi fazê-lo. Certa vez tive o privilégio de falar com o senhor Affonso Romano de Sant’Anna. Ele palestrara sobre Machado de Assis. Ao final de sua fala, decidi tietá-lo (talvez esse seja um termo indelicado, mas fica como está). Era uma sexta-feira airosa e eu perto daquele homem me senti mais docemente delicado. A sua voz grave, pronunciada com uma pausalidade, quase que cenográfica, causou-me impressão profunda. Ele de fato sabe ser um indivíduo delicado. Autografou um livro que estava em minha mão. Fiquei excitado, cheio de um contentamento, de uma veneração delicada. Falei da minha admiração por ele e o percebi educadamente delicado do alto de sua sobrancelha hirsuta.
Trata-se com certeza de um dos mais valorosos intelectuais vivos aqui no Brasil. Vale a pena ler as suas crônicas, poesias e textos científicos. É um homem catedrático, de erudição delicada. Ele herdou a tradição de Rubem Braga e Fernando Sabino para escrever coisas bonitas, doces, de fatos corriqueiros, porém vestidos por uma delicadeza profunda. O texto está abaixo. Ao lê-lo, temos a impressão de que estamos ouvindo uma ária de Mozart ou Bach. Leia o texto e seja remetido a um tempo de delicadeza.

Segue o texto: Tempo de Delicadeza


Sei que as pessoas estão pulando na jugular uma das outras.

Sei que viver está cada vez mais dificultoso.

Mas talvez por isso mesmo ou, talvez, devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.

Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isso, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Morais ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:

Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.

Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos.

Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.

Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele, que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "Endurecer, sem jamais perder a ternura".

Essa é a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente.

Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo" nos dizia:

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente.

E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma

Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre

um corpo de adúltera.

Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.

Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água.

Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim

Deprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível

Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher

Mas com singular delicadeza. Não sou bom

Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fraticida

Como um lobo.

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.

Houve um tempo em que se era delicado. E Rimbaud, que aos 17 anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida."

Intrigante isso.

Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isso é igualmente grave.

Confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.

Tudo é questão de estilo.

Aquele detestável Bukovski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.

A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.

Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.

Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem "I love you" arremetem um virótico "Fuck you".

Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres deste país há 500 anos?

Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".

A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisso. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.

Curioso. A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro, A descoberta da lentidão, no qual Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando aprendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.

Sei que vão dizer: "A burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados."

- E eu não sei?

Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.


Extraído do Livro Tempo de Delicadeza.


SANTA'ANNA, Affonso Romano de. Tempo de Delicadeza - Porto Alegre: L&PM, 2007.



5 comentários:

Anônimo disse...

tenho uma pergunta voce acha que alguem vai ler um texto desse tamnho? eu li so emas 3 linhas e nao dei conta mais nao gostei.

Carlinus disse...

Amigo, aquele que gosta de ler se sente motivado para ler independente do tamanho do texto. E mais: ler não é um exercício de gosto, mas de dever.

Abraços!

Anônimo disse...

"Anônimo" como assim??? não gostou pq o texto é grande?? e isso lá é critério??? por favor!
Lia

monita disse...

Que maravilha de texto!Me emocionei e pude refletir.
Carlinus tem toda razão guando diz que a leitura deve ser um dever e não um exercício de gosto.
Parabéns....lindo texto!!

Carlinus disse...

Também o acho maravilhoso, Monita!

Obrigado pelo comentário!

Abraços delicados!