Acabei de ler o texto Lógica do Estupro,
da filósofa Márcia Tiburi e fiquei a pensar o quanto existe de dimensão
psicológica em nossos comportamentos aprendidos - e o quanto isso é
externalizado em nossos preconceitos e pré-compreensões que emulam os
comportamentos sociais. Nesta semana que finaliza, um dos acontecimentos
que geraram reações escandalizantes em todo o país foi a fala
truculenta, massiva em seu nível mais profundo de primitividade do
deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) contra a deputada Maria do Rosário
(PT-RS). A fala em si é condenável e digna de cominação legal. Mas o que
me chama a atenção é o que está por trás da verbalização do parlamentar
da bancada da bala.
Lendo
alguns comentários nas redes sociais sobre a repercussão da fala do
truculento político, percebi a defesa implícita da atitude do deputado
por parte de algumas pessoas. Algo assim: "Mas ela em outra situação o
chamou de estuprador". Se a deputada havia agido dessa forma, que ele
procurasse a justiça para reivindicar seu direito. A fala do deputado,
enunciada do púlpito do plenário, não é justificável nem aqui no planeta
terra, nem em qualquer outro lugar do universo. Outro sujeito chamou a
deputada de "desgraçada". E fiquei a pensar sobre isso.
Na
verdade, o que faz com que o deputado afirme: "Não a estupro porque
você não merece" está centrado em duas realidades interpretativas,
notadas até por um aluno de ensino fundamental: (1) ele é um estuprador; (2) a deputada não é digna de ser estuprada, mas há outras mulheres que são.
Dita em um ato de desvario ou em sã consciência, a fala de Bolsonaro
deixa latente, como diz Marcia Tiburi, citando o caso Gervais de
Tilbury, personagem do livro Eva e os padres, de Georges Duby,
grande medievalista, que o estuprador reivindica a lógica da força por
ver na mulher um ser estuprável. Em entrevista ao Jornal Zero Hora,
ele reitera o que disse, fazendo uma nova afirmação ("Ela não merece
porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero.
Jamais a estupraria"). Com isso, ele exalta a prerrogativa de que é
"macho", homem, potente, que encerra em si força superior. Age assim por
ser um autoritário, que não consegue enxergar no outro a dignidade ou
um sujeito de direitos em sua humanidade singular. O estupro é uma das
maiores violências encontradas nas relações anômalas ditadas no mundo
social. Ela é antiga. Cruel. Violenta por subjugar o outro e desonrá-lo.
Torná-lo em um ser abjeto, subserviente, que estar ali apenas para ser
um brinquedo descartável que servirá ao jogo de diversões egoístas do
valentão.
No
fundo, o estuprador é um sujeito fraco, que não conseguiu sair da
animalização para a humanização. É misógino. Ver a mulher e qualquer
realidade que externe a figura do feminino como algo frágil. É, por
isso, que ele ver no homossexual um ser desprezível, porque deixou de
ser homem. Se há sexo entre homens (relação homoafetiva), ele acha
desprezível. Mas, se ao contrário, a mesma relação se der entre
mulheres, ele julgará como sendo menos nociva. Ou seja, o que sustenta
tal comportamento é a força legitimidadora do falo. Quem tem e usa é
"homem de verdade". Subutilizá-lo é ser visto como ser reprovável, pois
tal subutilização caminha em direção ao feminino. Isso explica, por
exemplo, porque existe a figura do homem predador que sai na noite e diz
que "comeu" muitas mulheres. Quanto mais se "pega", mais forte e viril é
o sujeito nessa espiral gradativa da infantilização. E, como diz a
Marcia, quando isso acontece, fica a demonstração da 'miséria subjetiva,
no narcisismo infantilóide (por que parece com uma caricatura infantil
da época em que ele mostrava sua genitália aos coleguinhas no banheiro)
que, arranjados na lógica do estupro definem a condição inumana na qual
ele se compraz'.
É
essa relação que define, por exemplo, o tratamento do estado para com
os pobres. Do valentão da escola. Do marido que bate na esposa. Da
polícia que bate em negro, que violenta os pobres da periferia. Vez ou
outra os sentimentos do valentão vem à tona pelo simples fato de o
sujeito ter um pênis e uma impressão que pode fazer determinadas coisas
por ser homem. Já ouvir algumas pessoas afirmarem: "Mas ele é homem. Ele
pode fazer. Não vai acontecer com ele". A estrutura psicológica dessa
frase foi construída histórica e socialmente. Quando isso acontece a
lógica do estuprador se instalou.
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