quarta-feira, dezembro 24, 2014

O Natal como (res)surgimento de um novo tempo

"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra". 
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas".

Os homens não poderiam viver sem fé, crença e esperança. A fé é um pressuposto necessário. Quando me refiro à fé, não quero deixar a ideia de que se trate apenas de fé convencional, institucional. Não há ou houve uma cultura em que algum tipo fé não estivesse presente. Existe aquela passagem emblemática do livro bíblico de Eclesiastes que diz que "Deus colocou a eternidade no coração do homem". Independente da relação que o homem tenha com a divindade - de crença ou não crença - parece existir um desejo por segurança no coração de todos nós. A fé gera, necessariamente, essa segurança. Ela cria uma sensação de pertencimento e conduz o sujeito a "descansar" de seus medos e infortúnios. 

É mais fácil caminhar quando se tem um destino determinado, uma estrada que conduz a um fim estabelecido. A religião, nesse sentido, é construtora de estradas. É uma bússola capaz de orientar a consciência daquele que crer. O sujeito religioso é aquele que cria âncoras psicológicas para navegar no oceano revolto da existência. Quando as dúvidas surgem; quando o medo da morte, da doença e os seus efeitos, das angústias variadas aparecem, o sujeito que tem uma crença, enfrenta com maior ousadia e determinação o seu obstáculo. Existe aquela passagem marcante do livro de Habacuque, profeta bíblico do antigo testamento, que diz mais ou menos assim: "Ainda que não haja gado no curral; ainda que o produto da oliveira minta; ainda que não haja fruto na vide, eu me alegro no Senhor". Essa passagem ilustra bem essa certeza do ente religioso. 

Por mais que a sociedade tecnologizada e afeita à técnica queira decretar o funeral de Deus, como bem havia observado Nietzsche no final do século XIX, a fome pelo sagrado continua viva. O sujeito pode até se afirmar ateu, agnóstico ou outra coisa; pode até negar a existência de qualquer discurso universal ou apelo absoluto; todavia, em algum momento esse sujeito coloca, ergue para si um altar que o alimenta existencialmente. Pode não seguir os parâmetros determinados pela religião convencional, mas existe algo, lá no fundo, que faz com que o sujeito oriente a sua vida. Como disse Ludwig Feuerbach, aquele amante inveterado desse mistério, no final do século XIX, no seu livro "A essência do cristianismo": "Religião, o solene desvelar dos segredos ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública do seus segredos de amor".

Tenho minhas desconfianças para com a religião oficial. Vejo-a caricata, castradora, dogmática, mas essa é a sua essência. Quando se crer e se ama algo, rapidamente se arregimenta formas para proteger aquilo que se ama. É, por isso, que os homens colocam proteção em torno dos jardins. É para proteger sua beleza frágil. Por sua vez, quando se crer em algo, também, rapidamente, criam-se "fórmulas de certezas", os dogmas, que são declarações, afirmações irrefutáveis sobre determinado assunto. Um dogma existe para não ser questionado. Existe para ser obedecido. Ninguém em juízo pleno pode tentar questionar o dogma. Os conflitos por causa da religião surgem por causa desse fato. Aqueles que não dão a mínima para o dogma, acabam insultando aqueles que vivem para o dogma. 

Mas, por que escrevo essas garatujas errantes? Ora, pelo fato de hoje a cristandade oficial celebrar o nascimento de Cristo, que é o ponto fundante e miraculoso da experiência legitimadora da fé e, que, mais tarde, transformou-se em dogma. Ao pensar sobre isso, não posso deixar de entender que a fé é um evento circunstancial, pois se tivesse nascido no Japão, na Índia ou no interior da China, não estaria me preparando para esse evento. Faz lembrar aquela velha afirmação: "Se os cavalos pensassem como os homens, seus deuses teriam a forma de cavalo". E, nesse sentido, é impossível não voltar a pensar em Feuerbach. 

Não desprezo o momento. Já fui crítico da ocasião. Já achei em minha presunção que, aqueles que comemoravam o Natal, eram sujeitos alheios ao verdadeiro fato histórico que representa o Natal. Já alimentei o pensamento de que os homens fracos sempre criam a ideia de um deus forte; que os oprimidos, sempre erguem o papel de um deus vitorioso; que os feios constroem um deus que representa o belo. Não que, no fundo, tal compreensão não esteja grávida de uma certa coerência. Mas é preciso reconhecer a oportunidade que se tem, nesta data, o Natal, de se poder encontrar pessoas. Confraternizar com aqueles que não vemos a maior parte do ano. Existe um elemento simbólico-poético potencialmente grávido de despertamentos no Natal. É importante não deixar que ele murche.

É o momento de interiorização, de olhar para a consciência e julgá-la pelos fatos realizados. Acredito que precisemos mais desses rituais. Como dizia Durkheim, o homem é o único ser capaz de analisar o exterior e o interior de si mesmo, diferente dos outros animais, que vivem apenas o exterior. A modernidade açambarcou a capacidade do homem olhar para o seu interior. De fazer reflexões. De ler poesias. A capacidade de contemplar a natureza. De trabalhar a dimensão do numinoso existente em cada um de nós. A estesia vivida como resultado dos grandes momentos. 

O Natal, como a indústria capitalista quer nos fazer crer, não é uma corrida desvairada e caótica ao templo do consumo. Mas é um momento para fazer renascer a possibilidade de um recomeço em torno de todas as coisas. É o momento para abraços. Para confissões não enunciadas em outros momentos em decorrência do embrutecimento da vida. É o momento para que se abra o coração para que o cheiro jasminesco da solidariedade entre e faça morada, enfrentando aquela força chamada "desencantamento do mundo" por Max Weber. Natal é renascimento, despertar, caminhada, reinauguração daquilo que já existiu e estava adormecido na insensibilidade dos dias de aniquilamento da esperança. Comemoremos o Natal - nem que seja como uma metáfora de um novo tempo.

2 comentários:

Carlindo José disse...

Excelente texto caro Carlinus, sou Cristão de confissão Batista tradicional, e achei muito boa a sua colocação sobre a fé e o Natal.

O Natal não é somente uma época que deveria se celebrada pelos Cristãos, mas por todos os povos como uma reunião universal, o momento de reconciliação e não apenas de consumo desequilibrado ou uma forma de remediar suas ações do restante do ano fazendo atos de caridade, deve ser muito mais que isso.

Carlinus disse...

Caro Carlindo, obrigado pelo comentário. Como não escrevo com tanta recorrência, eles são mais raros por aqui. Feliz Natal para você.

Já estudei teologia. Graduei-me em um seminário presbiteriano. Pretendia ser pastor, mas acabei desistindo da ideia. Frequentei a igreja presbiteriana por muito tempo. Atualmente, estou em sem ir a qualquer igreja.

Fico feliz em saber que você frequenta uma igreja batista. Os batistas possuem uma rica tradição musical.

Abraços!