quarta-feira, dezembro 31, 2014

Tempos de alegria - sobre dois livros de Eric J. Hobsbawm

Certamente que algumas das leituras mais interessantes que realizei neste ano de 2014 - que ainda resfolega os seus últimos estertores -, foram Tempos Interessantes - uma vida no século XX e História Social do Jazz, de Eric J. Hobsbawm. No início do ano, também li a nova edição para Bandidos, lançado pela Editora Paz Terra. Hobsbawn, falecido em 2012, era daquelas personalidades altas, que têm a chance de carregar em si o peso dos eventos históricos, por ter testemunhado e medido com os elementos exatos cada um desses fatos. Como de forma subentendida em Tempos Interessantes - sua autobiografia -, Hobsbawm foi testemunha de um século de fraturas, caos, transformações profundas em seus costumes e em sua base produtiva; um século de conflitos e de alastramento da cultura de massa.

Ao analisarmos sua vida em Tempos Interessantes, resta-nos uma conclusão: existem pelos menos três elementos que não poderiam ter sido extraídos de sua ontologia - (1) ele era comunista e assim verbaliza sobre sua crença na doutrina de Marx: "O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera de que os técnicos o recuperem dos discos rígidos". (2002, p.73). (2) Hobsbawm era um historiador e foi por meio das ferramentas proporcionadas pela história e pelo materialismo dialético, chave com se destranca a porta do grande castelo da história, que ele olhou, pensou e analisou o mundo. ("Não se pode escapar do passado... Nossas vidas cotidianas, os países em que vivemos e os governos que nos dirigem, tudo isso está rodeado e inundado pelos produtos de minha profissão" (2002, p. 311). (3) e o grande pensador, intelectual e erudito era apaixonado por uma das maiores revoluções que marcaram a música popular - o jazz. O movimento cultural nascido nos Estados Unidos alcançou o historiador quando este tinha apenas 16 anos de idade; e surgiu como um supridor de carências emocionais e afetivas. Ele mesmo diz: "No meu caso, porém, o jazz praticamente substituiu o primeiro amor, pois envergonhado por minha aparência física e convencido de que era pouco atraente, reprimi deliberadamente a minha sensualidade e meus impulsos. O jazz trouxe a dimensão de uma emoção física sem palavras, sem questionamentos, para um vida quase completamente monopolizada por palavras e exercícios intelectuais". (2002, p. 99). 

Em outro trecho ele afirma sobre esse movimento, dizendo que o jazz não era apenas "um certo tipo de música", mas sim "um notável aspecto da sociedade em que vivemos". (2002, p. 252). Foi essa paixão pelo jazz que o levou a escrever História Social do Jazz, em 1959. Ao escrever o livro, Hobsbawm usou o pseudônimo de Francis Newton (em homenagem a Frankie Newton, nome de um trompetista que tocara com Billie Holiday, um dos poucos músicos de jazz sabidamente comunistas). A grande questão em torno do livro é o fato de ter sido escrito em 1959, deixando de levar em conta a transformação por que passou o movimento a partir dos anos de 1960 - principalmente com a ascensão do rock. Segundo o historiador o historiador diz em Tempos Interessantes, o rock "em poucos anos quase matou o jazz". A revolução foi insuperável. O fenômeno da nova música, reforçada pela energia jovem e contagiante, fez com que os músicos de jazz vivessem um período de ostracismo musical. Muitos deles migraram para a Europa. O movimento poderoso e avassalador vivido pelo jazz em 20 anos, principalmente entre 1940 e 1960, foi substituído pelo febricitante movimento de corpos estimulado pelo rock. No prefácio à edição de 1989 de a História Social do Jazz, Hobsbawm diz que: "as vendas de discos nos Estados Unidos, que tinham aumentado de US$ 227 milhões em 1955 para US$ 600 milhões em 1959, ultrapassaram os US$ 2 bilhões em 1973. Setenta e cinco a 80% dessas vendas representavam gravações de rock ou gênero afins". E esse fenômeno avassalador não deixou o jazz intacto. Como é típico dos processos dialéticos, os movimentos incorporaram os elementos do rock e o jazz acabou vivendo a sua fase experimentalista. O fusion é uma dessas manifestações, que acabou levando os puristas a aumentarem a quantidade de cabelos brancos por causa de suas preocupações em manter o movimento sem a influência, segundo eles, "perniciosa" desse movimento "maculador". 

Para Hobsbawm, entre os vários motivos que levaram a ascensão do rock, três eram os principais: (1) o tecnológico, que acabou possibilitando o grande avanço da música eletrônica. O rock foi um dos movimentos musicais a utilizar uma engenharia capaz de produzir para as grandes massas. (2) dizia respeito ao conceito de conjunto, pois o movimento não precisava de virtuoses como o jazz a exibir as suas habilidades. Estrutura do rock (baixo, bateria, guitarra, voz) possuía uma aspecto absurdamente simplificador. Nesse sentido, o rock era mais democrático, pois qualquer sujeito "amador" ou formalmente "analfabeto" para as convenções musicais poderia montar o seu conjunto e "gritar" para o mundo. (3) dizia respeito ao ritmo "insistente" e "palpitante". Tal fato, fez com uma multidão cada vez mais densa de jovens, principalmente adolescentes, visse no movimento a expressão do seu universo de desejos, instintos, sentimentos e aspirações. O jazz passou, a partir daí, a ser encarado como música de intelectuais ou de velhos. 

Mas de onde veio o jazz? E é para responder a essa pergunta que existe como substrato em toda a obra, que o grande historiador marxista gasta boa parte de seu tempo. Para ele, o jazz é uma manifestação social alijada a um herança africana. As melodias complexas. A energia vibrante. A estrutura harmônica. E a sua estrutura inconfundível atestam a sua essência revolucionária. Talvez, seja uma das manifestações mais revolucionárias da música ocidental, pois surgiu no seio da cultura negra, visto pela mainstream hegemônico como forma inferior. Sua força vem justamente do grito oprimido dos negros. Vem dos spirituals americanos. Dos cultos protestantes gritados, angustiados, no qual o pregador encarna a energia a serviço do fervor da palavra. O jazz é essa força, esse espírito carregado de energia esfuziante, capaz de revelar a intimidade daquele que externa a sua manifestação. Não é uma manifestação contida. O jazz assim como o blues, que é o seu parente mais próximo, são feitos para que o ouvinte sinta. 
Apesar de ter surgido nesse meio carregado de fervor religioso, o jazz estava carregado de uma energia antipuritana, secularizante, sensual ao extremo. E, talvez, tenha sido por isso que migrou para os bares de Chicago; para os cabarés de St. Louis; para os prostíbulos de New Orleans; para os guetos e passou a ser associado a música de negro. Nomes como Louis Armstrong, Thelonius Monk, Charlie  "Bird" Parker, Miles Davis, Eric Dolphy, Art Blakey, John Coltrane, Ornete Coleman, Dizzy Gillespie etc estão amarrados à história do movimento. São figuras icônicas, as quais não se pode desvencilhar a identidade do movimento. 

Resta apenas me aproximar do jazz com o máximo de reverência como um ser apaixonado que se aproxima de uma ninfa jovem, mas sendo sabedor do potencial de amor que ela guarda em si. Estou ouvindo Somethin' Else, de Miles Davis, em um disco que traz nomes como Cannonball Adderley, Art Blakey e o próprio Miles Davis e tenho certeza que Hobsbawm faria um sinal com a  cabeça em sinal de aprovação e balançaria a perna, gesto consequente quando ouvimos uma música como essa Somethin' Else. 

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