quarta-feira, março 01, 2023

30 anos de um regresso

 


Minha família migrou para a Capital Federal em 1989. Eu recém completara nove anos de idade. Foi um evento grandioso, capaz de sugerir mudanças e descobertas. Eu era um sujeito matuto – e de certa forma ainda sou. Essa palavra deriva do latim “matto” (‘floresta’, ‘arbusto’), acrescida do sufixo “–uto”, cujo significado exprime ‘aquilo que se liga a algo’. Verifica-se assim que matuto é aquele que veio da zona rural, do mato; ou aquilo que faz referência ao mato. No Brasil, essa palavra ganhou acepções para indicar, de forma depreciativa, aquele que é rústico, acanhado, tímido.

                No Nordeste, a palavra possui grande resplandecência. Ser chamado de matuto indica objetivamente aquele que possui dificuldades para, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, realizar a “navegação social”.

                Ser criança na periferia do Distrito federal no início dos anos 90 foi algo curioso. Fiquei quatro anos sem voltar ao meu Pernambuco. Esperei três anos para realizar o épico caminho da volta. Dessa vez, eu, meu irmão e minha mãe íamos na condição de visitantes. Para um sujeito recém-entrado na adolescência como eu, aquilo possuía uma inebriante fragrância. Fomentava imagens, ficções; assinalava enredos.

                Recordo precisamente o dia que saímos. Possivelmente, tenha sido numa sexta-feira à noite. Era o costume. Dessa forma, chegava-se ao Recife no domingo pela manhã. Não consigo esquecer os efeitos daquela saga. A primeira noite forneceu-nos uma acomodação ignominiosa. O ônibus ziguezagueava em meio à estrada calamitosa. A BR-020 era um queijo suíço. Os solavancos recorriam com abreviada recorrência. A suspensão mole do ônibus fazia-me crer que estava em uma gangorra. Em dados momentos, o motorista direcionava o veículo para uma estrada clandestina que se formara paralela à rodovia. Era o resultado da peleja dos outros motoristas tentando fugir da estrada com aspectos lunares.

                Tudo me parecia grandioso: o mundo, as paisagens, as paradas que aconteciam em intervalos irregulares – 15 minutos, 20 minutos, 30 minutos. O motorista da vez verbalizava: “Esta é cidade tal. Pararemos aqui por 15 minutos”. Era o tempo que os assustados, atarantados passageiros teriam para ir ao banheiro; ou espicharem o corpo cansado pela refrega contínua da viagem. Ficava de olhos arregalados. O ônibus não possuía ar condicionado. Viajávamos com as janelas abertas. Recebíamos o bafo quente, mesclado pelas partículas do tempo.

                Minha mãe com duas criaturas que não foram iniciadas no traquejo social – eu e meu irmão -  fazia advertências. Espavorido, eu arregalava os olhos. Memorizava, como se estivesse verbalizando um credo forçado, os números de registro do ônibus. Movia-me com metódico cálculo. O medo de ficar para trás era um fantasma que revoluteava como uma sacola agitada pelo vento ao meu redor. Ficávamos com os olhos grudados no ônibus da Itapemirim. Íamos assim até o nosso destino final. Toda parada envidava uma operação com estratégias estudadas com esforço.

                Transposta a tumultuada primeira noite, os passageiros gestavam uma curiosa solidariedade.  Conversavam. Pareciam velhos amigos. Entravam em minudências. Segredavam os destinos para onde iam. Compartilhavam – em certos momentos – os tímidos repastos. Minha mãe se munira com biscoitos, maçãs e farofa para realizar a heroica travessia e saciar a fome de sua prole.

                Aquela viagem me ensinou a entender o movimento de volta, o regresso. Ao voltar, nota-se o efeito do tempo. O regresso permite a gestação de expectativas. Passa-se a compreender certas coisas. Olha-se com desvelo o corriqueiro. É a saudade que nos empurra para trás. E como diz Guimarães Rosa: “Toda saudade é uma espécie de velhice”. Mais tarde, eu compreendi que por estar voltando, eu era um Ulisses com a expectativa de reencontrar a minha Ítaca.  

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