Esquerda e direita não são noções
estanques, homogêneas, mas é errado pensar que não existem no Brasil.
Com os recentes acontecimentos, é possível que muitas pessoas não saibam
exatamente como se posicionar frente a essa celeuma de vozes na
imprensa, nas redes sociais, nas ruas e no dia a dia. Há narrativas em
disputa e é preciso compreender o que elas dizem, para quem dizem e o
que querem. Mas isso requer uma compreensão histórica do significado
desses termos.
As noções de direita e esquerda têm
origem na Revolução Francesa de 1789. Estão relacionadas aos lugares
ocupados pelos estados gerais na Assembleia Nacional Francesa. À direita
do rei ficavam o primeiro e o segundo estados, o clero e a nobreza; à
esquerda, o terceiro estado, representado pela burguesia e o povo. Com o
terceiro estado estava o desejo de superação da ordem antiga e a
instauração de uma nova ordem.
Legitimada pela filosofia Iluminista, a
burguesia abriu uma perspectiva de futuro, de emancipação do homem
através dos ideais de liberdade e igualdade e que veio a ter seu ponto
culminante na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789. Através do jacobinismo, a politização da pobreza e das questões
sociais ganhou contornos inéditos e abriu caminho para a emergência das
vertentes socialistas do século XIX, que levaram adiante o projeto de
construção de uma sociedade voltada para a inclusão dos mais pobres.
A direita é, portanto, o lugar dos ricos,
daqueles que não querem perder privilégios nem fazer concessões de
direitos. A esquerda é o lugar dos pobres, daqueles que querem mudar a
ordem social para ampliar e universalizar direitos, de onde vêm os
ideais de liberdade e igualdade que pautaram a Revolução. A esquerda
está relacionada à abertura de uma perspectiva de futuro inclusiva e
representa a contestação dos privilégios de uma minoria, mantidos em
detrimento da maioria, representa a ânsia pela mudança e pela
transformação social. Ser de esquerda é não se conformar ao status quo,
não aceitar a naturalidade das hierarquias sociais e as desigualdades
que elas engendram, não se conformar à exploração do homem pelo homem
nem desistir de pensar a utopia e problematizar projetos de um futuro
melhor.
Foi das ações e pressões dos movimentos
trabalhistas de esquerda dos séculos XIX e XX que vieram, por exemplo,
as principais conquistas para a classe trabalhadora. A origem dos
conceitos vem, portanto, da Revolução Francesa e os matizes que esses
termos assumiram posteriormente não alteram seus significados originais.
O surgimento de uma extrema esquerda (socialismo soviético) e uma
extrema direita (fascismo e nazismo) no século passado estão
relacionados às reações de algumas nações e grupos sociais aos ideais
originados na Revolução Francesa e sua emergência esteve diretamente
relacionada à guerra total que abocanhou as potências europeias entre
1914-1918.
Ser de esquerda, portanto, nada tem a ver
com culto ao Estado ou a ditaduras, nem a esquerda é inerentemente
anti-democrática, como a direita inculta tem repetido à exaustão.
Esquerda é uma visão de mundo em favor dos menos favorecidos. Esse é o
sentido original do termo. Com o fim do socialismo real e o definhamento
do discurso revolucionário de esquerda, o que sobrou para a esquerda
foi a social-democracia, ou seja, a defesa de projetos sociais de
inclusão e ascensão social e seu casamento com valores democráticos e
garantia de liberdades individuais.
Ao contrário do que muitos pensam, a
defesa de liberdades individuais não é apanágio da direita. A
social-democracia é uma vertente de esquerda que surgiu entre o final do
século XIX e o início do XX que rejeitava a noção de ditadura do
proletariado como etapa necessária para a construção de uma sociedade
mais justa e focava na junção de dois elementos: o ideal de justiça
social do socialismo e o ideal de liberdade individual do liberalismo. A
ideia era criar um partido e um movimento trabalhista voltado para
reformas, não para a revolução.
Por isso, a esquerda hoje casa mais
perfeitamente com ideais liberais do que a direita. Enquanto a direita
defende mais fortemente apenas o viés econômico do liberalismo, isto é, a
supremacia do mercado e a retirada da mão protetora do Estado sobre os
pobres – isto é, o a eliminação de políticas sociais – o liberalismo
político de matriz norte-americana trouxe para o plano da ação política a
defesa das minorias, como negros e homossexuais. É daí que vem as
políticas de cotas para negros em universidades e empresas e as
políticas de proteção a minorias sociológicas, grupos que não possuem
hegemonia cultural e sofrem formas variadas de violência e exclusão. As
leis em defesa de negros, homossexuais e mulheres, por exemplo, se
encaixam nesse paradigma.
A direita se opõe às políticas sociais
liberais (e no Brasil ela atribui isso erroneamente a uma visão
comunista) porque pensa que isso fere a meritocracia. Mas meritocracia
sem igualdade de oportunidades é apenas um instrumento de exclusão.
Restou, portanto, à esquerda se apropriar desses ideais e fazer política
social para reduzir as desigualdades sociais, raciais e de gênero.
Essas políticas fortalecem a democracia na medida em que proporcionam o
acesso dessas minorias a espaços de onde estavam excluídos por uma série
de questões históricas.
O papel da esquerda hoje é pensar a
inclusão com a valorização das liberdades democráticas. Temos dois
exemplos notáveis disso no continente com Obama e Mujica. A direita
continua a ser o que sempre foi: ela quer manter privilégios, é
conservadora, quer manter (conservar) a ordem social baseada na
desigualdade, inclusive a desigualdade de oportunidades – por isso o
discurso da meritocracia frequentemente escamoteia seus interesses de
classe. Não raramente ela também flerta com ideais do fascismo (como
xenofobia, militarismo e nacionalismo). Contra a visão progressista que
caracteriza a esquerda, a direita reafirma a importância e
atemporalidade da tradição, sempre pensada como elemento normativo e
legitimador das desigualdades.
No Brasil, temos visto o surgimento de
uma excentricidade: o indivíduo pobre que se declara de direita. Em
geral, ele ignora completamente questões históricas envolvendo os
conceitos de esquerda e direita, sua leitura política é pobre ou
inexistente. De toda forma, o pobre de direita é um idiota útil a favor
das elites; estas sim, e somente elas, conservadoras por convicção e por
projeto político.
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