sábado, janeiro 28, 2012

Memórias - os itinerários do tempo (IV)

Atrapalhava-me perceber que um ato às vezes determinava punição, outras vezes não determinava. Impossível orientar-me, estabelecer norma razoável de procedimento.

Graciliano Ramos, in Infância, p. 89

O povo nordestino é conhecido pela sua natural compreensão acerca do machismo. Machista é aquele indivíduo que adquiriu modos de macho, de machão, que salienta e se orgulha da masculidade. Estes são conceitos que estão amalgamados no interior do povo nordestino. Este é um ponto importante na forma como se vê e interpreta o mundo. Quem nasceu no nordeste e foi criado no ambiente rural, traz em si um pouco desta mancha.

Meu pai e meus avôs estavam dentro desta cultura do macho. Desde cedo somos ensinados a respeitarmos os mais velhos. Menino não deveria se intrometer na conversa de pessoas mais velhas. Quando um adulto estivesse conversando e uma criança decidisse dar uma opinião, era repreendido por olhadelas consumidoras, que afirmavam informações repressoras inteiras. Menino que era menino tinha que saber o seu lugar. A obediência estava vinculada mais ao medo do castigo, do que o respeito que nascia da consciência. Lembro-me que era necessário dar benção aos mais velhos. Ao chegar a determinado lugar onde encontrasse meus avós, tios, mãe, pai, tinha que proferir:

- Benção, fulano! – Ao que o interlocutor respondia:

- Benção, meu filho!

Quando não respondia era repreendido por frases severas, intempestivas:

- Esse menino anda uma coisa séria. Nem parece gente. Parece mais bicho.

Ficava pelos cantos desconfiado, com o olhar pidão, envergonhado por tamanha falta. Prometia a mim mesmo que na próxima ocasião eu me emendaria. Consertaria tudo. Poria remendos grossos naquele ato tão ignóbil. E o pior de tudo é que iam reclamar à minha mãe dos meus modos. Levava outra reprimenda da minha mãe.

Tratava-se de um mundo patriarcalista no qual homens mandavam por, simplesmente, serem homens. Durante toda a minha infância, cresci com este conceito de que “homem é assim”, “homem faz assim”, “homem age assim”.

Um exemplo disso é meu avô materno. Trata-se de uma figura de uma compreensão antiga acerca dos fatos. Descendente de escravos, meu avô é negro, como negra era a minha bisavó. Casou-se duas vezes. O primeiro casamento acabou em desquite. Vivia brigando com a primeira esposa como cão e gato. A mulher não se submetia aos conceitos de meu avô e o resultado eram escoriações e hematomas nos dois.

Casou-se uma segunda vez. Esta outra esposa é a minha avó – ainda viva. Desde os dezenove anos de idade gastando-se na beira do fogo. Vai manhã, vem tarde e ela com a sua paciência pachorrenta e inalterável. Sempre com o mesmo temperamento. Nunca a vi alterada por qualquer ato buliçoso. Desconfio que seja uma santa.

Meu avô era um tipo primitivo, modelo dos antigos senhores de engenho. Pai de todos. Sempre com os beiços enrugados. Numa sisudez de assustar os anjos. A casa do meu avô materno é um asilo de traumas e medos enlatados em conserva. Os filhos têm um respeito – medo – encabulador do pai, meu avô. Ele os criou em regime de servidão. Surras sobejas, trabalho duro e rude foi a alimentação vitaminada que receberam com fartura. Hoje ele está com oitenta anos, mas ainda preserva traços do patriarcalismo antigo e castrante. Um olhar dele ainda arrepia os cabelos da alma dos filhos – meus tios e tias e a minha mãe. Quando era pequeno passei muitos sustos com ele. Um rabo de olho congelava-me as ações, paralisava-me o coração, emudecia a minha loquacidade, mofava os movimentos ágeis e libertários da minha infância.

Uma certa vez acabei passando dois meses sem ir à casa do meu avô. Minha mãe havia me mandado buscar uma caixa de fósforos. Queria fumar. Naquele instante ela estava no rio lavando roupas nas pedras. Deu vontade de fumar, mas ela esqueceu o fósforo. Mandou que eu fosse buscar. Protestei, resmunguei. Finalmente, ela me venceu pela autoridade. Ameaçou-me. Fui contrariado. Menino descalço, galguei a ladeira com xingamentos implícitos em cada frase. Caminhada medonha. A casa distante. Sol a pino no céu. Fui à casa de minha avó buscar a caixa de fósforos. Quando vinha, ainda remoia injustiças. Quando surgiu-me o fantasma da tentação. Ao passar próximo às canas do meu avô, que naquela ocasião estavam pequenas, cobertas pela palha do corte da safra que acabara há poucos meses, risquei o fósforo na matéria seca. A lingüeta do fogo surgiu rápido. Cresceu. Fortaleceu-se com o combustível que estava ali. Perdi o controle do fogo. Tentei abafá-lo. Meus esforços foram debalde. Corri. Não sei quem viu ou apagou o fogo. Dentro de mim, eu tinha consciência de que havia prevaricado. Uma sensação de que havia cometido um crime hediondo. Meu avô com certeza me daria um “lapo”, como ele costumava dizer. Entreguei os fósforos para a minha mãe e fiquei ali quieto. Amofinado. Pensando em qual seria o resultado daquilo tudo. Com a consciência em formigamentos, eu iria ao outro lado da terra se minha mãe mandasse. Mudança abrupta.

Ausentei-me da casa de meu avô. Quando o via à distância, escondia-me. Certo dia minha mãe chegou em casa perguntando:

- Oh!, Carlos, tu tocou fogo na cana do teu avô, foi? Tu não tem o que fazer não, menino? – escondi-me em mim mesmo e gaguejei qualquer explicação bronca.

Meu avô havia contado para ela que o incendiário do canavial havia sido eu. O medo avolumou-se na minha alma. Quase todos os dias eu tinha o costume de ir à casa do meu avô, mas agora não tinha o que fazer. Teria que abdicar das minhas idas até lá. Tentei arranjar uma estratégia. O tempo seria responsável pelo esquecimento. Nada melhor do que a sucessão de dias que sempre traz eventos novos e acaba fazendo com que o passado fique como algo distante, esquecidiço. Após oito semanas decidi ir à casa de meu avô. Cheguei meio desconfiado, pelos cantos. Estudando todos os movimentos. Cada passo seguia uma diligência filosófica. Todavia, a primeira pessoa que encontrei foi meu avô que foi logo dizendo num crescendo de gigante.

- Foi você, seu cabra, que tocou fogo nas minhas canas, num foi? A próxima vez que você fizer isso, você vai me apanhar, tá entendendo? – petrifiquei-me. Certamente ele tinha uma autoridade fabulosa. Certamente ele havia adquirido dos deuses tamanho poder. Como infundia autoridade a sua voz! Era o eco de um trovão que entrava-me pelos ouvidos, machucava-me a interiodade.

Minha tia Lurdes era outra que me ameaçava com sentenças graves. Eu, Zequinha, meu irmão e Ginado gostávamos de ir tomar banho num riacho. Passávamos ali quase todas as manhãs. De manhã quando chegávamos ali as águas estavam limpas. Víamos o fundo como que por um espelho. Ali peixes nadavam e exibiam despreocupação. Começávamos a pular e água rapidamente ficava escura. Achávamos extraordinário. Divertimento de menino. Minha tia não via com bons olhos essa nossa ida – minha e do meu irmão – para o riacho tomar banho. Dizia que íamos pegar doença. A maleita ia nos vitimar. Ela ficava responsável por mim e pelo meu irmão quando minha mãe ia trabalhar na roça.

Fazíamos longas excussões para chegarmos ao riacho. Atravessávamos canavias de folhas cortantes. Peregrinávamos por um caminho três vezes mais distante do que o comum para chegarmos ao córrego a fim de que não fossemos vistos. Cresci num ambiente de moralidade forte. De uma religiosidade forte. De um catolicismo arraigado nas entranhas do povo. Com afirmações como estas: “Menino mal educado pode ser levado pelo papa-figo”. Até hoje não sei quem é esse papa-figo. “Menino que responde os mais velhos, o papai do céu castiga”. Ouvia estas sentenças sem saber divisar muito bem para o que elas serviam. Concentrava-me na sentença grave. A ameaça do castigo plasmava-se na minha mente e ecoava por regiões inteiras da minha alma. “Papai do Céu” devia ser um velho muito ranzinza, como o meu avô para que se zangasse e se importasse com o que as crianças faziam. Imaginava o ente enorme de cabelos alvos como algodão, com uma chibata na mão, pronto a me surpreender quando eu vacilasse. Com certeza, ele era um senhor idoso, que se utilizava da força cósmica para consumir aqueles que transgredissem a moral. Parece que a moral estava apenas do lado dos mais velhos. Eu, simples, criança sobrevivia subjugado pela força de Deus e dos homens.

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