segunda-feira, janeiro 23, 2012

Dogville, uma obra magnífica

Fiquei com uma sensação de espanto após ter terminado de assistir ao filme Dogville de Lars von Trier. Tive que fazer uma concessão - Trier é "o cara"! Fiquei afrontado com o Anticristo. Julguei que o diretor dinarmarquês havia desferido golpes demasiados no juízo do espectador. Havia feito um filme para chocar; chamar a atenção para si; propalar que ele era/é "o melhor" e fazia o que bem queria. Mas após assistir a Dançando no Escuro e a Dogville, percebi uma dimensão religiosa nos filmes de Trier; aquiesci que Trier é muito bom. Talvez lhe falte apenas um pouco de humildade.

Em Dançando no Escuro, filme de 2000, protagonizado pela islandesa Björk, Trier consegue produzir uma das obras mais belas dos últimos tempos. Um musical repleto de uma linguagem sensível, terna, angélica. Selma, a personagem de Björk, é um anjo encarnado. Sua bondade é tão extrema que nos atinge. Deixa-nos enraivecidos. Trier consegue transferir emoções fortes, instigando o espectador a sentir-se dentro do filme. Sofremos com a personagem. Reunimos argumentos internos para afirmar: "Não faça isso, Selma! Não é necessário se entregar dessa forma. Seja autêntica!". Mas a obra caminha para outro rumo. O final é surpreendente.

Já em Dogville, Trier propõe uma tese anti-humana. Seu dogmatismo nos deixa de queixo caído, exemplificando em mais um caso a sua religiosidade. A obra chega a ser quase uma metáfora bíblica da história de Sodoma e Gomorra. Segundo o livro de Gênesis, estas duas cidades foram alvo da ira divina por causa da maldade dos seus moradores. Em Dogville, Grace (Nicole Kidman) chega à cidade de Dogville e pede abrigo. Ela chegara à cidade porque estava sendo perseguida por gângsteres. Os moradores da estranha cidade reúnem-se em conselho e decidem deixá-la entre eles. Talvez aqui o diretor queira fazer uma crítica contundente à ideia de democracia. O nome Grace ("graça" em português) é outro elemento que nos chama a atenção. Segundo os teólogos, graça é uma bondade oferecida pelas mãos divinas. Ou seja, é aquilo que se recebe sem que se mereça. A personagem Grace começa a oferecer a sua ajuda imaculada aos moradores. Não pede nada em troca. Queria apenas ser aceita pelos cidadãos de Dogville. Eles acham por bem remunerá-la pelos trabalhos.

O que nos impressiona é a fotografia do filme. Trier monta os cenários como Brecht em seu cinema político, naquilo que ficou conhecido como "o teatro do absurdo". Lembrei de Mãe Coragem, peça do dramaturgo alemão que vi há algum tempo atrás. Os planos nos dão uma experiência de totalidade teatral. Enquanto uma cena se passa no primeiro plano, vemos no transfundo, o que acontece com os demais personagens e com a cotidianidade da cidade. Desse modo, a estrutura do filme possui nove capítulos e um prólogo. Um narrador onisciente nos conta a história, como se tudo fosse uma faz de conta.

O dogmatismo da tese de Trier começa a se acentuar quando a polícia começa a fazer visitas à cidade à procura de Grace. A partir desse momento, os moradores revelam o seu lado cruel. Resolvem duplicar o trabalho e tratar Grace, "a graça", de uma maneira insensível. É repreendida por muitos daqueles que outrora a tratavam bem. Passa a ser alvo da lascívia dos homens da cidade, tornando-se numa espécie de Geni da música cantada por Chico Buarque. A comunidade passa a "jogar pedra na Grace". As injustiças revelam o lado asqueroso da "cidade dos cães". O nome Dogville passa a fazer jus à cidade. O intelectual e reflexivo Thomas Edison Jr. tenta ajudá-la, mas por sua vez, suas iniciativas são patéticas e infaustas. Talvez, resida nesse sentido, uma crítica ao papel ineficiente dos intelectuais. A falta de eficácia. As teorias rebuscadas e que grassam poucos resultados na realidade efetiva. O discurso vago e desarticulado. A falta de coerência com o mundo prático.

Como uma grande obra que é, o filme permite inúmeras leituras - teológica, histórica, sociológica, filósofica. Por exemplo, para alguns críticos, Dogville é uma metáfora da sociedade americana e sua aversão ao estrangeiro. A visão estagnada para o outro. Ou seja, para aquilo que vem de fora. Outra leitura mais globalizante, seria aquela que fala da condição humana. Nesse sentido, Trier caminha na direção contrária do "bom selvagem" de Rousseau. No fundo, a obra nos passa a mensagem de que os homens são deliberadamente arrogantes, gananciosos, lascivos, egoístas e grávidos pelos próprios interesses. Segundo, o filme não há salvação para a humanidade.

Fiquei verdadeiramente impressionado com as cenas finais do filme. O pai de Grace, o gângester (que queria partilhar o seu poder com a filha), acha-a. E os diálogos são de uma visceralidade filósófico-teológica que beiram o absurdo. Ao chegar à cidade, o gângster indaga a Grace se ela deseja que a cidade seja aniquilada. Curiosamente, ninguém vê o rosto do pai, como se este fosse um poder invisível que decide o destino dos homens. A personagem de Nicole Kidman, conversa com o todo onipotente pai sobre o poder e sobre o destino da cidade. E, por final, Grace resolve solicitar ao pai que reduza a nada a cidade. O diálogo de Grace com o pai nos faz lembrar a conversa do texto bíblico entre o patriarca Abrãao e a divindade de Israel quando da destruição das cidades já mencionadas - Sodoma e Gomorra.

O próximo filme que eu verei será Melancholia (2011). Quando vemos filmes como este nos indagamos: "Será que o cinema americano terá condições de produzir algo assim?" Mas não sejamos dogmáticos!

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