quinta-feira, janeiro 02, 2014

Alguns devaneios e um livro de Paul Tillich - "História do pensamento cristão"

Paul Tillich
Sempre fui religioso. Durante muito tempo, o medo e a culpa foram as minhas principais religiões. Fiz minhas preces. Li a Bíblia quatro ou cinco vezes. Frequentei igreja. Elaborei prédicas. Semeei esperanças e julgamentos. Tudo em nome de um dogma. Estudei em um seminário. Formei-me em teologia. Perscrutei como são as entranhas da religião. Senti o cheiro de seus órgãos. Como são estruturados os seus tecidos. A régua de cálculo é a teologia. É com ela que se mede os espaços; que se estabelece aquilo que é certo ou errado. A religião é, por natureza, dicotômica. Ela não existe sem um "sim" e sem um "não". Ou seja, ela não consegue existir sem a ideia de "bem" e sem a ideia de "mal". De "bem" se chama aquilo que está harmonizado com os ditames do dogma; de "mal" se chama aquilo que não está de acordo com as sentenças do dogma.

Analisando friamente a história da evolução do homem, chegamos a conclusões desconcertantes. Tudo está na história. Ela explica o presente. A questão essencial passa a existir quando negligenciamos a análise dos processos históricos. O mundo sempre foi o mesmo? Os antigos não estruturaram as nossas consciências? A resposta para as certezas do presente não estariam no passado? 

Hoje temos a tecnologia por todos os lados. Ela nos pervade. Estamos tão acostumados a ela, que achamos estranho quando ficamos sem nosso celular ou sem acessar a rede mundial de computadores; ou quando a energia elétrica tem o fornecimento prejudicado. Acostuma-nos às informações. Quando queremos saber algo vamos ao Google. Lá encontramos todas as respostas. Tudo é tão óbvio. A medicina caminha a passos largos. Conseguimos coibir boa parte da enfermidades que eram capazes de dizimar populações inteiras.  Temos ressonâncias computadorizadas sofisticadíssimas. Enxergamos, hoje, o núcleo essencial da vida. Mapeamos geneticamente o DNA. Vimos que não estamos distantes dos outros seres do ponto de vista genético. Existe um nível de parentesco muito grande - principalmente, com os primatas. Podemos escolher o sexo, a cor dos olhos, do cabelo das crianças.

Sören Kierkegaard

Mas tudo foi assim? E quando queríamos entender essas coisas e não tínhamos um aparato científico tão desenvolvido? É, justamente, aí que entra a religião. Ela foi a primeira forma de explicação. Os mitos surgiram como forma de explicar a materialidade. Os antigos, simplesmente, disseram: "É vontade dos deuses!" Era a forma de construir diques contra o caos de uma existência fincada no nada. Em momentos de solidão, de agonia, de dor, o melhor remédio é saber que não se está sozinho. Daí, ao se criar um "ser invisível", "onipotente", "onipresente", que vigia e guarda os nossos desejos, passamos a experimentar uma estabilidade psicológica. Feuerbach, filósofo alemão do século XIX, costumava dizer que religião é "antropologia". Eu diria, também, que religião é "psicologia". Tudo é resultado de uma consciência depositada em receptáculo onipotente (deus), que passa a guardar, salvar, premiar, privilegiar e explicar a totalidade do universo. 

O crente encontra tudo o que ele procura em sua fé. Ela explica tudo. Tire-se a fé e ele tem as suas estruturas psicológicas abaladas. Todavia, ele não sabe que tudo está em nós. Ou seja, a religião revela intimidade do próprio homem. Seus medos. Inseguranças. Seus desejos velados. Sua necessidade de justiça ante a injustiça. Sua vingança contra os cataclismos de um mundo desordenado. É a saudade sentida por algo que ele nunca experimentou, que se transforma em torrente psicológica quando ele verbaliza para um ente invisível. Deus é o próprio homem querendo achar a si mesmo na noite escura da alma. 

Ocorreram-me esses devaneios, depois que li o livro História do Pensamento Cristão, de Paul Tillich, um dos maiores teólogos da história do cristianismo protestante. Tillich era polonês e após ter participado da Primeira Guerra Mundial teve as suas percepções sobre o ser humano e a história completamente alterados. Por ter vivenciado as agruras da guerra como capelão, observou o quanto o ser humano é habitado por uma torpeza absurda. Abraçou uma epistemologia existencialista. Kierkegaard é um dos progenitores do seu pensamento. Leciounou teologia em um seminário que tinha nomes como Heidegger e Rudolf Bulltmann. E a partir desse entendimento buscou trazer lampejos de esperança ao homem do século XX. A desolação de uma época fundada na desesperança fez com que Tillich construísse uma teologia que respondia a um questionamento: "Onde está Deus em meio a tudo isso? Onde achar esperança?" E Tillich respondia: "A mensagem de esperança está escondida em ti. Deus é um evento relativo que está escondido em ti mesmo, ó homem do caos". 
 
A mensagem, necessarimente relevante, é aquela que responde a uma necessidade pessoal. A religião fica nua, sem os seus dogmas, sem as suas folhagens; sem seus códigos construídos pelos "eminentes" teólogos. Ou seja, a filosofia passa a está à frente da fé. Não é a fé que, agostianamente, dita o que é certo ou errado em matéria de crença, mas a existência que determina o ser ou não-ser.  Poderia dizer que é um quase tomismo sem o método escolástico. 

O livro de Tillich solidificou uma desconfiança que há muito me acompanhava. Vi como os dogmas do cristianismo, as polêmicas e o pensamento hegemônico se consolidaram. O mundo que está aí foi montado por alguém. E essa deve ser a premissa. Ora, quem "construiu" os dogmas do cristianismo? Por que se crer desse jeito e não de outro? Por que o mundo ocidental é cristão e não politeísta ou não se tem uma fé gnóstica? Por que se crer na trindade? Esse conceito sempre existiu? A dupla natureza de Cristo é algo que sempre foi acreditado dessa forma? E os livros bíblicos ditos sagrados, quem os tornou "santos"? E o dogma do pecado original? 

São questões que devem ser respondidas com máxima urgência. Quando se olha para a história, nota-se que determinados sujeitos construíram esses conceitos. Os concílios fomentaram aquilo que se deveria crer e aquilo que não se deveria crer. Ou seja, o mundo ocidental acredita naquilo que foi construído pela institucionalização de um movimento. A cultura hegemônica de um povo tornou-se a referência absoluta incomparável. Gramsci afirma de forma lapidar sobre esse tema: 

Antonio Gramsci
"(...) A história da filosofia, como é comumente entendida, isto é, como história das filosofias e dos filósofos, é a história das tentativas e das iniciativas ideológicas de uma determinada classe de pessoas para mudar, corrigir e aperfeiçoar as concepções do mundo existentes em todas as épocas determinadas e para mudar, portanto, as normas de conduta que lhes são relativas e adequadas, ou seja, para mudar a atividade prática em seu conjunto"
"A filosofia de uma época não é filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: é uma combinação de todos estes elementos, culminando em uma determinada direção, na qual sua culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se "história" concreta e completa (integral)". 
"A filosofia de uma época histórica, portanto, não é senão a história desta mesma época, não é senão a massa de variações que o grupo dirigente conseguiu determinar na realidade precedente: neste sentido, história e filosofia são inseparáveis, formam um "bloco". (GRAMSCI, 1981, p.32).

Assim, nota-se que a construção de determinada massa ideológica ou determinado força filosófica hegemônica se dá em determinado momento histórico pelo grupo majoritário, pelo jogo de interesses do grupo dominante. Os dogmas ou os sentidos da fé são resultado da força da Igreja que açambarcou a estrutura do Estado romano e se tornou a força ideológica totalizante. Os filósofos, teólogos, são, simplesmente, debatedores de uma dogma criado superestrutura que tinha a Igreja como força oficial. Ou seja, debatiam o status quo filosófico.

O livro do Tillich é relevante. Ele faz um passeio pela história. Discute o pensamento de cada filósofo e as querelas suscitadas pelas filosofias de cada um deles. Boa parte do livro é dedicado a discutir o pensamento teológico e filosófico dos primeiros séculos da era cristã. Explica os principais movimentos filosóficos religiosos que faziam parte do background dos mundos grego e romano e que foram extirpados pelo cristianismo. Teólogos importantes como Pelágio, Orígenes, Filo de Alexandria, Ário, Sabélio, tiveram seus pensamentos colocados na marginalidade pela força oficial da Igreja. As cidades importantes que fomentaram importantes debates - Alexandria, Antioquia, Bizâncio, Calcedônia.

Discute os principais nomes da filosofia e da teologia medieval - Tomás de Aquino, Abelardo, Bernardo de Claraval, Joaquin de Fiori, Anselmo, Guilherme de Ockham, Meister Eckhart. Discute os principais dogmas da Reforma e da Contra-Reforma. Discute, em seguida, o movimento escolástico protestante e o iluminismo. O livro é excelente para quem quiser conhecer profunda e filosoficamente como a fé ocidental está estruturada. O livro, na verdade, é resultado das aulas de Tillich dadas no período em que ele morou nos Estados Unidos.

Tinha o livro desde 2007 e li no final de dezembro último. O interesse foi tão salutar que comprei o outro livro do teólogo (Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX), em que Tillich aborda a filosofia e a teologia dos séculos XIX e XX. Consegui-o em um sebo de Goiânia pela bagatela de vinte e um reais. Está novinho em folha.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Civilização Brasileira. trad. Carlos Nelson Coutinho, São Paulo. 1981, pp. 341

TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. ASTE. São Paulo. 2004, pp. 293

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