segunda-feira, outubro 02, 2023

"É isto um homem?", de Primo Levi.

 


“...compreendi como é penosa a morte de um homem”. (p. 251)

“A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas”.

 Os excertos acima foram extraídos de duas tonitruantes passagens do livro “É isto um homem?”, do italiano Primo Levi. Sem qualquer ímpeto hiperbólico, afirmo sem temor de errar que é uma das mais dolorosas descrições sobre as memórias da dor que já tive a oportunidade de ler. Já li alguns outros relatos de prisões e de campos de concentração. Destaco, por exemplo, “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos; ou, “Memórias da Casa Morta”, de Dostoiévski. Vale mencionar os seis livros escritos por Varlam Chalamóv e os seus perturbadores “Contos de Kolimá”. Posso mencionar ainda “Nada de novo no front”, do alemão Rich Maria Remarke, como outro texto de grandioso realismo sobre a barbárie e a coisificação do homem.  Todavia, em “É isso um homem?”, verifica-se o quanto o absurdo se torna uma regra inescapável.

Em Levi, há um aturdimento em cada palavra. Um mergulho no escuro. Cada palavra é carregada pela força infensa do sofrimento, da fragmentação. Há um mergulho no fundo. No abismo. Essa lógica da desumanização acontece do início ao final da obra. Levi afirma que havia uma ironia atroz na entrada do campo para onde foi levado: “ARBEIT MACHT FREI – o trabalho liberta”. Libertaria em que sentido? Certamente, que os que entravam ali para trabalhar, “gastavam-se” tanto no esforço, na falta de alimentação, que a libertação era a morte. Trabalhava-se para morrer. “Todas as horas de luz são horas de trabalho”. 

Outra frase que poderia estar esculpida no portal: aquela enunciada em “Em Divina Comédia” e avistada por Dante na abertura: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”. O próprio Levi afirma: “Isto é o inferno”. Os detalhes eram pensados para oprimir; para despersonalizar. A banalidade do mal, expressão cunhada por Hannah Arendt para categorizar os trabalhos realizados pelo nazista Eichmann, era uma realidade que grassava por todos os lados.  A contabilidade da morte era cruel. Mais de 650 foram embarcados na Itália, apenas 27 sobreviveram; dos 45 do vagão em que estava Primo Levi, só 4 sobreviveram – “e o meu vagão foi, de longe, o mais afortunado”.

Levi foi preso na Itália, no final de 1943. Afirma ele que tinha 24 anos e “pouco juízo”. Antes disso, formara-se em química. Havia estudado em uma famosa escola italiana em que o estudo da língua e da literatura eram pontos fortes. Como a Itália também enfrentava um regime autoritário à semelhança da Alemanha de Hitler, Levi entrou em um grupo de resistência ao movimento fascista. Foi preso. Quando identificado como judeu, acabou sendo encaminhado para a Alemanha. 

 Os campos de concentração eram espaços de desumanização. O aniquilamento completo do sujeito era a finalidade. O corpo entrava em uma espiral de desfazimento. Aos poucos, não era possível sentir nem o corpo nem a alma. O indivíduo não se notava. O comportamento animalesco se instaurava. Vivia-se como um zumbi. O objetivo era apagar o futuro e o passado. Estraçalhar as memórias. Destruir qualquer cordão de sentimento que conectasse o sujeito à humanidade. Não havia tempo, não havia lugar para se ter medo. Afinal, os fios que teciam a humanidade eram apagados um a um: Ele afirma:

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas de seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo o que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo.

 Levi em certo momento fala da “fome regulamentar”.  Diz ele: “Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento dos nossos corpos”. O corpo era a dimensão a ser reduzida a nada. Ele recebia as refregas mais variadas – fome, pancadas, cama dura, frio, trabalho em condições insalubres, percevejos, pulgas; doenças variadas. Os prisioneiros eram reduzidos a meros rebotalhos. “Como não poderíamos pensar em não ter fome? O Campo é a forme; nós mesmos somos a fome, uma fome viva”.

“Ai de quem sonha!” A realidade é um grande pesadelo e traga – como um grande sorvedouro – qualquer possibilidade de fantasia. É curioso que Viktor Frankl tenha escrito um livro, cujo centro fulcral de sua reflexão sobre “o sentido” é um campo de concentração. A realidade verruma “uma pontada dolorosa”. Não é possível sonhar, pois se é um animal cansado, bestificado, assustado, à espera de nada. Há um trágico instante em que o sujeito desiste de compreender, de pensar, de fazer associações. Ele apenas repete gestos maquinais. Tornou-se um animal dócil. “Há muito que parei de tentar compreender”.

Levi possuía uma consciência incontornável de que a sua vida foi poupada por um conjunto de fatores – já estava no final da Guerra; sua formação como químico foi fundamental; o fato de ter ficado doente com escarlatina o impediu de seguir para a chamada “marcha da morte”, desfechada nos momentos finais pelos alemães, quando perceberam que perderiam o confronto para os Aliados. Levi ficou onze meses no Campo de Auschwitz-Birkenau, dois dos mais mortais centros de aniquilação do século XX.

O italiano foi liberado, no final de janeiro de 1944. Todavia, voltaria à sua Itália alguns meses mais tarde – em outubro. O caminho de volta, passando por alguns países – Polônia, Romênia, Ucrânia etc – descreve em “A trégua”, outro dos seus excelentes escritos. 

 “É isto um homem?” é um documento que não deve ser ignorado. Deveria ser lido por todos os humanistas. Todas as escolas deveriam adotá-lo. Ser distribuído gratuitamente. Após a sua leitura, ficamos a nos perguntar o quanto o ser-humano pode cruel; o quanto uma vida pode ser degrada por uma ideologia do ódio. Em uma das suas últimas e embasbacantes reflexões, Levi afirma que “Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem”. O que se os nazistas impingiram a milhões de pessoas não foi humano. Não é possível usar tal adjetivo. Pode-se chamar de monstruosidade, assassínio, brutalidade. Levi com essa obra atesta a impossibilidade da metafísica.

Nenhum comentário: