Retorno ao belo e dramático
texto de “As Confissões”, de Santo Agostinho. A primeira vez que o li, em 2005,
eu era um ardoroso cristão. Frequentava a Igreja Presbiteriana. Estudava
teologia em um seminário. Derramava-me em preces. Procurava aquecer a minha
alma com a luz emanada da fé. Agostinho ajudou-me nisso. Foi um mestre profundo
a quem eu li com o coração em chamas.
Regresso a Agostinho. Dessa vez,
já não há crença profusa, mas há respeito. Não há ilusões, mas escuto-o com
atenção. Bebo as suas palavras vagarosamente para sentir os efeitos. O grande
bispo continua a falar com a típica beleza inegável. Com o jogo retórico. Com
as imagens que suscitam uma comovente admiração.
Agostinho é um dos pensadores
que me define. Sua paixão pelo mistério, pela verdade, pela coerência, sempre
foi uma orientação e uma paixão para mim. Conecto-me com a resplandecência que
deriva do seu pensamento. Leio as suas palavras e sou visitado por uma buliçosa
centelha de paixão. O grande teólogo é um mestre da elegância e dono de uma
intuição filosófica invejáveis. Era
daquelas pessoas que sempre questionava aquilo que fazia e procurava um
propósito pelo qual deveria viver.
Quando analisamos a sua vida, percebemos o quanto, desde pequeno,
Agostinho demonstrava uma potência inevitável. A criança que procurava apanhar
as goiabas do vizinho por achá-las mais vistosas, o jovem vaidoso, o adulto
arrogante, mestre respeitado da retórica, demonstrou ao longo de sua caminhada
que algo estava a faltar. Agostinho realizou uma carreira primando pela
satisfação dos próprios desejos, até que esbarrou na nulidade, que é o
resultado daquele que obedece apenas a si mesmo. A vida de Agostinho pode ser
sintetizada na passagem de Eclesiastes 3.11: “Também pôs [Deus] no coração do
homem o anseio pela eternidade”.
Mais tarde, ele proferiria em “As
Confissões”: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te
amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora”. Essa noção de
que a vida equivocada é aquela que se vive fora da verdade do Deus cristão é a
grande máxima de Agostinho. O homem, enquanto caminha, deve estar bem atento,
pois a caminhada pode conduzi-lo à verdade e, portanto, à fruição de Deus (a
Cidade de Deus) ou ao caminho do equívoco, do mal – a cidade dos homens.
A caminhada errada leva sempre
ao engano, ao choro, à angústia. Sofremos, agonizamos e não experimentamos a
verdadeira paz enquanto não repousamos em Deus. E é, justamente nesse ponto,
que repousa um dos mais sofisticados e elaborados entendimentos filosóficos do
Mundo Ocidental: a noção do mal e do bem. O bem permite folgar, fruir,
experimentar Deus. Quem assim o faz, acha a verdadeira felicidade. Tudo o que
existe é bom. Não existem verdades que não sejam divinas. Dessa forma, o mal
não é uma antítese, uma força contrária como algo em si. O mal não tem
substância. Foge-se, assim, de um maniqueísmo,
corrente teológico-filosófica da qual Agostinho fizera parte. Observando de uma
força bem superficial, pode-se afirmar que o princípio elementar do maniqueísmo
é que mal e bem são forças antagônicas, com a mesma potência – Deus (o bem) e
Diabo (o mal).
Para Agostinho, o mal é a
ausência de bem. O mal é um desvio na rota de qualquer indivíduo. Ser mal ou
viver no mal é estar longe de Deus; ignorar os seus princípios e,
consequentemente, não experimentar a felicidade Dele oriunda. Pode-se comparar
a existência do mal como uma escuridão que acomete uma sala quando a porta é fechada.
A escuridão está ali, mas pode ser desfeita, uma vez que a posta seja aberta. A
escuridão existe onde houve privação da luz. O mundo e todas as coisas que o compõem
existem para a luz.
Esse pensamento é coerente com a
sua própria vida. Agostinho entende que no período em que “fechou a porta” experimentou
o mal. Somente quando foi redirecionado pela graça divina para o próprio Deus,
pôde conhecer o bem para o qual havia sido criado. A compreensão de Agostinho é
a de que, enquanto não chegamos à graça, a vida de todo ser humano é
acompanhada por uma insofismável sucessão de infelicidades.
Como o bispo de Hipona revigora.
Como seu pensamento é delicado e comovente. Hoje, não me oriento pela sua
divindade. Todavia, percebo que há em mim uma sede pelo mistério. E é possível
transformar esse seu desejo em contemplação; e a contemplação em matéria para
poesia.
“As Confissões” é um texto em que Agostinho se analisa, perscruta os
próprios pensamentos e intenções. Ler “As
Confissões” é realizar um exercício de autoconhecimento. Enquanto lemos o texto
agostiniano e observamos a maneira como seu autor se enxerga, passamos a nos
compreender também. “As Confissões” é uma antropologia; um espelho do próprio
ser humano à procura da eternidade; um trabalho arqueológico e ontológico.
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