segunda-feira, setembro 18, 2023

Devaneios sobre Santo Agostinho

 

                Retorno ao belo e dramático texto de “As Confissões”, de Santo Agostinho. A primeira vez que o li, em 2005, eu era um ardoroso cristão. Frequentava a Igreja Presbiteriana. Estudava teologia em um seminário. Derramava-me em preces. Procurava aquecer a minha alma com a luz emanada da fé. Agostinho ajudou-me nisso. Foi um mestre profundo a quem eu li com o coração em chamas.

                Regresso a Agostinho. Dessa vez, já não há crença profusa, mas há respeito. Não há ilusões, mas escuto-o com atenção. Bebo as suas palavras vagarosamente para sentir os efeitos. O grande bispo continua a falar com a típica beleza inegável. Com o jogo retórico. Com as imagens que suscitam uma comovente admiração.

                Agostinho é um dos pensadores que me define. Sua paixão pelo mistério, pela verdade, pela coerência, sempre foi uma orientação e uma paixão para mim. Conecto-me com a resplandecência que deriva do seu pensamento. Leio as suas palavras e sou visitado por uma buliçosa centelha de paixão. O grande teólogo é um mestre da elegância e dono de uma intuição filosófica invejáveis.  Era daquelas pessoas que sempre questionava aquilo que fazia e procurava um propósito pelo qual deveria viver.

Quando analisamos a sua vida, percebemos o quanto, desde pequeno, Agostinho demonstrava uma potência inevitável. A criança que procurava apanhar as goiabas do vizinho por achá-las mais vistosas, o jovem vaidoso, o adulto arrogante, mestre respeitado da retórica, demonstrou ao longo de sua caminhada que algo estava a faltar. Agostinho realizou uma carreira primando pela satisfação dos próprios desejos, até que esbarrou na nulidade, que é o resultado daquele que obedece apenas a si mesmo. A vida de Agostinho pode ser sintetizada na passagem de Eclesiastes 3.11: “Também pôs [Deus] no coração do homem o anseio pela eternidade”.

                Mais tarde, ele proferiria em “As Confissões”: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora”. Essa noção de que a vida equivocada é aquela que se vive fora da verdade do Deus cristão é a grande máxima de Agostinho. O homem, enquanto caminha, deve estar bem atento, pois a caminhada pode conduzi-lo à verdade e, portanto, à fruição de Deus (a Cidade de Deus) ou ao caminho do equívoco, do mal – a cidade dos homens.

                A caminhada errada leva sempre ao engano, ao choro, à angústia. Sofremos, agonizamos e não experimentamos a verdadeira paz enquanto não repousamos em Deus. E é, justamente nesse ponto, que repousa um dos mais sofisticados e elaborados entendimentos filosóficos do Mundo Ocidental: a noção do mal e do bem. O bem permite folgar, fruir, experimentar Deus. Quem assim o faz, acha a verdadeira felicidade. Tudo o que existe é bom. Não existem verdades que não sejam divinas. Dessa forma, o mal não é uma antítese, uma força contrária como algo em si. O mal não tem substância.  Foge-se, assim, de um maniqueísmo, corrente teológico-filosófica da qual Agostinho fizera parte. Observando de uma força bem superficial, pode-se afirmar que o princípio elementar do maniqueísmo é que mal e bem são forças antagônicas, com a mesma potência – Deus (o bem) e Diabo (o mal).

                Para Agostinho, o mal é a ausência de bem. O mal é um desvio na rota de qualquer indivíduo. Ser mal ou viver no mal é estar longe de Deus; ignorar os seus princípios e, consequentemente, não experimentar a felicidade Dele oriunda. Pode-se comparar a existência do mal como uma escuridão que acomete uma sala quando a porta é fechada. A escuridão está ali, mas pode ser desfeita, uma vez que a posta seja aberta. A escuridão existe onde houve privação da luz. O mundo e todas as coisas que o compõem existem para a luz.

                Esse pensamento é coerente com a sua própria vida. Agostinho entende que no período em que “fechou a porta” experimentou o mal. Somente quando foi redirecionado pela graça divina para o próprio Deus, pôde conhecer o bem para o qual havia sido criado. A compreensão de Agostinho é a de que, enquanto não chegamos à graça, a vida de todo ser humano é acompanhada por uma insofismável sucessão de infelicidades.

                Como o bispo de Hipona revigora. Como seu pensamento é delicado e comovente. Hoje, não me oriento pela sua divindade. Todavia, percebo que há em mim uma sede pelo mistério. E é possível transformar esse seu desejo em contemplação; e a contemplação em matéria para poesia.

“As Confissões” é um texto em que Agostinho se analisa, perscruta os próprios pensamentos e intenções.  Ler “As Confissões” é realizar um exercício de autoconhecimento. Enquanto lemos o texto agostiniano e observamos a maneira como seu autor se enxerga, passamos a nos compreender também. “As Confissões” é uma antropologia; um espelho do próprio ser humano à procura da eternidade; um trabalho arqueológico e ontológico.


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