quarta-feira, agosto 16, 2023

"A luneta mágica", de Joaquim Manuel de Macedo - algumas palavras

 


“Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome. Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio. Sou míope; pior que isso, duplamente míope, míope física e moralmente”.

 

Joaquim Manuel de Macedo, carinhosamente chamado à sua época de Macedinho, é um caso singular na literatura do nosso país. É atribuída a ele a inauguração do romance brasileiro. Em 1844, com a escrita de “A moreninha”, Macedo funda um tipo de texto que, ainda no século XIX, conheceria nomes prodigiosos como o de José de Alencar, Aluísio de Azevedo e Machado de Assis.

Macedo foi um autor bem diverso de Machado, por exemplo. Trilhou um caminho bem diferente. Fundou um estilo que, como diria Antonio Candido, era ‘digressivo, coloquial; entremeado por piadas e lágrimas; tendendo à caricatura, mesmo ao lado da tragédia; cheio de alusões políticas’. Candido ainda afirma que os romances do autor ‘parecem, antes, narrativa oral de alguém muito conversador, cheio de casos e novidades’.

E, talvez, essa seja uma das características profusas de sua obra. Enquanto em vida, Macedo desfrutou de um enorme sucesso. Seus textos eram aguardados por moças sonhadoras e jovens curiosos. Por exemplo, “A luneta mágica” foi publicado em fascículos, em um período de seis meses. Macedo fez fortuna; viveu confortavelmente. Há um repertório crítico que entende que os textos do autor são ingênuos, com pouca profundidade. Versam sobre passeios; namoros galantes; bailes disputados; vestidos que farfalhavam e ondulavam ao vento; idílios, suspiros; e muito romance fantasioso com aspectos impossíveis.

O escritor alcançou fama com essa fórmula. Escreveu dezoito romances e doze peças teatrais. Ficou conhecido por essas características – o Macedinho, autor d’“Moreninha. Macedo seria o nosso Johann Strauss II, só que da literatura. Uma antítese inevitável com o maior de nossos romancistas, Machado de Assis. Todavia, antes de “Memórias Póstumas”, Macedo escreveu um dos livros mais seminais da literatura brasileira – ou seja, “A luneta mágica”. 

O livro foge do esquema do romance que aborda os arroubos amorosos tão característicos dessa fase. Observa-se que Macedo está preocupado em tratar em tom de ironia muitos dos aspectos da sociedade de sua época. A partir da perspectiva do narrador em primeira pessoa, nota-se a estrutura que compõe o tecido social e os costumes desse certo período do Império. “A luneta mágica” descreve com bastante picardia e doses de ironia alguns dos personagens – os finórios, os espertos, os malandros, os oportunistas, os velhacos. 

Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)

Simplício, como pode ser observado pelo excerto colocado no início deste texto, sofre de um problema que o preocupa desde o nascimento. Uma miopia se espraia em duas direções – uma física e outra moral. Isso traz enormes prejuízos a ele, pois não consegue se autodeterminar. Vive sempre às expensas das opiniões alheias. Para resolver essa disfunção, seu amigo Reis o apresenta a um sujeito cujo nome surge apenas como um gentílico – “armênio”, escrito com inicial minúscula, o que ainda reforça a ideia de mistério e indefinição. Essa personagem enigmática esculpe para Simplício uma luneta capaz de amplificar a capacidade de ver. Em um primeiro momento, a luneta cumpriria o seu papel, potencializar a possibilidade de mostrar os objetos e as pessoas em suas superficialidades. Mas, se “a coisa” fosse observada por mais de três minutos, enxergar-se-ia a essência, ou seja, como realmente se é.

Na primeira parte do livro, Simplício passa a enxergar o mal, a feiura das pessoas e das coisas. Não há pessoas genuinamente boas. Todos são interesseiros ou fingidos sociais. O mano Américo é um espertalhão; a prima Anica – tão recatada - é uma interesseira; a tia Domingas é uma religiosa hipócrita. Os amigos formam uma súcia de abutres. Até mesmo, no reino animal, Simplício encontra o desejo da rapinagem e da vilania. A personagem experimenta a tese hobbesiana de que ‘o homem é o lobo do próprio homem’. A fórmula que estrutura as relações sociais é maldade, o desejo de “espoliar”, de “assolar” o outro; de tirar-lhe tudo o que for necessário. Mas, inevitavelmente, essa maneira de enxergar o mundo conduziu a personagem a complexos problemas. 

Na segunda parte da narrativa, Simplício é conduzido novamente ao armênio; e este forja uma nova luneta. Diferente da primeira versão, a luneta terá a mesma configuração, mas mostrará apenas “o bem”. É enxergando bem que Simplício arranjará as maiores dificuldades, pois ele passa a experimentar, paradoxalmente, a maldade e a esperteza das pessoas. Onde havia apenas finórios, Simplício passa a ver apenas pessoas virtuosas. Torna-se generoso ao extremo. Esbanja a herança. Empresta dinheiro. Financia lautas refeições a ladinos sociais. Por fim, sua família resolve interditá-lo, pois estava dilapidando a fortuna que recebera. Pelo menos um terço de tudo o que possuía foi consumido.

Após uma crise que o empurra ao desejo suicida, Simplício é salvo. Recebe uma nova luneta. A terceira versão do objeto procura mostrar as pessoas e as coisas de forma equilibrada. A parte final da obra possui um discurso moral do armênio. Como um mestre que procura explicitar o sentido de uma parábola, o escultor da luneta busca tornar evidente para Simplício que o mal é uma possibilidade; mas, o bem também. Fica a lição de que “na visão do mal como na visão do bem há um fundo de verdade”. Ou seja, há o bem e o mal em todas as realidades da vida. É preciso buscar o equilíbrio. O erro existe no exagero, na fixação, na contumácia, na teimosia. A vida, no fundo, é constituída por um movimento que oscila entre o bem e o mal. Apegar-se a um ou a outro de maneira radicalizada constitui um vício, uma invirtude; e, necessariamente, impele à infelicidade. Procurar “enxergar” a vida com equilíbrio e bom-senso é a melhor das fórmulas. 

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