terça-feira, novembro 28, 2023

A filosofia da história dos judeus

 


O atual massacre desfechado por Israel contra os palestinos possui uma justificativa semântica: há um entendimento, uma maneira de ser e existir para esse povo nômade. Ao passear de forma panorâmica pelas páginas do Antigo Testamento, encontrei ao menos três passagens bastante representativas de como os judeus apreendem e se impõem no mundo.

A primeira dessas passagens encontra-se em Números 31.17. Nela notamos a orientação de um líder militar ordenando que não houvesse piedade para com mulheres, crianças e animais que seriam conquistados. Na ocasião, os judeus peregrinavam pelo deserto, conforme descreve o Pentateuco. Receberam uma ordenança por parte de Javé para que o povo midianita fosse aniquilado. As meninas ainda virgens deveriam ser apropriadas, certamente para serem escravas sexuais.

Outra passagem bastante singular encontra-se em Josué 6.21. De acordo com esse livro, os judeus estavam num processo de disputa territorial com os povos que habitavam Canaã, a Terra Prometida. Diz o autor do livro, fazendo ecoar as palavras já expressas em Números que “homens, mulheres, crianças e velhos, assim como bois, ovelhas e jumentos, foram passados a fio de espada. Novamente, Javé, que pode ser definido como uma divindade guerreira, ordenou que não houvesse clemência. Afinal, o cerco à cidade de Jericó seria apenas uma etapa de algo que ele já havia determinado. A cidade e os seus homens já haviam sido conquistados (Js 6.2).

Mais representativo ainda é aquilo que se pode ler em 1 Sm 15. O texto enuncia explicitamente uma vingança da parte de Javé. Nota-se que a ordem que Samuel deu a Saul era resultado de um acerto de contas, uma revanche, uma vingança da divindade guerreira: “Resolvi punir o que Amalec fez a Israel cortando-lhe o caminho quando subia do Egito” (1 Sm 15.2; Dt 25.17-19; Ex 17.8-16). Os amalequitas ou amalecitas eram povos que viviam na parte Sul, próximo à fronteira com o Egito, nas imediações do Sinai. Esse povo geralmente pilhava tribos mais fracas. Raptavam mulheres, capturavam homens e vendiam-nos como escravos. Realizavam ataques oportunistas. Javé decide se vingar do povo de Amalec, conforme se nota no texto de Samuel. A ordem é dada de maneira meticulosa a Saul, aquele que é considerado o primeiro rei de Israel.

"Vai, pois, agora, e investe contra Amalec, condena-o ao anátema com o que lhe pertence, não tenhas piedade dele, mata homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos” (1 Sm 15.3). É importante notar que Saul poupou “Agag e tudo o que havia de melhor do gado miúdo e graúdo” (15.9). E nesse ponto residiu o seu equívoco, segundo nos aponta o texto bíblico. Javé se “arrependeu” (sic) de ter dado a Israel a realeza de Israel (15.11).

Salienta-se aqui que os escritos dos dois livros de Samuel têm por objetivo firmar um conceito de identidade nacional. Nota-se que os textos retratam um período em que os judeus já haviam se estabelecido no território de Israel. Era necessário consolidar uma ideia de reino como acontecia com os assírios. A crítica moderna entende que o texto surgiu no período entre 630 e 540 antes da era comum, ou seja, entre o período do exílio ou do período pós-exílico. Quando o texto foi escrito, buscava-se construir um discurso de conquista, fortalecendo um senso identitário de nação. Ou seja, ao longo de sua história Israel sempre precisou existir em torno de uma disputa. A batalha, o cisma e o exílio sempre fizeram parte da noção de judaicização. Ser judeu é também um conceito existencial. A própria criação de Javé como divindade que aglutina e organiza o povo para a conquista passa por essa compreensão.

Atualmente, quando se notam os ataques violentos e impiedosos contra o povo palestino  - embora não se aceite a violência desferida pelo Hamas contra a população civil de Israel -, depreende-se que para o seguimento mais radical de Israel não existe nenhuma anormalidade. Há base histórica no discurso criado por eles mesmos. Aquilo que eles denominam de Tanak (Torá ou Pentateuco – os cinco primeiros livros do Antigo Testamento – o Neviim – os profetas; e o Kentouvim – os escritos que compreendem os textos sapienciais) é misto de mitos, fabulações e construtos políticos a fim de legitimar um tipo de concertação para justificar a própria existência. Trata-se de textos altamente parciais, de visão tendenciosa, escritos por indivíduos que possuíam uma intencionalidade, textos estes transformados em sagrados.

Israel sempre utilizou de disputas para ser o que é. Aliás, é compreensível que assim o seja, pois estamos a falar de povo que possui quase quatro mil anos de história. É necessário reconhecer que os judeus foram vítimas de enormes injustiças ao longo da história como aconteceu ao longo da Idade Média ou o morticínio orquestrado pela máquina assassina de Hitler. Todavia, esperar do governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu que haja compreensão e piedade para com mulheres e crianças é impensado.

O ministro da Defesa de Israel – Yoav Gallant – proferiu uma sentença que faz ecoar a mensagem de Javé enunciada por Moisés e por Samuel: “Estamos impondo cerco total à Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem gás, tudo bloqueado” (09/10/2023). Gallant sentencia como que fazendo ecoar o que encontramos nas páginas do Antigo Testamento: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

A fala do líder político israelita revela de maneira inesitante como Israel compreende o mundo, seja cercando Jericó, seja aniquilando os amalequitas ou exterminando os palestinos em pleno século XXI. Israel percebe-se como o povo escolhido por Javé, a divindade arrancada do panteão cananeu e eleita à força como a sua divindade única. Para fazer isso, os judeus possuem uma filosofia da história, estruturada em uma narrativa que mescla lendas, fabulações e revisionismos históricos. Por ser um povo que construiu a noção de deidade e espiritualidade do mundo Ocidental, possui a simpatia e a tolerância de boa parte da comunidade internacional. Eis aí a sua grande astúcia.

 

Salvador-BA, 15/10/2023.

               

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