terça-feira, novembro 14, 2023

"A via-crucis do corpo", de Clarice Lispector. Algumas palavras.

 


A escrita clariceana não é fácil. O leitor desavisado não conseguirá avançar para além da quinta página de alguns dos seus textos. Um exemplo é “O lustre” ou “Perto do coração selvagem”.  Por sua vez, Clarice não é uma escritora difícil. Ora, como se situar nesse aparente paradoxo? O que acontece com os seus textos é que eles lidam com uma matéria de difícil tradução, com o indefinível que é a interioridade humana. Falam sobre os desvãos, sobre o que existe quando não há a palavra. A escritora faz uma autópsia na alma humana. Cada um dos períodos escritos por ela preocupa-se em auscultar as emoções ambivalentes do complexo mundo humano. 

Essa noção sobre a criação clariceana é importante para que alcancemos o exato sentido de suas palavras. É preciso persignar-se para ler os seus textos. Clarice possui método: seu trabalho é desnudar a alma, as entranhas, os segredos escondidos nos interstícios do corpo. 

Peguei o magro volume de “A via crucis do corpo”. É preciso atentar para o título. Há um imediato chamado religioso. Um convite para que se reflita sobre o sofrimento. Afinal, a “via-crucis” é uma expressão latina, cujo significado é “caminho da cruz”. Faz referência ao percurso palmilhado por Jesus da sala do procurador romano ao Calvário. Ou seja, do lugar do julgamento ao lugar da morte.

O corpo é aquele que padece. Ele também carrega a sua cruz. À guisa de explicação, no texto que abre o volume, Clarice adverte os leitores como se algo muito arriscado estivesse pronto a eclodir – “Todas as histórias desse volume são contundentes”. Conforme ainda essa advertência inicial, as histórias nasceram em jorro febril; estavam dentro da autora, a reclamar a vinda ao mundo.

O livro foi escrito por encomenda. São treze curtas histórias. Algumas com no máximo duas páginas. Transmitem a ideia de que foram escritas de forma apressada, o que confirma a tese do “jorro”. Coloca em evidência uma Clarice menos misteriosa. Não há jogos de palavras. Sentenças tartamudeadoras; que deslocam o leitor como em “A paixão segundo G.H”. As epifanias cessam. A metafísica e o mistério são colocados num plano secundário. O elemento que fala é o corpo. O reclamante é o corpo. O desejante é o corpo, com a sua fome, com os seus maneirismos.

As histórias falam sobre sexualidade, mas não há insinuações pornográficas. O corpo possui a sua própria linguagem e, às vezes, fala mais quando está em silêncio. Há uma singularidade em sua semântica. É no interstício entre o que se diz e o que se cala, que reside o desejo. As personagens são femininas. Clarice procura dar voz ao desejo feminino. Talvez, isso tenha chocado muitos leitores dos anos 70 em plena Ditadura Militar.

Clarice deixa uma mensagem com esse pequeno, mas revelador livro: tudo está no corpo. Nele moramos; por meio dele acessamos o mundo; ele cansa; ele sente fome e sede; e é habitado por reclames primitivos. Em momentos de solidão, como lidar com esses reclames? A maior parte dos personagens de cada uma das histórias se ver diante desse dilema. É a “via-crucis”. É o movimento que se realiza do nascimento até à morte.

 

               

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